Uma nova visão sobre a responsabilidade civil do advogado
Ulisses César Martins de Sousa*Após o advento do Código de Defesa do Consumidor foi constatado um significativo aumento no número de ações que tem como objeto a busca da responsabilização civil dos profissionais liberais em razão de danos causados aos clientes no exercício da profissão. Nesse universo não são poucas as ações promovidas contra advogados. Esse fenômeno é mundial. Na doutrina internacional alguns autores já registraram que “cuando se habla de la responsabilidad professional, muchas personas (especialmente los medicos) suelen expresar que actualmente existe casi una nueva caza de brujas“1Sobre a responsabilidade civil dos advogados a doutrina, sem grande divergência, apontava que estavam esses profissionais sujeitos às disposições do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. Nessa linha Paulo Luiz Netto Lobo2, ao comentar o Estatuto da Advocacia e da OAB, afirmou que “além da responsabilidade disciplinar, o advogado responde civilmente pelos danos que causar ao cliente, em virtude de dolo ou culpa“. Sobre o tema esse renomado autor afirmou ainda que a responsabilidade civil do advogado seria regida pelos seguintes dispositivos legais: (i) artigo 133 da Constituição Federal; (ii) artigo 186 do Código Civil de 2002; (iii) artigo 32 da lei 8.906/94 (EOAB) e (iv) artigo 14 § 4º do Código de Defesa do Consumidor.A suposta incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor sobre as relações travadas entre os advogados e seus clientes atrairia a possibilidade de – com base nas regras do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor – inverter-se o ônus da prova nas ações de indenização promovidas contra os advogados. O próprio Paulo Luiz Netto Lobo3, doutrinando sobre a responsabilidade civil dos advogados, advertia que, no caso dos profissionais liberais, estávamos diante de responsabilidade por culpa presumida que “tem por efeito prático justamente a inversão do ônus da prova“. Defendia a doutrina a presunção de que o advogado era culpado pelo defeito do serviço, cabendo a este profissional o ônus de provar, além das hipóteses comuns de exclusão da responsabilidade civil, que não teria agido com dolo ou culpa. Alguns autores iam mais longe e defendiam que “a responsabilidade do advogado, entendida à luz do Código de Defesa do Consumidor, não deve ser interpretada nos restritos limites do § 4º do artigo 14, mas devidamente objetivada, considerando que esse tipo de profissional presta ou fornece serviços ao cliente/consumidor“4.Essa situação foi levada ao exame do Conselho Federal da Ordem dos Advogados através da Consulta 001/2004, apreciada pelo Órgão Especial, tendo como relatora a ilustre Conselheira Federal Gisela Gondim Ramos. No processo referido indagava a Consulente acerca da possibilidade de inversão do ônus da prova em ação de responsabilidade civil movida contra advogado. A conclusão alcançada foi a de que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica às relações jurídicas havidas entre os advogados e seus clientes.Explica-se.Pressuposto essencial para a incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor é a existência de uma relação de consumo. Nesse ponto o voto da Conselheira Federal da OAB Gisela Gondim Ramos, proferido na apreciação da Consulta acima referida, foi claro ao afirmar que “entre advogado e cliente não se estabelece uma relação de consumo, seja porque a advocacia constitui-se um múnus público, disciplinada por lei especial, seja porque, em última análise, não encontramos nela os elementos subjetivos e objetivos capazes de inseri-la no mercado de consumo“.Assinala ainda a decisão referida que a responsabilidade civil dos advogados é regulada em por norma contida em lei especial – artigo 32 da lei 8.906/94. Ora, sendo o Estatuto da Advocacia e da OAB uma lei especial, editada em data posterior ao Código de Defesa do Consumidor – que é uma lei geral – é incensurável a conclusão de que as normas consumeristas se mostram incompatíveis com o Estatuto da Advocacia. As normas do CDC, como afirmou a Conselheira Federal Gisela Gondim, “não tem eficácia no que diz respeito às relações jurídicas estabelecidas entre os advogados e seus clientes“, prevalecendo as normas do último diploma legal referido (EOAB) sobre as do primeiro (CDC).O CDC foi editado para tornar efetiva a norma constitucional a norma do artigo 170, V da Constituição Federal que estabelece a proteção do consumidor como um dos princípios nos quais se funda a ordem econômica nacional. O estudo da origem do direito do consumidor demonstra que este surgiu para compensar as desigualdades existentes entre fornecedor e consumidor no mercado. O advento da Revolução Industrial e do consumo em massa fez desaparecer a igualdade entre consumidor e fornecedor, não havendo espaço, no moderno mundo dos negócios, para a discussão das cláusulas e condições que irão reger os contratos. A sociedade de consumo atual é marcada pelos contratos massificados, nos quais o consumidor e o fornecedor perdem a identidade. Isso não acontece nas relações entre cliente e advogado. Essa relação é marcada pela confiança que o primeiro deposita no último. A advocacia é avessa à mercantilização. Logo, é impossível pretender se aplicar a essa atividade o Código de Defesa do Consumidor, diploma legal que tem a existência do mercantilismo como pressuposto.Essas conclusões coincidem com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Em valioso precedente aquele Egrégio Tribunal, ao apreciar o Recurso Especial 532.377 – RJ5, reconheceu que “não há relação de consumo nos serviços prestados por advogados, seja por incidência de norma específica, no caso a Lei n° 8.906/94, seja por não ser atividade fornecida no mercado de consumo“. No julgamento referido o relator, ministro César Asfor Rocha, foi claro ao afirmar que “ainda que o exercício da nobre profissão de advogado possa importar, eventualmente e em certo aspecto, espécie do gênero prestação de serviço, é ele regido por norma especial, que regula a relação entre cliente e advogado, além de dispor sobre os respectivos honorários, afastando a incidência de norma geral“. Assinalou o relator que “os serviços advocatícios não estão abrangidos pelo disposto no art. 3°, § 2°, do Código de Defesa do Consumidor, mesmo porque não se trata de atividade fornecida no mercado de consumo. As prerrogativas e obrigações impostas aos advogados – como, v. g., a necessidade de manter sua independência em qualquer circunstância e a vedação à captação de causas ou à utilização de agenciador (arts. 31, § 1°, e 34, III e IV, da Lei n° 8.906/94) – evidenciam natureza incompatível com a atividade de consumo“.Registre-se ainda que o vigente Código Civil não traz nenhuma regra própria acerca da responsabilidade civil dos advogados. O referido diploma legal dispensou tratamento mais apurado à responsabilidade civil. Inicialmente, na parte geral, estabeleceu as definições dos atos ilícitos nos artigos 186 e 187. Em momento posterior, no artigo 927, o Código Civil estabelece a regra geral de responsabilidade civil. Nesse diploma legal a regra continua sendo a responsabilidade subjetiva. Porém, ressalva o parágrafo único do artigo 927 que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”, hipótese que não se adequa aos serviços prestados pelos advogados. Para estes profissionais a regra continua sendo a do artigo 32 da lei 8.906/94, ou seja, é o advogado responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.Ante tudo o que foi exposto, a única conclusão que se pode alcançar, no tocante à responsabilidade civil do advogado, é que esta é subjetiva, regida pelo artigo 32 do Estatuto da Advocacia e da OAB, sendo inaplicáveis a estes profissionais as disposições do Código de Defesa do Consumidor.____________1 Sobrino, Augusto Roberto.La Responsabilidad Profesional de Los Abogados. in Revista de Direito do Consumidor, nº 32. São Paulo. RT, 1999. p. 155
2 Lobo, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. São Paulo. Saraiva, 2002. p. 171
3 Lobo, Paulo Luiz Netto. Responsabilidade Civil do Advogado. in Revista de Direito do Consumidor, nº 34. São Paulo. RT, 2000. p. 131
4 Vasconcelos, Fernando Antônio de. A Responsabilidade do Advogado à Luz do Código de Defesa do Consumidor. in Revista de Direito do Consumidor, nº 30. São Paulo. RT, 1999. p. 96
5 DJU DATA:13/10/2003 PG:00373________________* Advogado do escritório Ulisses Sousa Advogados Associados
Atualizado em: 16/7/2004 14:01
Ulisses Sousa
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