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A CF/88, chamada de “Constituição Cidadã”, estabeleceu em seu núcleo duro o amplo acesso à justiça como garantia fundamental. Entretanto, testemunhamos hoje uma perigosa erosão desse direito através da consolidação jurisprudencial do conceito de “lide predatória” – uma teoria que, em sua aplicação desvirtuada, tem servido mais como escudo protetor de grandes conglomerados econômicos do que como instrumento de combate à má-fé processual.
O conceito de lide predatória surgiu para identificar demandas fabricadas artificialmente, com intuito fraudulento. Contudo, o que observamos na prática forense atual é sua utilização indiscriminada como mecanismo de filtragem e exclusão de causas legítimas sob o pretexto de “proteger o sistema Judiciário”.
Este fenômeno representa nada menos que uma “Constituição “a lápis” – onde o texto constitucional cujas garantias fundamentais podem ser apagadas e reescritas ao sabor das conveniências institucionais e econômicas.
A jurisprudência defensiva construída em torno da lide predatória revela uma contradição alarmante: um sistema que dificulta o acesso do hipossuficiente à justiça enquanto permanece aberto e receptivo às demandas dos grandes litigantes, que sistematicamente violam direitos consumeristas em massa.
Do ponto de vista psicanalítico, assistimos a um fenômeno perverso de inversão de papéis: o transgressor sistemático de direitos (grandes corporações) assume a posição de vítima de um sistema judicial supostamente predatório, enquanto o verdadeiro lesado é transformado em predador do sistema.
Esta inversão vitimária produz um duplo dano: além da lesão original ao direito material, o consumidor sofre uma segunda violência ao ter sua demanda por justiça rotulada como abusiva. A literatura psicanalítica reconhece este processo como uma forma de gaslighting institucional, onde a realidade da vítima é negada e sua percepção de injustiça é patologizada.
A generalização do conceito de lide predatória representa ainda um ataque frontal às prerrogativas da advocacia, função constitucionalmente reconhecida como “indispensável à administração da justiça” (art. 133, CF/88), de modo que criminaliza a própria atividade advocatícia, especialmente quando exercida em favor dos menos favorecidos, mas institui uma inaceitável discriminação econômica: aos grandes escritórios que representam corporações é permitido ajuizar milhares de ações similares sem qualquer questionamento, enquanto advogados populares que fazem o mesmo em defesa de consumidores são estigmatizados. Esta visão elitista do acesso à justiça é incompatível com os valores de uma sociedade democrática.
É inquestionável que existem casos isolados de advogados que incorrem em práticas antiéticas. No entanto, a punição deve ocorrer após o devido processo legal, com garantia de ampla defesa, e não através de presunções generalizadas que comprometem o exercício legítimo da profissão.
A criação jurisprudencial de barreiras ao acesso à justiça configura uma modalidade problemática de ativismo judicial que extrapola os limites constitucionais da separação dos poderes. O combate a eventuais abusos processuais já encontra mecanismos adequados na legislação – como a multa por litigância de má-fé e a responsabilização disciplinar perante a OAB.
Ao criar filtros extra-legais baseados em critérios subjetivos e estatísticos, o Judiciário usurpa função legislativa e compromete sua imparcialidade, assumindo postura defensiva em favor dos interesses econômicos dos grandes litigantes.
A restrição ao acesso à justiça baseada em presunções de abusividade tem um custo social imenso que raramente é contabilizado. Cada demanda legítima rejeitada sob o rótulo de “predatória” representa um dano concreto sem reparação e, mais grave, uma mensagem institucional de que certos direitos simplesmente não merecem proteção efetiva.
Este ciclo perverso incentiva justamente as práticas empresariais abusivas que deveriam ser coibidas. Quando calcular o risco jurídico se torna mais vantajoso que cumprir a lei, estabelece-se um modelo de negócio baseado na probabilidade de impunidade. O resultado é a perpetuação sistêmica de violações de direitos que afetam precisamente os mais vulneráveis.
A garantia constitucional de acesso à justiça não pode ser relativizada a partir de construções jurisprudenciais que, a pretexto de proteger o sistema Judiciário, acabam por proteger os maiores violadores sistemáticos de direitos. É necessário retomar uma hermenêutica constitucional que leve a sério os direitos fundamentais e reconheça a dimensão social do acesso à justiça.
O combate às práticas realmente abusivas deve ocorrer através dos mecanismos legais já existentes, com respeito ao devido processo legal e à presunção de boa-fé, e não mediante a criação de filtros apriorísticos que transferem o ônus da ineficiência do sistema aos jurisdicionados mais vulneráveis.
A CF não foi escrita a lápis para ser apagada ao sabor das conveniências econômicas ou institucionais. A garantia de acesso à justiça representa um pilar fundamental do Estado Democrático de Direito e sua erosão, ainda que velada pelo discurso de eficiência, representa um retrocesso inaceitável em nossa democracia constitucional.
O verdadeiro predador do sistema de justiça não é o cidadão que busca a tutela de seus direitos violados, mas sim a prática judicial que, em nome de uma eficiência seletiva, transforma garantias constitucionais em promessas vazias escritas a lápis, prontas para serem apagadas.
Vale lembrar das palavras do saudoso conterrâneo doutor Heráclito Fontoura Sobral Pinto, que ao longo de quase um século de vida recebeu o epíteto de “Senhor Justiça”, decorrente da inabalável defesa dos direitos de simples cidadãos e dos princípios constitucionais, que sempre afirmava: “A advocacia não é profissão de covardes.”
Por fim e não obstante tudo isso, confesso que preencho o 1º requisito do advogado que, segundo o jurista italiano Piero Calamandrei, é: “A Fé nos Juízes”.
Daniel Mello dos Santos
Advogado. Membro da Comissão de Defesa ao Exercício Profissional da OAB/MT. Membro da Comissão de Acesso à Justiça da OAB/AM. Atuação 14 Estados. Professor Credenciado pela DPF.