A reprodução assistida e seus aspectos legais   Migalhas
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A reprodução assistida e seus aspectos legais

Sílvio de Salvo Venosa* 

No novo Código Civil foram inseridos apenas três dispositivos no artigo 1.597, que trata da presunção de filhos concebidos na constância do casamento. Assim, além dos incisos I e II, que cuidam das presunções ordinárias de concepção, dispõe esse artigo que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos: III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. 

Esses dispositivos, únicos no código sobre o tema, cuidam dos filhos nascidos do que se convencionou denominar fertilização ou reprodução assistida. O código enfoca, portanto, a possibilidade de nascimento de filho ainda que após a morte do pai ou da mãe, no caso de fecundação artificial e de embriões excedentários. Frise-se que o embrião pode ser albergado no útero de outra mulher, questão que faz surgir a problemática da maternidade sub-rogada, maternidade de substituição ou ventre de aluguel Advirta-se, de plano, que o Código Civil de 2002 não autoriza nem regulamenta essa reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução exclusivamente ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por opção do legislador.

O fenômeno legal da procriação, no direito do passado, estabelece a presunção de que há uma relação causal entre a cópula e a procriação. Desse modo, em princípio, provada a relação sexual, presume-se a fecundação. No entanto, hoje enfrentamos outra problemática, a exigir normas atualizadas. A inseminação artificial permite fecundar uma mulher fora da relação sexual. O esperma é recolhido e, mantido ou não por tempo mais ou menos longo, o qual sendo introduzido no órgão sexual da mulher, fecunda-a. O mesmo se diga a respeito do embrião. A questão da paternidade nessa hipótese é de sensível importância. O sêmen pode ser do marido ou companheiro da mulher ou de terceiro, conhecido ou desconhecido. Pode não ter havido concordância do marido ou do terceiro. Cuida-se de problemática à espera de soluções, uma vez que os dispositivos do novo código apenas apontam um início legislativo. A fecundação também pode redundar de embrião retirado da mulher.

Denomina-se homóloga a inseminação proveniente do sêmen do marido ou do companheiro; heteróloga, quando proveniente de um estranho. Por outro lado, outra banda de questões surge se a inseminação é feita contra a vontade do marido ou companheiro. São novos e desafiantes temas a aguçar modernamente os estudos jurídicos e a exigir respostas do legislador.

No tocante especificamente à paternidade, a tendência das legislações é de conceder toda a liberdade para permitir o recurso a todos os meios de prova cientificamente aceitos. A demora natural do legislador em dar respostas aos novos problemas, não só no nosso país, mas também no exterior, não deve ser obstáculo para o jurista e principalmente para o magistrado dar solução adequada às novas questões.

As modernas provas genéticas permitem excluir com certeza a paternidade de um indivíduo com relação a outro e a afirmar com quase certeza, com elevado grau de probabilidade, essa mesma paternidade. Há necessidade que o legislador pátrio, como feito por outras legislações, como em Portugal e França, introduza modificações na legislação tradicional, não somente fazendo referência a esse estágio da ciência genética, modernizando o conceito da ação de investigação de paternidade, como também resolvendo as dúvidas trazidas à paternidade pela problemática da inseminação artificial. Até mesmo o tradicional princípio mater semper certa est é colocado em xeque perante a possibilidade de úteros de aluguel ou emprestados, fenômeno também denominado maternidade sub-rogada.

Atualmente, considera-se que o resultado positivo de paternidade é tão seguro quanto sua exclusão. A genética avança em velocidade acelerada. Os exames até pouco tempo tidos como modernos e eficazes, exames de sistemas sangüíneos, ABO, MN, RH e o sistema HLA, perderam muito de seu interesse com a descoberta, na década de 1980, do polimorfismo genético, que se transmite hereditariamente (DNA). No entanto, por mais que se valore a prova biológica, não deve dispensar-se o concurso da prova convencional, a menos que o legislador queira, na filiação, estabelecer o estrito laço de sangue, desinteressando-se de todo e qualquer laço afetivo, com todas conseqüências danosas conhecidas. Assim como na adoção, a paternidade deve ser vista como um ato de amor e desapego material, e não simplesmente como fenômeno científico, sob pena de revivermos odiosas concepções de eugenia que assolaram o mundo em passado não muito remoto.

Nesse sentido a doutrina se refere à paternidade socio-afetiva. Várias legislações já nos dão exemplo disso ao admitir as conseqüências da paternidade à inseminação artificial com sêmen de terceiro, admitida pelo casal. Na inseminação heteróloga, autorizada pelo marido ou companheiro, a paternidade socio-afetiva já estaria estabelecida no momento em que o pai concorda expressamente com a fertilização.

A ciência já avançou muito em matéria de fertilização assistida, em prol dos casais que padecem de infertilidade. Questão fundamental que se desloca para o campo jurídico é saber se quando a inseminação heteróloga se deu sem o consentimento do marido, este pode impugnar a paternidade. Se a inseminação se deu com seu consentimento, há que se entender que não poderá impugnar a paternidade e que a assumiu. A lei brasileira passa a resolver expressamente essa questão. A lei não esclarece ainda, porém, de que forma deve ser dada essa autorização. Por outro lado, a nova lei civil fala em “autorização prévia”, dando a entender que o ato não pode ser aceito ou ratificado posteriormente pelo marido, o que não se afigura verdadeiro. A lei específica deve ser urgentemente promulgada para resolver questões éticas, jurídicas e sociais dessa problemática, inclusive proibindo condutas indesejáveis e tipificando-as como crime, como a criação de clones de seres humanos.

Está em tramitação o Projeto de Lei do Senado nº 90/99, que dispõe sobre a matéria. De acordo com esse projeto, os estabelecimentos que praticarem a reprodução assistida estarão obrigados a zelar pelo sigilo da doação, impedindo que doadores e usuários venham a conhecer reciprocamente as suas identidades, zelando, da mesma forma, pelo sigilo absoluto das informações sobre a criança nascida a partir de material doado. Nesse projeto abre-se, porém, a possibilidade de a pessoa gerada ter acesso às informações sobre sua geração em casos especificados em lei e quando houver razões medicas que tornem necessário o conhecimento genético. Estas últimas disposições são polêmicas.

Como se vê, o assunto ainda tateia na doutrina. Ainda não há terreno seguro a ser trilhado nesse horizonte novo da ciência. Há necessidade que invoquemos princípios éticos, sociológicos, filosóficos e religiosos para uma normatização da reprodução assistida. A futura legislação sobre biogenética e paternidade deverá ocupar-se, portanto, de muitos novos aspectos, nem sequer imaginados em passado próximo. E os aspectos preocupantes são proeminentemente éticos.

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* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil – sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados – Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes   

 

 

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Atualizado em: 1/4/2003 11:49

Sílvio de Salvo Venosa

Sílvio de Salvo Venosa

Sócio consultor de Demarest Advogados, Está no escritório desde março de 1996. Foi juiz no estado de São Paulo, tendo se aposentado como desembargador. Autor da coleção de direito civil, atualmente em 5 volumes, na 20ª edição e várias outra obras. Direito Empresarial. Lei do Inquilinato Comentada. Introdução ao Estudo do Direito – Primeiras Linhas, entre outras.

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