CVM e processo administrativo sancionador
Miguel Reale Júnior
Marina Coelho*
No início deste ano, a Comissão de Valores Mobiliários publicou edital de audiência pública expondo minuta de Instrução Normativa para disciplinar o processo administrativo sancionador a ser observado pela Autarquia. O referido Edital busca efetividade do instrumento de controle do mercado financeiro realizado pela CVM, regulamentando a sua função punitiva em face das normas regentes no mercado de valores mobiliários.
Na esteira do que vimos discutindo em artigos anteriores acerca da responsabilidade empresarial, o edital de audiência pública exposto pela CVM significa, concomitantemente, um aparente progresso em face da busca de um equilíbrio entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, e um evidente retrocesso, entretanto, ao estatuir inquérito administrativo, pregando absurdo e inconstitucional sigilo em relação às partes envolvidas.
Quanto ao aparente progresso, urge a constatação de que o Processo Administrativo Sancionador coloca-se na linha da legislação européia mais progressista no que se refere à função punitiva na regulação de mercados.
Esta linha de atuação preleciona a existência de um Ordenamento Jurídico intermediário situado entre o Direito Penal e o Direito Administrativo. Ressalta-se que a estruturação desta “Terceira Via” tem raízes na busca de eficácia da regulação estatal no que concerne às infrações atinentes aos bens jurídicos difusos ou coletivos, ou seja, àquelas infrações as quais nem o Direito Penal Clássico, nem o Direito Administrativo tradicional conseguem atingir.
No entanto, há uma profunda e séria diferença entre estas Ordenações Européias e a Instrução proposta pela Comissão de Valores Econômicos. Nos países do velho continente o legislador preocupa-se com a coerência interna do sistema. Constrói um sistema administrativo sancionador excluindo do Direito Penal as condutas a serem tratadas pela nova legislação. Já no Brasil, o legislador atribui à referida Autarquia a competência para erigir processo administrativo sancionador, mas não se aflige em determinar o exato âmbito desta legislação diante do sistema nacional. Então, há uma grande zona nebulosa, em que as condutas podem ser tipificadas tanto como crimes, como infrações administrativas sancionadas de forma grave e preocupante.
Sendo assim, o que aparentemente traduzia-se em um progresso legislativo desponta, em uma análise mais profícua, para uma fonte de dificuldades jurídicas que resultam, na maior parte das vezes, contradições internas ao sistema. Destaca-se a possibilidade de dupla condenação – no âmbito administrativo e penal – dos administradores financeiros que forem considerados administradores temerários ou gestores fraudulentos.
No que tange ao retrocesso marcado pela consagração do sigilo na fase de inquérito administrativo, algumas ponderações são necessárias. Entende-se por inquérito no referido Edital de Audiência Pública a fase de investigação prévia à estruturação da acusação. É um período de colheita de provas e de delimitação do termo de acusação a ser proposto pelo respectivo superintendente da Autarquia.
Ora, não se desconhece o argumento de que, nas infrações relativas ao mercado financeiro e, em geral, naquelas atinentes aos bens difusos e coletivos, o sigilo das investigações seria essencial à defesa do interesse público sob pena de não se lograr êxito na descoberta das infrações e dos infratores. No entanto, tal argumento é falacioso e sofismático por reproduzir clima de caça às bruxas aos empresários, próprio de regimes inquisitoriais. É odioso que tal consideração impere nas investigações relacionadas ao mercado financeiro, violando-se princípios caros alcançados mediante lutas históricas contra investigações sigilosas.
Isto porque, conforme determinação aposta na própria Lei nº6.385/76, a regra é a que as investigações sejam devidamente comunicadas às partes envolvidas, devendo a decretação do sigilo estar devidamente fundamentada, obedecendo-se aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade consagrados na Constituição de 1988. Não se pode, como intencionado pelo Edital de Audiência Pública, investigar a vida e os negócios de qualquer pessoa, sem que esta saiba os limites e o fundamento de tal investigação.
O sigilo das investigações atinentes ao mercado financeiro incute
elemento de indefinição e falta de delimitação do objeto investigado pela própria Autarquia, o que fere, ainda com maior pontualidade, direitos e garantias processuais apostos na nossa Carta Constitucional.
Ressalte-se que a questão é de extrema gravidade tendo em vista que grande parte destas investigações funda-se em provas colhidas e estruturadas sob sigilo total, embasando ilegalmente procedimentos criminais em face dos diretores e “acusados” pela Autarquia, já não mais no âmbito administrativo, senão no âmbito da justiça federal penal.
Convergem neste ponto o aparente progresso e o regresso evidente somando-se dividendos negativos à Instrução Normativa posta em discussão: legislação administrativo-sancionadora somada à probabilidade de processo criminal, baseados em provas produzidas mediante sigilo e indefinição da investigação. Realmente ainda engatinhamos na busca de um equilíbrio entre o eficaz e o justo. Que se perpetue a Utopia para a manutenção do Estado Democrático de Direito!
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*Miguel Reale Júnior, advogado, ex-ministro da Justiça, é professor-titular da Faculdade de Direito da USP.
Marina Coelho, advogada, é especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Doutorada em Direito Penal na USP e membro do Conselho Editorial do Boletim do IBCCRIM.
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Atualizado em: 30/4/2003 16:15