Aspectos relevantes da nova Lei de Falências
Guilherme Avelar Guimarães*
Inicialmente elaborado com o fito de promover despretensiosos ajustes no processo falimentar brasileiro, o projeto da chamada “Nova Lei de Falências”, após mais de uma década de tramitação no Congresso Nacional, parece enfim aproximar-se de sua versão definitiva, trazendo agora significativas modificações no tratamento jurídico aplicável a empresas com dificuldades financeiras.
A relevância do projeto legislativo em questão foi verdadeiramente percebida apenas ao final do governo Fernando Henrique Cardoso, cuja equipe econômica, esforçando-se para dissecar e solucionar os malefícios econômicos causados pelos elevados juros praticados no mercado interno, mensurou o peso que as dificuldades de recuperação de créditos inadimplidos têm na composição do spread bancário (vale dizer, a diferença entre a remuneração que a instituição financeira intermediária cobra do tomador de empréstimo e aquela outra paga pela mesma ao aplicador dos recursos).
A existência de uma legislação falimentar eficiente deixou, então, de ser de interesse restrito de devedores e credores, pois dentre esses últimos figuram as instituições financeiras, que compartilham com os tomadores de empréstimos as perdas sofridas com devedores inadimplentes. Como inevitável conseqüência da socialização desses prejuízos, os já escassos recursos disponíveis para financiamento do consumo e do setor produtivo (como se sabe, grande parte da poupança doméstica é de antemão comprometida com o financiamento da dívida pública) tornam-se ainda mais caros, em desfavor do crescimento econômico e da geração de empregos.
Mais recentemente, com o início da gestão Lula, novas contribuições foram agregadas ao projeto da “Nova Lei de Falências”, no sentido de conciliar-se mecanismos mais eficientes de recuperação de créditos (o que, em tese, permitiria uma redução nas taxas de juros) com regras que conferissem maiores perspectivas de recuperação, também, a empresas com dificuldades financeiras contornáveis.
Quanto a esse particular aspecto, concluíram nossos congressistas pela obsolescência do Decreto-Lei n.° 7.661/45, que, editado há quase 6 décadas por Getúlio Vargas, ainda hoje é o diploma básico de nossa legislação falimentar. De fato, a satisfação dos credores através da pronta liquidação da empresa em dificuldades, que melhor atendia aos interesses patrimonialistas que inspiraram a elaboração do referido Decreto-Lei, tornou-se incompatível com o novo cenário econômico brasileiro, no qual as pequenas firmas individuais e familiares cederam lugar às grandes corporações, cuja sobrevivência é hoje tão importante para seus empregados quanto para seus credores.
Isso porque boa parte do patrimônio dessas empresas de grande porte é composta de “bens intangíveis” (como, e.g., marcas, pontos comerciais e clientela), os quais tendem a se depreciar rapidamente com a interrupção de suas atividades, tornando desejável, também para os credores, a manutenção do empreendimento. Além disso, a continuidade das atividades produtivas é especialmente importante para os fornecedores de produtos e serviços das empresas com dificuldades financeiras, com as quais muitas vezes mantêm não apenas um vínculo creditício, mas também uma relação de parceria comercial.
Assim, para que sejam alcançados os propósitos aos quais se destina, o projeto de lei em discussão no Congresso Nacional baseia-se em duas vertentes essenciais: a redefinição hierárquica dos créditos falimentares e a criação de novos incentivos para a recuperação das empresas com dificuldades financeiras.
Nesse sentido, um dos destaques do projeto legislativo em exame é a maior proteção conferida aos créditos dotados de garantias reais, que seriam igualados hierarquicamente aos créditos fiscais e, assim, satisfeitos na mesma proporção desses últimos.
Além de propiciar a redução das taxas de juros praticas pelas instituições financeiras, acredita-se que tal medida fará com que as mesmas participem mais ativamente do processo falimentar, tornando-o mais transparente e inibindo a ocorrência de fraudes. Atualmente, a superioridade hierárquica dos créditos trabalhistas, acidentários e fiscais sobre aqueles outros dotados de garantias reais leva os credores dessa última classe a adotar uma postura omissa em relação ao processo falimentar, diante da baixa perspectiva de que lhes sobrem quaisquer valores após a satisfação daqueles créditos preferenciais.
As maiores inovações trazidas pelo projeto da “Nova Lei de Falências”, todavia, dizem respeito aos mecanismos de recuperação das empresas com dificuldades financeiras.
Nesse campo, prevê-se a substituição da anacrônica concordata atual – que, embora propicie o diferimento dos pagamentos devidos aos fornecedores, não impede que estes reduzam ou interrompam o fornecimento – pela recuperação judicial e extrajudicial da empresa.
A recuperação judicial consiste numa ação proposta pela empresa com dificuldades financeiras com o intuito de preservar seus bens intangíveis e assegurar a ininterrupção de suas atividades produtivas. Em síntese, trata-se da elaboração de um plano de recuperação judicial que será submetido à apreciação dos credores, os quais, reunidos em assembléia, poderão aprová-lo, fiscalizando o seu cumprimento, ou rejeitá-lo, hipótese na qual a empresa deverá ser liquidada.
O plano de recuperação também poderá ser informalmente discutido entre a empresa e a maioria de seus credores, e, em caso de celebração desse acordo extrajudicial, o mesmo poderá ser submetido à homologação do Poder Judiciário. A homologação judicial do acordo de recuperação, além de conferir maior segurança às partes contratantes, tem como principal vantagem a sua oponibilidade aos credores dissidentes.
Ainda dentre as medidas que objetivam facilitar a manutenção dos empreendimentos produtivos, o projeto de lei em questão prevê que a alienação de ativos da empresa com dificuldades, quando realizadas em hasta pública, não acarretará a sucessão do adquirente nas obrigações tributárias ou trabalhistas do devedor.
É inegável que tal medida evita a depreciação artificial dos ativos da empresa com dificuldades, permitindo que estes sejam vendidos a preços satisfatórios e novamente utilizados em empreendimentos produtivos. É importante registrar, entretanto, que essa inovação requer a preterição não apenas dos interesses arrecadatórios da administração pública, mas também dos detentores de créditos trabalhistas, já que ambos não mais poderão exigir a satisfação de seus créditos junto aos adquirentes dos ativos da empresa inadimplente.
Outra importante inovação que facilitará a revitalização de empresas com dificuldades financeiras é o favorecimento de novos créditos que lhes sejam concedidos após o início do processo de recuperação judicial. Tais créditos serão classificados como extraconcursais, e deverão ser satisfeitos com prioridade em relação a todos os demais, o que reaproximará fornecedores e instituições financeiras da empresa com dificuldades financeiras.
É possível concluir que, em termos gerais, e sem prejuízo de pequenos ajustes que ainda podem e devem ser efetuados pelo Senado Federal – instância revisora onde se encontra em discussão o texto recentemente elaborado pela Câmara dos Deputados – o projeto da “Nova Lei de Falências” representa um salutar avanço nessa disciplina jurídica, trazendo inovações que, espera-se, contribuirão para um melhor desempenho da economia nacional.
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* Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados
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Atualizado em: 5/3/2004 14:50