Os Conselhos de Saúde e os limites ao seu caráter deliberativo   Migalhas
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Os Conselhos de Saúde e os limites ao seu caráter deliberativo – Migalhas

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Com o advento da CF/88, a sociedade civil passou a exercer o papel de protagonista no cenário político, sendo a sua participação efetivada por meio dos Conselhos de Políticas Públicas, os quais corporificam a democracia participativa, que é um regime onde são implementados efetivos mecanismos de controle da sociedade civil sob a Administração Pública, não se reduzindo o papel democrático apenas ao voto, mas também estendendo a democracia para a esfera social.

Nesse contexto, foram criados os Conselhos de Saúde, que de acordo com a lei 8.142, de 28/12/1990, possuem caráter permanente e deliberativo, caracterizando-se como órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, com atuação na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros.

Dessarte, amparado no caráter deliberativo, surgiram diversas legislações locais ampliando o escopo decisório destes órgãos de controle social, o que acabou por restringir deliberadamente a competência do Poder Executivo. A título exemplificativo, utilizando como parâmetro o Conselho de Saúde do Distrito Federal, cita-se a competência do Conselho para deliberar sobre contratos e convênios, prevista no art. 16, inciso V, da lei 4.604, de 15/7/111.

A par do exposto, corrobora com a extrapolação do caráter deliberativo do Conselho, o fato de que norma idêntica foi declarada inconstitucional pelo STF, que em julgado recente, datado de 1/7/24, nos autos da ADIn 7.497/MT, consignou que são inconstitucionais – por violarem o princípio da separação dos Poderes (art. 2º, CF/88) – normas estaduais que restringem a competência do governador para decidir e deliberar sobre a contratação ou convênio de serviços privados relacionados à saúde. STF. Plenário. ADIn 7.497/MT, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 1/7/24 (Info 1143). A esse respeito, colaciona-se a ementa do julgado:

Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 221, § 2º, da Constituição do Estado de Mato Grosso. Art. 17, IV, da Lei Complementar estadual 22/1992. 3. Outorga de competência aos Conselhos Municipais de Saúde e ao Conselho Estadual de Saúde para decidir e deliberar sobre a contratação ou convênio de serviços privados. 4. Inconstitucionalidade material. Indevida restrição às competências do Chefe do Poder Executivo. Impedimento de exercício em toda sua extensão, em relação à saúde, da direção superior da Administração Pública. Embaraçamento na concretização das políticas públicas de saúde em conformidade com o programa de governo eleito. Frustração de prerrogativas próprias do Governador. 5. Pedido julgado procedente. (ADI 7497, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 01-07-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 04-07- 2024 PUBLIC 05-07-2024). (grifamos).

A título elucidativo, vejamos o teor do dispositivo declarado inconstitucional:

LC estadual 22/1992:

Art. 17. Ao Conselho Estadual de Saúde compete:

… IV – deliberar sobre a contratação ou convênio com o serviço privado.

Nessa esteira, relevante consignar que as decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade têm eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública Federal, estadual e municipal, de modo que é possível inferir que normas de igual teor, que reduzem de maneira desproporcional a capacidade decisória do poder executivo, também seriam inconstitucionais.

Em razão do explicitado acima, advoga-se que também a obrigatoriedade de submissão a deliberação dos Conselhos de Saúde acerca da necessidade ou não de complementação dos serviços de saúde, conforme estatuído na portaria 1.034, de 5/5/10, do Ministério da Saúde2, viola o preceito da separação dos poderes, pois, caso o Conselho não aprove a necessidade de complementação dos serviços, restringirá a autonomia do Executivo para viabilizar a complementariedade dos serviços de saúde, seja por meio de contratos ou convênios.

Desta sorte, ao vincular a complementação dos serviços de saúde à autorização do Conselho, a portaria supracitada elide a competência do Poder Executivo para dispor sobre contratação e convênio de serviços privados relacionados à saúde, pois (i) impede que o Chefe do Poder Executivo exerça em toda sua extensão, ao menos em relação à saúde, a direção superior da Administração Pública; (ii) embaraça a concretização das políticas públicas de saúde em conformidade com o programa de governo eleito e (iii) frustra o exercício de prerrogativas próprias do Poder Executivo.

Feita esta análise, é necessário aqui frisar que não se desconhece a importância dos Conselhos de Saúde, tampouco do seu papel fundamental para concretizar a democracia participativa, contudo, há de se fazer uma interpretação restritiva quanto ao cunho decisório ou deliberativo sobre a autorização para a complementação dos serviços de saúde por meio de contratação ou convênio de serviços privados, sobretudo porque o Conselho permanece imbuído de suas competências consultivas e fiscalizatórias, principalmente enquanto avaliador da macro política pública, sendo responsável pela aprovação das diretrizes gerais da política de saúde e dos respectivos planos.

Nesse espeque, ao ampliar desproporcionalmente as competências deliberativas dos Conselhos, como as citadas anteriormente, a norma poderá ser tida como inconstitucional, porquanto de acordo com o STF, “as restrições impostas ao exercício das competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, incluída a definição de políticas públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes”. (STF. Plenário. ADIn 4.102/RJ, relatora ministra Cármen Lúcia, DJe 10/2/15).

Assim, infere-se que as competências deliberativas atribuídas aos Conselhos de Saúde devem ser interpretadas com cautela pois, além de representar possível afronta ao princípio da separação dos poderes, pode também colidir com outro princípio balizado pelo SUS, qual seja, o da descentralização político-administrativa com direção única em cada esfera de governo.

______________

1 Art. 16. Compete ao Conselho de Saúde do Distrito Federal:

V – avaliar e deliberar sobre contratos e convênios, conforme as diretrizes do Plano de Saúde do Distrito Federal;

2 Art. 2º Quando as disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o gestor estadual ou municipal poderá complementar a oferta com serviços privados de assistência à saúde, desde que:

§ 3º A necessidade de complementação de serviços deverá ser aprovada pelo Conselho de Saúde e constar no Plano de Saúde respectivo.

Luiz Carlos Santos Junior

Luiz Carlos Santos Junior

Advogado, mestre em direitos sociais e processos reivindicatórios, especialista em Direito e Processo Civil e em Direito e Processo do Trabalho. MBA em Direito e Regulação do Setor Elétrico pelo IDP.

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