CompartilharComentarSiga-nos no A A
Dentre as inúmeras alterações na redação de vários artigos do Código Penal Militar pela lei 14.688 de 2023, chama a atenção aquela procedida no art. 2651 (desaparecimento2, consunção3, extravio4) ao retirar o termo “engenho de guerra motomecanizado“, substituindo-o pela expressão “outros equipamentos militares“, procedendo uma considerável ampliação do alcance do delito, na medida em que, em princípio, qualquer material da administração militar, ou aqueles confiados à cautela dos militares possa ser objeto do tipo penal, mesmo que não tenha caráter bélico, como exemplo o capacete, a tonfa, o coldre, a lanterna etc. E, ao mesmo tempo, retirou a tutela em relação às peças de engenho de guerra motomecanizado que possam eventualmente ser feitas desaparecidas, consumidas ou extraviadas.
Mesmo sem uma definição específica no CPM, o termo engenho de guerra motomecanizado continua previsto nos arts. 1475; 1706; 1997; 264, I8; 2769; 356, II e III10, todos do Código Penal Militar. Ademais, a simples leitura dos artigos citados acima, nos dá a ideia de que o engenho de guerra motomecanizado é qualquer espécie de estrutura, móvel, com finalidade bélica, que se encontra sob administração militar, já que o tipo penal admite a figura de um comandante impondo-lhe responsabilidade sobre o engenho.
Para Enio Luiz Rossetto, lembrando Célio Lobão, as peças de engenho de guerra motomecanizado abrangem a base de lançamento de foguete, de torpedo, bomba, enfim, todo o aparelhamento de utilização bélica11, sendo fácil, então, de se verificar sua real importância.
Guardadas as devidas proporções, referindo-se a equipamentos, a coletânea de manuais técnicos do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar de São Paulo, faz a seguinte distinção:
“Equipamento motomecanizado é o conjunto de artefatos mecânicos movidos à explosão ou elétricos, reboques ou semi-reboques que não se enquadram no conceito de veículo automotor, ou instrumento relacionado que serve como meio principal ou auxiliar no serviço operacional de bombeiro (classificam-se em aquáticos e terrestres).
Veículo automotor é todo veículo à motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que normalmente serve para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas“12.
Vejamos agora o quadro comparativo da alteração procedida no art. 265:
Código Penal Militar
Antes da lei 14.688
Depois da lei 14.688
Art. 265
Fazer desaparecer, consumir ou extraviar combustível, armamento, munição, peças de equipamento de navio ou de aeronave ou de engenho de guerra motomecanizado
Fazer desaparecer, consumir ou extraviar combustível, armamento, munição ou peças de equipamento de navio, de aeronave ou de outros equipamentos militares
Pelas três modalidades (fazer desaparecer, consumir e extraviar) que compõem o seu núcleo, o art. 265 é um tipo penal curioso convenhamos, que, salvo engano para o qual desde já me penitencio, nunca chamou a atenção da doutrina para um estudo mais aprofundado. Enio Luiz Rossetto considera essa modalidade de crime dispensável, pois sua definição se assemelha à do peculato ou poderia ela estar incluída em um dos crimes de dano13.
Ponderou Edgard de Brito Chaves Júnior que “o extravio, em si mesmo, não constitui dano nem destruição, embora cause prejuízos à coletividade. O desaparecimento de material militar coloca sempre em risco eventual a tranquilidade e a paz públicas”14. A advertência é antiga mas permanece, o perigo no extravio, principalmente no de armamento e munição militares, é fácil de se evidenciar, citando-se como exemplo, a grande quantidade de armamento de grande poder de fogo e munição, privativos das forças armadas, apreendidas pelo Brasil afora em poder de marginais, fortalecendo cada vez mais o crime organizado, se apresentando de forma cada vez mais crescente, chegando aos quarteis, como ocorreu no final de 2023, com o furto de 21 metralhadoras de um quartel do Exército na Grande São Paulo15 ou, de nove pistolas 9 mm de um quartel do Exército em Cascavel/PR, em outubro de 202416.
O crime de desaparecimento, consunção ou extravio é crime de natureza subsidiária, somente sendo punido se não configurar delito mais grave. É crime doloso (característica dos verbos fazer, consumir, extraviar) que admite a modalidade culposa, prevista no art. 266 do Código, lembrando Enio Rossetto que na legislação penal comum, o dano culposo é um indiferente penal, que se resolve no âmbito civil a título de indenização17.
É crime contra o patrimônio (Título V), localizado topograficamente no Capítulo VII (Do Dano).
Para que se possa entender como se dá a consumação do tipo penal em análise, partimos do pressuposto de que o objeto jurídico tutelado pela norma é o patrimônio das instituições militares, por conta disso, vejamos o objeto material do art. 265:
Combustível: de acordo com a EPE, combustíveis são substâncias que queimamos para produzir calor. Esse calor produzido pode ser utilizado para mover uma turbina nas usinas termelétricas, como vimos em Formas de energia – energia cinética (https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/formas-de-energia), ou para acionar motores de veículos18 (https://www.if.ufrgs.br/~dschulz/web/motores4t_etapas.htm). Via de regra, em relação às Forças Armadas e Forças Auxiliares, esse combustível seria aquele utilizado em veículos automotores, aeronaves, navios, foguetes, ou alimentar uma caldeira etc.
Armamento e munição: A questão de armamento e munição das Forças Armadas e Forças Auxiliares está normatizada pela lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sinarm – Sistema Nacional de Armas, define crimes e dá outras providências.
Existem no Brasil dois grandes sistemas de controle de armas e munições, o Sigma – Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, instituído no âmbito do Comando do Exército do Ministério da Defesa, e onde estão cadastradas, dentre outras, as armas institucionais das Forças Armadas, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares e de seus integrantes19 e, o Sinarm, instituído no âmbito da Polícia Federal, com circunscrição em todo o território nacional, com amplo controle e cadastro das demais questões relacionadas à aquisição, porte e registro de arma de fogo e munições20.
As armas e munições a que se refere o art. 265 do CPM, são as de uso restrito das Forças Armadas e Forças Auxiliares, e que constituem seu arsenal bélico.
Peças de equipamento de navio e aeronave: Em relação a peças de equipamento de navio e aeronave, parece não haver uma definição específica de quais seriam esses equipamentos utilizados em navio e aeronave militares.
Na Marinha, iremos encontrar na DGPM-40521 algumas referências que ajudam a elucidar a questão, v.g., estar entre as atribuições do CnsMedOp – Conselho de Medicina Operativa assessorar a Diretoria de Saúde da Marinha, via CMOpM, na elaboração de padrões e referências para os equipamentos de saúde e para o fornecimento de material de consumo de saúde para as OM do setor operativo; caber aos profissionais de enfermagem, realizar a descontaminação e desinfecção dos materiais e equipamentos da Divisão de Saúde, conforme protocolos definidos pelos órgãos competentes; ser uma das medida de prevenção a inspeção dos itens das maletas de primeiros socorros e manutenção dos equipamentos eletrônicos; ser responsabilidade da praça subespecializada em submarinos a guarda e a manutenção dos equipamentos médicos embarcados e assim por diante.
No Exército, a portaria C Ex 2.152, de 5 de janeiro de 2024, aprovou as Instruções Gerais para a Gestão do Ciclo de Vida dos Sistemas e Materiais de Emprego Militar22, podendo-se questionar se material de emprego militar se assemelha a equipamento militar.
Independente disso, parece não haver dúvida que equipamento é o todo, formado de diversas peças que o compõem. Esses equipamentos integram o navio23 e a aeronave24 militares, como a bússola, o paraquedas, o colete salva vidas etc. Referindo-se a norma a navio e aeronave, em princípio parece não agasalhar peças de equipamento de viatura, automóvel ou ônibus.
Tomando por base o ambiente comum de trabalho, iremos verificar que a lei 6.514/77, alterou o capítulo V do título II da CLT, relativo à segurança e medicina do trabalho, prevendo no art. 166 da CLT, que a empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, EPI – equipamento de proteção individual adequado ao risco e em perfeito estado de conservação e funcionamento, sempre que as medidas de ordem geral não ofereçam completa proteção contra os riscos de acidentes e danos à saúde dos empregados. Seriam óculos de proteção, luvas, capacetes, protetores auriculares, máscaras, abafadores de som, cintos de segurança, equipamentos de segurança para alturas.
Existem também os EPC – equipamentos de segurança coletiva, que têm o objetivo de proteger todos os trabalhadores no ambiente de trabalho. Os EPCs devem ser instalados para controlar possíveis riscos de acidentes, enquanto um kit de EPI (https://blog.adecil.com.br/guia-do-epi/) proporciona segurança apenas para quem utiliza os equipamentos. Os tipos de EPCs mais comuns são: kit de primeiros socorros, kit de limpeza para casos de derramamento biológico, químico ou radioativo, lava-olhos, capela de exaustão, usada para proteger os funcionários da inalação de substâncias, durante o manuseio de produtos químicos, exaustores, sistemas de ventilação e controles de temperatura, redes de proteção, guarda-corpo, detectores de fumaça, isolamento acústico, placas e cones de segurança, fitas de demarcação (https://www.adecil.com.br/fitas/demarcacao-de-solo).
Tanto o EPI como o EPC, guardadas as devidas proporções, podem ser utilizados nas áreas sob administração militar.
Peças de outros equipamentos militares: Chegamos então ao ponto fulcral da alteração procedida pela lei 14.688/23, a retirada, no art. 265 do CPM, do termo “engenho de guerra motomecanizado“25, substituindo-o pela expressão “outros equipamentos militares“, ampliando assim o alcance da norma, exigindo que o intérprete delimite, no caso concreto, que outros equipamentos seriam esses.
A nota de instrução 003/02, da 3ª seção de Estado Maior, da Polícia Militar do Paraná26, sendo mais específica, dispõe sobre a forma adequada de utilização dos equipamentos que compõe o cinto de guarnição da PM/PR.
A nota de instrução prescreve que o cinto de guarnição padrão da PM/PR é composto dos seguintes equipamentos: coldre; porta algema; porta PR-24 ‘tonfa’; baleiro e passadores ‘belt keepers’27. Podem ser utilizados em substituição ao baleiro: 1) Porta “jet loader” e o respectivo carregador rápido, no caso de revólver; e 2) Porta carregador e o respectivo carregador, no caso de pistola.
A nota de instrução detalha o uso correto do coldre, porta algema, tonfa, passadores belt keepers, porta jet loader ou carregador rápido para revólver, porta carregador para pistola e lanterna. Em relação a este último equipamento, a nota de instrução assevera ser equipamento importante que deve estar a todo momento, de posse do PM, se possível no cinto de guarnição, pois 66% dos confrontos armados, ocorrem à noite ou em locais de baixa iluminação (item 4, i.1).
Portanto, ao retirar o termo “engenho de guerra motomecanizado“, substituindo-o pela expressão “outros equipamentos militares“, a lei 14.688/23 procedeu uma ampliação do alcance do delito previsto no art. 265 do Código Penal Militar, na medida em que, em princípio, qualquer material da administração militar, ou aqueles confiados à cautela dos militares, pode ser objeto do tipo penal, mesmo que não tenha caráter bélico, como exemplo o capacete, a tonfa, o coldre, a lanterna etc, com previsão de pena de um a três anos de reclusão (art. 58). E, ao mesmo tempo, retirou a tutela em relação às peças de engenho de guerra motomecanizado que possam eventualmente ser feitas desaparecidas, consumidas ou extraviadas.
Ainda que a tutela em relação ao desaparecimento, consunção e extravio de suas peças tenha sido retirada pela lei 14.688/23, a proteção ao engenho de guerra motomecanizado continua corretamente prevista nos arts. 147; 170; 199; 264, I; 276; 356, II e III, todos do Código Penal Militar. O engenho de guerra motomecanizado é qualquer espécie de estrutura, móvel, com finalidade bélica, que se encontra sob administração militar, já que admite a figura de um comandante impondo-lhe responsabilidade sobre o engenho.
Quanto ao desaparecimento, consunção e extravio de peças de engenho de guerra motomecanizado – que pode ocorrer, com a alteração da redação do art. 265 do CPM, seria possível, no caso concreto, analisar a conduta do militar responsável à luz do peculato-furto (art. 303, § 2º) ou peculato culposo (art. 303, § 3º)? Com a palavra os operadores do Direito, no caso concreto, óbvio, advertindo que não se verifica, na mudança do artigo, o propalado fim de compatibilizá-lo com o decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e com a Constituição Federal.
“Minus dixit quam voluit”.
____________
1 Art. 265. Fazer desaparecer, consumir ou extraviar combustível, armamento, munição ou peças de equipamento de navio, de aeronave ou de outros equipamentos militares: Redação dada pela lei 14.688, de 2023 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14688.htm#art2) Pena – reclusão, até três anos, se o fato não constitui crime mais grave.
2 Ato ou efeito de desaparecer, de deixar de ser visto.
3 Consunção é uma variante de consumpção, vocábulo com três acepções: (em geral) ato ou efeito de consumir (-se); 1 ato ou efeito de gastar até a destruição; consumição (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
4 Desaparecimento, perda, sumiço.
5 Art. 147. Fazer desenho ou levantar plano ou planta de fortificação, quartel, fábrica, arsenal, hangar ou aeródromo, ou de navio, aeronave ou engenho de guerra motomecanizado, utilizados ou em construção sob administração ou fiscalização militar, ou fotografá-los ou filmá-los: Pena – reclusão, até quatro anos, se o fato não constitui crime mais grave.
6 Art. 170. Ordenar, arbitrariamente, o comandante de força, navio, aeronave ou engenho de guerra motomecanizado a entrada de comandados seus em águas ou território estrangeiro, ou sobrevoá-los: Pena – detenção de um a dois anos.
7 Art. 199. Deixar o comandante de empregar todos os meios ao seu alcance para evitar perda, destruição ou inutilização de instalações militares, navio, aeronave ou engenho de guerra motomecanizado em perigo: Pena – reclusão, de dois a oito anos.
8 Art. 264. Praticar dano: I – em aeronave, hangar, depósito, pista ou instalações de campo de aviação, engenho de guerra motomecanizado, viatura em comboio militar, arsenal, dique, doca, armazém, quartel, alojamento ou em qualquer outra instalação militar; Pena – reclusão, de dois a 10 anos.
9 Art. 276. Praticar qualquer dos fatos previstos nos artigos anteriores deste capítulo, expondo a perigo, embora em lugar não sujeito à administração militar navio, aeronave, material ou engenho de guerra motomecanizado ou não, ainda que em construção ou fabricação, destinados às forças armadas, ou instalações especialmente a serviço delas: Pena – reclusão de dois a seis anos.
10 Art. 356. Favorecer ou tentar o nacional favorecer o inimigo, prejudicar ou tentar prejudicar o bom êxito das operações militares, comprometer ou tentar comprometer a eficiência militar: I – entregando ao inimigo ou expondo a perigo dessa consequência navio, aeronave, força ou posição, engenho de guerra motomecanizado, provisões ou qualquer outro elemento de ação militar; III – perdendo, destruindo, inutilizando, deteriorando ou expondo a perigo de perda, destruição, inutilização ou deterioração, navio, aeronave, engenho de guerra motomecanizado, provisões ou qualquer outro elemento de ação militar; Pena – morte, grau máximo; reclusão, de 20 anos, grau mínimo.
11 ROSSETTO, Eno Luiz. Código Penal Militar Comentado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 902.
12 POLÍCIA MILITAR DE SÃO PAULO, Coletânea de Manuais Técnicos de Bombeiros. Manual de Equipamento Motomecanizado, 1ª edição, 2006, p. 7.
13 ROSSETTO, Eno Luiz. Código Penal Militar Comentado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p.902.
14 CHAVES JÚNIOR, Edgard de Brito. Direito Penal e Processo Penal Militar. Forense, 1986, p. 60.
15 G1, Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/10/14/furto-de-21-metralhadoras-de-quartel-em-sp-e-o-maior-desvio-de-armas-no-exercito-desde-2009-diz-ong-480-militares-estao-retidos.ghtml. Acesso em 9/3/25.
16 G1, Disponível em https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2024/11/18/investigacao-armas-exercito-cascavel.ghtml. Acesso em 9/3/25.
17 ROSSETTO, Eno Luiz. Código Penal Militar Comentado, p. 903.
18 EPE, Empresa de Pesquisa Energética. Disponível em https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/o-que-sao-combustiveis. Acesso em 16/7/24.
19 Vide Decreto 9.847, de 25 de junho de 2019.
20 Vide Decreto 11.615, de 21 de julho de 2023.
21 DGPM-405. Normas para apoio de saúde às Operações Navais, 3ª Revisão, 2014.
22 EB10-IG-01.018, 3ª edição, 2024.
23 Para efeito da aplicação do Código Penal Militar, considera-se navio toda embarcação sob comando militar (art. 7º, § 3º).
24 Considera-se aeronave todo aparelho manobrável em voo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas (Código Brasileiro de Aeronáutica, art. 106).
25 Que continua previsto nos arts. 147; 170; 190; 264, I; 276; 356, II e III, e por isso chama à atenção.
26 NOTA DE INSTRUÇÃO 003/02 – PM/3-PM/PR, Curitiba-PR, 27 de agosto de 2002.
27 O Belt Keeper é acessório de apoio entre o seu cinto tático e seu cinto convencional.
Jorge Cesar de Assis
Advogado inscrito na OAB/PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da reserva não remunerada da PMPR.