O princípio da ampla tutela jurisdicional e o dever do juiz de apreciar todas as questões do processo
Bruno Di Marino*
Tornou-se corrediço, em certa corrente pretoriana, o jargão processual de que o magistrado não precisa apreciar todas as questões argüidas pelas partes na ação, desde que uma seja suficiente para julgar a demanda. Quem, em verdade, militante forense, ou mesmo cliente da Justiça, já não terá estado às voltas, em algum pleito, com tal escusa jurisdicional?
Por trás de tal jargão, a conferir-lhe sustentabilidade, transparece a velha concepção, tão reproduzida quanto reverenciada, até hoje, seja na academia, seja no foro, de que só o magistrado, enquanto autoridade pública, exerce, e pode exercer, no processo, atividade de pensamento jurídico, isto é, de descoberta e de comunicação de sentido normativo ao texto da lei, com vistas a se chegar à resolução de um problema prático da vida. Nessa ordem de idéias, incumbiria às partes, tão apenas, expor os fatos, e ao juiz, declarar o Direito, na tradição que vem lá de Roma, qual consagrado nos famosos brocardos: da mihi factum, dabo tibi ius (me dá os fatos, e eu te darei o direito), e no iura novit curia (o Tribunal conhece o direito). Prevaleceria, então, segundo a formatação posteriormente dada pela a modernidade, o voluntarismo legal: o Direito seria a vontade do Estado, proferida pela boca do juiz, como defendia MONTESQUIEU.
No entanto, a proeminência do juiz, no processo, é apenas decisória, não de pensamento (do contrário, o advogado não seria indispensável ao funcionamento da Justiça, como previsto no art. 131 da Constituição Federal). Com efeito, não é o magistrado o Senhor dos Anéis acerca do que é ponderável, e do que não é, do ponto de vista jurídico num determinado caso (pois o que só ele considera ponderável pode ser incompleto). Nem é ele, também, o único a traçar conexões normativas (pois as que só ele traça podem resultar incorretas). Portanto, não deverá, então, o mesmo ser o único a definir quais são as questões jurídicas de determinado caso (pois o que só ele puder definir pode encerrar injustiças). O pensar jurídico – isto é, esse escutar, desvelar e comunicar o não-dito de realidade que perpassa o que está dito no texto da lei, de modo, assim, segundo HEIDEGGER, a buscar consonância com aquilo que silencia no não-dito – isso incumbe a todos os partícipes, sem exclusão, da relação processual, sobretudo às partes, que sentem e que trazem para os papéis da lide o calor e o pulso do caso concreto. E é sobretudo no espaço democrático do processo que se exerce, com fins de realização, e acabamento, o pensar jurídico. Afinal, o processo é o expediente racional de resolução de conflitos que o engenho humano concebeu ao longo da evolução civilizatória para que fosse, em substituição à justiça privada, a chamada justiça de mão própria, a sede propícia e privilegiada para que as partes tenham a oportunidade de expor e discutir suas questões, isto é, de apresentar suas razões e merecer um pronunciamento decisório específico acerca delas, para que, ao final, prevaleça a melhor, a mais consentânea com o justo concreto. Assim, o juiz não está acima do processo, mas é parte dele: o que ele diz pode ser questionado em recurso, e o que ele ouve, das partes, deve merecer uma resposta. E nem é verdade que o juiz conheça o direito. O juiz conhece o texto da lei (lex), mas a norma jurídica, o Direito (ius), só vem no caso concreto, só emerge a partir do embate processual. Pois o Direito é algo a descobrir-se, desvelar-se, a ser encontrado, e não algo já previamente dado. Direito é construção. E processo não é só decisão, e também pensamento.
Seja como for, não há verdades indisputáveis, que dirá no âmbito do jurídico. E tanto mais essa, que aqui se combate, acerca do indigitado jargão, a qual precisa, o quanto antes, ser revista, e mesmo extirpada, do imaginário forense, o que, inclusive, já vem sendo feito pela ala mais liberal da jurisprudência, tudo em homenagem ao princípio da ampla tutela jurisdicional, gravado em nossa Lei Maior. Basta pensar nas conseqüências práticas, de todo deletérias, da aplicação, hoje quase que automática, de tal orientação judicante, na medida em que tolhe e cerceia o direito de petição do jurisdicionado, bem como o seu direito a um julgamento justo, com resposta jurisdicional, devidamente motivada, a todas as razões aduzidas na ação.
Em termos mais específicos, veja-se o exemplo do recurso especial, uma hipótese assaz corriqueira. Enquanto recurso dito extraordinário, pelo fato de a sua interposição não depender unicamente da mera sucumbência (isto é, do mero fato de a parte haver sido vencida na demanda), mas de outros requisitos específicos previstos em lei – entre eles, notadamente, o chamado pré-questionamento -, sabe-se que apenas chegará ao conhecimento da instância superior em Brasília aqueles temas jurídicos que foram devidamente enfrentados pelo Tribunal local, isto é, aqueles temas sobre os quais tenha havido decisão (pronunciamento) específico por parte da Corte de Apelação (o art. 105, III, da CF, que é matriz normativa do recurso especial, fala em causas decididas, em única ou última instância (…) pelos Tribunais dos Estados).
De modo que, se o Tribunal local considera que apenas uma questão, ou apenas um determinado aspecto da demanda, é suficiente para julgá-la, e se omite em relação aos demais, tal resolução tolhe e cerceia o direito da parte de levar à instância superior o conhecimento da causa como um todo, na sua potencial plenitude normativa, pois o que lá chegará é apenas a visão reducionista que foi dada à lide pela censura do Tribunal local.
E como se sabe, mas nunca será demais repetir, o Direito não é uma ciência exata, na medida em que a mesma e singular causa pode ser vista e compreendida a partir de ângulos normativos vários, concepções jurídicas distintas. Assim, não é correto partir-se da presunção de que a solução dada pelo Tribunal local ao caso seja a mais adequada, ou a única possível (quando errare humanus est). Sendo assim, é preciso, então, que se mantenham abertas, e sempre abertas, as condições de possibilidade para que a instância superior disponha de meios de proceder a uma outra leitura do caso, sob um novo ângulo. Para tal, é imprescindível que o magistrado das instâncias ordinárias enfrente, e dê resposta, com a responsabilidade que a sua elevada função exige, a todas as questões invocadas e aduzidas pelas partes, mesmo que seja para rejeitá-las, pois as rejeitando, isto é, se pronunciando expressamente a respeito delas, a instância superior poderá, ao menos, aferir o acerto ou o desacerto da decisão.
Tudo isso, em conclusão, é um corolário do princípio do devido processo legal e da ampla defesa, e, sobretudo, e num nível normativo ainda mais abstrato, do próprio princípio democrático aplicado ao processo, por força do qual o magistrado, em seu mister judicante, não pode deixar sem resposta nenhum argumento expendido pela parte, motivando a sua decisão de forma clara e transparente. Do contrário, o magistrado não seria um intermediador vocacionado a fazer emergir a palavra do justo, mas, sim, um censor arbitrário que tolhe à parte a expectativa de Justiça. Seria uma demasia, uma desmedida jurídica continuar professando o credo em tal jargão. E “mais do que o incêndio”, segundo o velho HERÁCLITO, “é preciso apagar a desmedida”.
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* Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados
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Atualizado em: 29/3/2004 10:26
Bruno Di Marino
Bacharel em Direito pela PUC/RJ. Mestre em Teoria Geral do Estado e Direito. Constitucional pela PUC/RJ. Advogado do escritório Basilio Advogados.