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Prévio esgotamento da via administrativa como condição para a ação penal nos crimes contra a ordem tributária

 

Suzane de Farias Machado Moraes*

 

Sumário: 1. Introdução. 2.Alguns aspectos dos crimes contra a ordem tributária. 3. O lançamento tributário. 4. A ampla defesa na esfera administrativa. 5. A extinção da punibilidade. 6. O art. 83 da Lei 9.430/96. 7. A independência das instâncias administrativa e penal. 8. A prescrição 9. Conclusão.

 

1. Introdução 

 

imagem06-12-2021-02-12-11Nosso país tem vivido nos últimos anos um crescente aumento da carga tributária, resultante da necessidade de arrecadação por parte do governo, sendo que, muitas vezes, isso tem acontecido em total desrespeito as leis e a Constituição.

 

É sabido que o aumento de tributos, tem como finalidade proporcionar ao Estado condições de suportar os pesados custos de Administrações desastrosas, desmandos de governantes, corrupção e principalmente para pagar os pesados encargos das dívidas interna e externa.

 

A questão da criminalização do ilícito tributário é colocada pelo Governo como necessária ao combate a sonegação, justificando assim a aprovação de leis mais severas contra as condutas dos sonegadores de impostos.

 

Sonegação existe, mas de igual forma existem também arbitrariedades e abusos na cobrança de impostos, tanto que muitos contribuintes já não sabem como se conduzir sem correr o risco de serem processados penalmente por crime contra a ordem tributária.

 

Em artigo sobre o tema, Hugo Machado cita conceituado penalista espanhol que diz em monografia a respeito do presente e do futuro do ilícito fiscal, “que somente em duas circunstâncias se explica a criminalização do ilícito tributário. Na primeira delas, o sistema tributário é tão bem elaborado, tão justo, com uma carga tributária tão bem distribuída, que não se pode admitir alguém a descumprir o seu dever tributário, sendo correto, pois, punir exemplarmente o transgressor desse dever. Na segunda, o sistema tributário é tão complicado e tão injusto que ninguém quer pagar seus tributos, sendo necessário, pois, implantar-se o terrorismo fiscal, único meio de compelir, com a ameaça de prisão, o contribuinte a fazer os seus pagamentos.”

 

Com certeza nosso sistema se assemelha ao segundo tipo descrito, ou seja, é injusto e complicado. Temos um Estado que não cumpre com a sua parte, principalmente no que diz respeito ao oferecimento dos serviços essenciais como saúde, educação e segurança, e uma carga tributária altíssima. Consequentemente, ninguém quer pagar o tributo que lhe é cobrado. Resta então para o Estado, fazer valer a cobrança mediante implantação do terror fiscal.

 

Com a criminalização do ilícito fiscal, temos nos deparado com questões bastante polêmicas, como é a que trata da necessidade ou não do prévio esgotamento da instância administrativa para o início da ação penal nos crimes contra a ordem tributária, objeto de grande divergência tanto na doutrina como na jurisprudência.

 

O artigo 83 da Lei 9.430 de 27.12.96, que estabeleceu a decisão final na esfera administrativa como condição para o encaminhamento da representação fiscal ao Ministério Público criou mais polêmica ainda.

 

No presente estudo, analisaremos o porque de ser indispensável aguardar-se o fim do procedimento administrativo fiscal para a interposição da ação penal, com alguns aspectos relevantes, bem como a posição jurisprudencial sobre o assunto. 

 

2 – Crimes contra a ordem tributária 

 

A lei 8.137/90, que instituiu os crimes contra a ordem tributária, tratou de todos os tipos penais definidos na Lei 4.729/65, e ainda cuidou de agravar a ameaça penal nos crimes tributários. Disciplinou a mesma matéria da lei anterior, só que de forma mais abrangente e mais severa. Além do que, enquanto os chamados crimes de sonegação fiscal, definidos na Lei 4.729/65 configuravam crimes de mera conduta, os da nova Lei configuram crimes de dano, onde é o o resultado que importa para configuração do crime.

 

A Lei nº 8.137/90 assim estabelece: 

“Art. 1º. – Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

 

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

 

II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

 

III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

 

IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

 

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada ou fornecê-la em desacordo com a legislação.” 

O legislador exigiu para a configuração do crime do art. 1º., a efetiva supressão ou redução do tributo. Tornou-o crime material ou de dano. É crime material, porque só se consuma com o resultado. Para acontecer o crime é necessário a supressão ou redução do tributo devido, a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.

 

Já nos crimes descritos no art. 2º. da mesma Lei, tal exigência não foi feita.

 

Senão vejamos: 

Art 2º. – Constitui crime da mesma natureza:

 

I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmante, de pagamento de tributo;

 

II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição sociela, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação que deveria recolher aos cofres públicos;

 

III – exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;

 

IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;

 

V – utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. 

Os crimes descritos nos incisos do art. 2º. Acima transcrito, são formais, a simples ação ou omissão do sujeito, bastam para sua configuração.

 

Mesmo tratando-se de crimes formais ou de mera conduta, tanto quanto os crimes materiais definidos no art. 1º, os do art. 2º da lei 8.137/90 necessitam da existência de um tributo devido. É preciso que exista o crédito tributário para que se possa falar em condutas tendentes a não pagá-lo ou pagá-lo a menor. É necessário também que o resultado tenha sido obtido por meio de fraude e que o sujeito tenha a intenção de não pagar o tributo ou pagá-lo a menor, o que os torna dolosos.

 

Como bem ensina Antônio Corrêa, além da vontade livre e consciente de praticar o fato, sabendo da ilicitude e antijuridicidade, há como integrante do tipo o plus, que é o desejo interno de não pagar o tributo, o qual se concretiza mediante fraude.

 

O dolo específico, como bem destaca Hugo Machado, “é essencial para a configuração do crime”, sendo portanto, “imprescindível a prévia decisão administrativa sobre o tributo devido.”

 

Se para a configuração dos crimes contra a ordem tributária, materiais ou formais, é preciso que exista um tributo devido, faz-se também indispensável ter havido o lançamento.  

 

3 – O lançamento tributário 

 

Segundo Hugo Machado “a relação tributária nasce com o acontecimento do denominado fato gerador do tributo. Nasce desprovida de liquidez e certeza, que adquire com sua liquidação, ou acertamento. Essa liquidação, ou acertamento, que compete privativamente à autoridade administrativa, presta-se para constituir o crédito tributário e dá-se o nome de lançamento”, que é, segundo o art. 142 do CTN o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

 

Em outras palavras, o lançamento tributário é um ato proferido pela autoridade fiscal resultante de um procedimento necessário para liquidar ou acertar a obrigação tributária, baseado nos critérios jurídicos do próprio Fisco.

 

O lançamento é ato declaratório da obrigação tributária e constitutivo do crédito tributário.

 

A obrigação tributária precede ao lançamento, mas só produz efeitos a partir dele. Sem o lançamento, não há que se falar em liquidez e certeza do crédito tributário.

 

Importante salientar que apenas a autoridade administrativa tem competência para proceder o lançamento. É ela que verifica a ocorrência do fato, realiza as condutas necessárias e examina os livros e documentos fiscais, com a finalidade de apurar tributo devido. O lançamento é, portanto, ato privativo da autoridade fiscal, e é ela quem diz se existe tributo, qual o seu valor e notifica o contribuinte, constituindo assim o crédito tributário.

 

Depois de efetuado o lançamento, o crédito ainda pode ser desconstituído. Está sujeito a alterações devido a garantia constitucional da ampla defesa, que dá ao contribuinte o direito ao contraditório se entender que o tributo não é devido, ou não concordar com o valor apurado.

 

A exigibilidade definitiva do crédito tributário somente ocorre quando esgotadas todas as instâncias administrativas e todos os meios e recursos cabíveis para discutir a cobrança.

 

Portanto, só se pode cogitar de crime contra a ordem tributária depois de esgotadas todas as instâncias administrativas em que o sujeito passivo contesta o lançamento. E mais, que desconstituído o lançamento, não há que se falar em crédito tributário e muito menos em crime contra a ordem tributária. 

 

4. A ampla defesa na esfera administrativa 

 

A Constituição de 1988 encartou o processo administrativo dentre os direitos e garantias individuais ao estabelecer em seu art. 5º., inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

 

Com isso, pretendeu o legislador constituinte trazer para o processo administrativo garantia que na Constituição de 1969 só era conferida ao processo judicial, representando verdadeiro avanço, na medida em que os princípios do contraditório e da ampla defesa são essenciais ao Estado Democrático, e somente assim, se pode considerar a existência de isonomia, de equilíbrio, nas relações decorrentes de conflitos entre Estado e contribuinte.

 

Pelo princípio da ampla defesa entende-se ” o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade.”

 

Por contraditório, diz Nelson Nery Júnior “deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis.”

 

O contraditório está inserido dentro da ampla defesa, “quase que com ela se confunde integralmente na medida em que uma defesa hoje em dia não pode ser senão contraditória. O contraditório é pois a exteriorização da própria defesa. A todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-se -lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou ainda de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor”.

 

É fundamental o destaque ao direito de defesa do contribuinte, pois ele é indispensável ao lançamento. Com o auto de infração começa a fase contenciosa administrativa, onde o sujeito passivo da obrigação pode exercer o seu direito de defesa.

 

Feito o lançamento, com a notificação regular do sujeito passivo e havendo decorrido todos os prazos e esgotados todos os recurso cabíveis, com sentença final transitada em julgado, estará definitivamente constituído o crédito, podendo então ser exigido pela fazenda pública.

 

Admitir a instauração do processo penal, antes de concluído o procedimento administrativo, é negar a garantia da ampla defesa ao contribuinte. 

 

5. A extinção da punibilidade 

 

Embora o crime fiscal seja figura relativamente nova no nosso sistema jurídico, sua legislação já sofreu algumas alterações, como é o caso da lei que regula a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. Aliás, como afirma com muita propriedade Hugo Machado, tanta inconstância legislativa “demonstra a falta de convicção do legislador a respeito dessa opção de política tributária, que tem sido objeto de intermináveis controvérsias no plano doutrinário.”

 

Hoje a extinção da punibilidade pelo pagamento está presente no ordenamento jurídico, no art. 34 da Lei 9.249/95 que assevera: 

Art. 34 – Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137/90, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº. 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive assessórios, antes do recebimento da denúncia. 

Com efeito, agora, sendo efetuado o pagamento do tributo ou contribuição, antes do oferecimento da denúncia, fica livre da punibilidade o contribuinte.

 

A extinção da punibilidade pelo pagamento tem sido defendida, principalmente, porque serve de estímulo ao pagamento do tributo, que é exatamente a finalidade da criminalização do ilícito fiscal. É evidente que a intençao do Estado, ao tornar crime o não pagamento do tributo foi aumentar a arrecadação utilizando a intimidação como instrumento. Além disso, ao mesmo tempo que a extinção da punibilidade pelo pagamento atende o Estado é também favorável ao contribuinte que, tendo contra ele decisão final administrativa, tem a opção de pagar e evitar ação penal contra si. Até porque, se o pagamento de nada lhe adiantasse, ele não o faria.

 

Entretanto, para fazer valer o direito de defesa do contribuinte em procedimento fiscal, e também a opção da extinção da punibilidade pelo pagamento, é indispensável o prévio esgotamento da via administrativa para o oferecimento da denúncia, como podemos observar na ementa desse julgamento do TRF da 1ªRegião: “1. O tipo penal descrito no art. 1 da Lei nº. 8.137/90, para que se possa configurar exige, obrigatoriamente, o término da apuração do agir do contribuinte e a sua consequência na esfera tributaria. 2. Denúncia oferecida antes do término do processo fiscal que apresenta ausência de interesse de agir do Ministério Público Federal – carência de ação. 3. Examinando-se a questão do benefício outorgado pela Lei 8.137/90 – Extinção da punibilidade pelo pagamento dos tributos – vigente na hipótese, porque ocorrido o fato antes da vigência da Lei nº. 8.383/91, verifica-se que a denúncia “ante tempus”, por via oblíqua, impediu que pudesse o paciente utilizar-se do favor fiscal.”

 

Como se vê, o oferecimento da denúncia antes do fim do procedimento administrativo, impede a utilização do benefício da extinção da punibilidade.

 

Prevalecendo o entendimento de que a denúncia pode ser oferecida independente do processo administrativo, pois as instâncias são autônomas, nenhum contribuinte, principalmente aqueles de boa fé e preocupados com a moral, vai discutir o crédito administrativamente. Vai pagar logo para não correr o risco de perder o direito ao benefício da extinção da punibilidade, pois o MP poderá a qualquer tempo denunciá-lo e o benefício só pode ser aproveitado antes da denúncia.

 

Se ao tomar conhecimento de um procedimento fiscal, o Ministério Público pode intentar de logo a ação penal, não resta outra opção ao contribuinte que não a do pagamento, mesmo não sendo devedor do tributo cobrado.

 

Ao ser autuado, mesmo sendo indevida a cobrança e o sujeito não tendo dúvida da sua vitória na instância administrativa, não poderá recorrer sem o risco de ver intentada ação penal contra si.

 

Admitir a denúncia antes do término do processo administrativo, pode até atender ao Estado, que estará arrecadando, mas o direito as garantias constitucionais do contribuinte estará sendo cerceado.

 

E não se pode aceitar o argumento de que sendo indevido o tributo ao final restará comprovado e a ação penal ficará prejudicada. Não é possível admitir-se que alguém seja submetido ao constrangimento de um processo penal, antes mesmo de saber se cometeu o delito a ele imputado. 

 

6. O art. 83 da Lei 9.430/96 

 

O Ministério Público, ao oferecer a denúncia, antes de realizado o lançamento tributário definitivo, atua de forma equivocada. Para a instauração da ação penal, é necessário o conhecimento do teor da decisão administrativa final, visto que, somente ela tem a capacidade de fornecer os elementos que darão cabimento à denúncia.

 

Sem a definição da existência do tributo devido, falta a denúncia requisito básico, falta a ela justa causa.

 

Portanto, a denúncia é inepta se instaurada antes do término do procedimento administrativo fiscal.

 

Contudo, não sendo esse o entendimento adotado pela maioria dos Tribunais Superiores e, provavelmente, com a intenção de encontrar a solução para a divergência acerca do momento certo para o oferecimento da denúncia nos crimes contra a ordem tributária, surgiu o art. 83 da Lei nº 9.430/96, que estabelece: 

“Art. 83 – A representação fiscal para fins penais, relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência do crédito tributário correspondente.” 

Embora pareça claro que para instauração da ação penal é necessário que o tributo tenha sido julgado devido pela autoridade administrativa, em decisão final, a interpretação do artigo em comento tem sido no sentido de que apenas rege atos da administração, que as instâncias são autônomas, portanto, a instância administrativa não constitui obstáculo para o oferecimento da denúncia por parte do Ministério Público. Alega-se que não o referido artigo não criou condição de procedibilidade para a instauração da ação penal, visto que o MP é independente.

 

A esse respeito, o Ministro Edson Vidigal observa que “não se trata, a toda evidência, de cerceamento da ação institucional do Ministério Público. O que a lei restringe é a ação da repartição fazendária, proibida agora…de remeter papéis para fins de denúncia, ao Ministério Público, enquanto não se concluir, no processo administrativo, sobre a existência ou não da obrigação tributária. Isto é, o crime em tese contra a ordem tributária somente despontará, em princípio, configurado ao término do procedimento administrativo. Não é mais um simples auto de infração, resultante quase sempre de apressadas conqaunto tensas inspeções, o instrumento com potencialidade indiciária suficiente para instruir denúncia criminal.”

 

O Ministério Público, diante da edição do referido artigo, suscitou a sua inconstitucionalidade, arguindo o conflito com o art. 129, inciso I, da Constituição, o qual estabelece ser função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei, tendo a decisão liminar, abaixo transcrita, sido proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1571-1/DF: 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei nº 9.430 de 27.12.1996, art. 83. 3. Argüição de Inconstitucionalidade da norma impugnada por ofensa ao art. 129, I, da Constituição Federal, ao condicionar a notitia criminis contra a ordem tributária à decisão final na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário, do que resultaria limitar o exercício da função institucional do Ministério Público para promover a ação penal pública pelas práticas de crimes contra a ordem tributária. 4. Lei nº 8.137/1990, arts. 1º e 2º. 5. Dispondo o art. 83, da Lei nº 9.430/1996, sobre a representação fiscal, há de ser compreendido nos limites da competência do Poder Executivo, o que significa dizer, no caso, rege atos da administração fazendária, prevendo o momento em que as autoridades competentes dessa área da Administração Federal deverão encaminhar ao Ministério Público Federal os expedientes contendo notitia criminis, acerca de delitos contra a ordem tributária, previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990. 6. Não cabe entender que a norma do art. 83 da Lei nº 9.430/1996, coarcte a ação do Ministério Público Federal, tal como prevista no art. 129, I da Constituição, no que concerne à propositura da ação penal, pois, tomando o MPF, pelos mais diversificados meios de sua ação, conhecimento de atos criminosos na ordem tributária, não fica impedido de agir, desde logo, utilizando-se, para isso, dos meios de prova a que tiver acesso. 7. O art. 83, da Lei nº 9.430/1996, não define condição de procedibilidade para a instauração da ação penal pública, pelo Ministério Público. 8. Relevância dos fundamentos do pedido não caracterizada, o que é bastante ao indeferimento da cautelar. 9. Medida cautelar indeferida. (ADIN 1571-1/DF, STF, PL, REL. MIN. NÉRI DA SILVEIRA).

A decisão na ADIN foi no sentido de não suspender a vigência do art. 83 da Lei 9.430/96, sob o fundamento de que não está em conflito com a norma constitucional.

 

Baseia-se na tese de que a ação penal nos crimes contra a ordem tributária é pública incondicionada e por isso o Ministério Público não pode ficar impedido de atuar. Afirma que a definição do ilícito tributário não é pressuposto de procedibilidade para a instauração da ação penal, porque as instâncias são autônomas. Que a norma do art. 83 apenas estabelece a conduta da autoridade fiscal, não impedindo a ação do MP, que poderá oferecer a denúncia antes da representação da autoridade administrativa.  

 

Essa decisão, usando expressão de Hugo Machado, pode ser considerada “salomônica”, pois não suspendeu a vigência do artigo 83, da Lei 9.430/96, mas também não retirou a possibilidade do Ministério Público oferecer a denúncia antes de concluído o procedimento administrativo.

 

O que , na verdade, torna a norma inútil se o MP puder intentar a ação penal a qualquer tempo, ou seja, mesmo com o processo administrativo em andamento e assim requisitar os documentos que achar necessários para isso.

 

Não é razoável admitir que a autoridade administrativa esteja impedida de remeter representação ao Ministério Público para propor a ação penal em crime contra a ordem tributária, antes da decisão final no procedimento administrativo fiscal, mas tenha o dever de fornecer ao MP as informações e documentos sobre o fato.

 

O ponto fundamental da questão é que para a configuração dos crimes descritos no art. 1º. da Lei 8.137/90 e mesmo os do art. 2º. é imprescindível que exista tributo ou contribuição efetivamente devidos.

 

Se ainda não houve a definitiva declaração da existência ou não de responsabilidade de natureza tributária, não há dívida a pagar e, portanto, não há que se falar em delito, porque não existiu tributo ou contribuição.

 

Para isso é que foi editada a norma do art. 83 em comento. Exatamente para demonstrar que o momento exato para a remessa da documentação necessária à instauração da ação penal por parte do Ministério Público é o da definitiva constituição do crédito. Se não fosse com esse fim, e se entendermos que não vincula a atuação do Ministério Público, estaríamos tornando-a uma norma sem utilidade.

 

Se o MP pode instaurar a ação penal quando achar conveniente, e se ele pode solicitar de quem for, aí incluída a autoridade administrativa, todos os documentos necessários á instauração do processo, para que serviria o art. 83? Seria norma sem utilidade nenhuma e não é possível crer que o legislador edite norma inútil.

 

O que nos parece evidente, é que a intenção do legislador foi exatamente colocar o fim do processo administrativo como termo inicial para o oferecimento da denúncia pelo MP.

 

E mais, é um equívoco imaginar que essa lei limita a ação institucional do Ministério Público. Nesse ponto, observa muito bem o Ministro Edson Vidigal, quando diz que ela faz é “agregar à nobre ação institucional do Ministério Público um valor chamado eficácia, no sentido de praticidade e objetividade.” “Nenhuma ação de agente público algum pode prescindir de eficácia. Não agir com eficácia é desperdiçar tempo no serviço público. E como quem paga a conta é sempre o contribuinte, não agir eficazmente é desperdiçar dinheiro público.”

 

Se o art. 83 da Lei 9.430/96 estabelece que o momento para o encaminhamento dos papéis necessários para que o Ministério Público ofereça a denúncia se dá somente após a decisão final na esfera administrativa, é porque não deseja que a ação penal seja instaurada antes do final do processo administrativo, e sendo assim, é claro que a finalidade do referido artigo foi criar uma condição de procedibilidade para a ação penal. Esta só pode ser instaurada quando concluído definitivamente o procedimento administrativo e declarada a existência do crédito.  

 

7. A independência das instâncias administrativa e penal 

 

Como demonstrado anteriormente, a independência das esferas administrativa e penal é um dos principais, senão o principal fundamento utilizado para a defesa do cabimento da ação penal independente do julgamento final administrativo. Argumenta-se que o Ministério Público não está vinculado a decisão administrativa para a propositura da ação penal, e que a existência de recurso administrativo, impugnando o lançamento dos tributos não impede a propositura da denúncia.

 

Tese que, infelizmente, vem sendo utilizada como fundamento das decisões sobre crimes fiscais, como se pode observar da seguinte ementa: “As instâncias penal e administrativa são, em princípio, autônomas, inexistindo para a “persecutio criminis” condição de procedibilidade ou questão prejudicial decorrente do disposto no art. 83 da Lei nº. 9.430/96.”

 

É equivocado o uso do argumento de que as instâncias são independentes. Só quem pode dizer que alguém é ou não devedor de tributo é a autoridade administrativa. Ou seja, ninguém, ou nenhuma outra autoridade tem competência para proceder o lançamento. Isso não significa que a instância penal dependa da administrativa para atuar. O que depende é a configuração do crime, ou seja, o crime contra a ordem tributária só está configurado, após a decisão final da autoridade administrativa que diz que aquele tributo é devido.

 

Como para configuração de crime contra a ordem tributária, é necessária a existência de um tributo, torna-se necessário que o MP espere que a autoridade fiscal diga que o sujeito é devedor do tributo, para a partir daí proceder o oferecimento da denúncia. Antes disso falta-lhe justa causa para agir.

 

No julgamento do Habeas Corpus 81.611-DF o relator, Ministro Sepúlveda Pertence, colocou exatamente a questão da decisão administrativa ser condição para a instauração da ação penal e que a configuração do crime está a depender de decisão de autoridade diversa da penal. Seu voto foi no “sentido de que, nos crimes do artigo 1º. Da Lei 8.137/90, que são materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, sem a qual a denúncia deve ser rejeitada, uma vez que a competência para constituir o crédito tributário é privativa da administração fiscal, cuja existência ou montante não se pode afirmar até que haja o efeito preclusivo da decisão final do processo administrativo. O Min. Pertence salientou, ainda, que a circunstância de uma decisão administrativa ser condicionante da instauração de um processo judicial não ofende o princípio da separação e independência dos Poderes , haja vista que a punibilidade da conduta, quando não há tipicidade, está subordinada à decisão de autoridade diversa do juiz da ação penal.”

 

É bom destacar que, sendo a exigência fiscal impugnada pelo contribuinte, e ao final confirmada a sua inexistência, ilegalidade ou inconstitucionalidade, não se pode cogitar de crime, sequer, em tese. Não é possível portanto, falar-se em ação penal. Faltaria objeto para a instrução criminal. Se a apuração do tributo ou contribuição está dependendo de decisão no processo administrativo, em que são garantidos o contraditório e a ampla defesa, não se pode sujeitar o contribuinte, que está no exercício regular de garantias constitucionais, a um processo penal. Até porque, poderíamos nos deparar com julgamentos contraditórios onde, por uma voz o Estado diz que o contribuinte nada lhe deve e por outra o condena a uma pena por deixar de pagar ou recolher tributo. Que tributo?. O Direito não pode comportar uma contradição assim, ainda que em nome de uma autonomia dos ramos jurídicos.

 

O argumento da separação das instâncias não se presta para justificar a instauração de um processo penal em crimes contra a ordem tributária. É indispensável que se aguarde a decisão administrativa definitiva, quando ainda pendente recurso, pois o crédito em questão ainda se encontra com a sua exigibilidade questionada e quem resolve essa questão é a autoridade administrativa. Só ela tem competência para dizer que alguém é devedor de tributo.

 

Não é razoável admitir-se a instauração de processo penal, por crime contra a ordem tributária, se a própria administração ainda não afirmou a existência do tributo, sua supressão ou redução, mesmo porque ainda se encontra em curso o processo administrativo onde se discute o crédito. 

 

8. A prescrição 

 

Tese também utilizada pelos que defendem ser possível o oferecimento da denúncia antes mesmo do término do processo administrativo é a da prescrição. Argumento esse, claramente equivocado. Se entendermos que só após o término do procedimento administrativo fiscal é que o Ministério Público pode instaurar a ação penal, também é lógico entender-se que a prescrição só se inicia à partir daí.

 

Em debate por ocasião do julgamento da ADIn 1.571-1/DF, o Ministro Carlos Velloso observou, com muita propriedade, “que a prescrição penal, no caso, somente começa a correr no momento em que o procedimento administrativo fiscal chega ao fim. É que somente aí é que nasce para o Estado, assim para o Ministério Público, o direito de propor a ação. Tem aplicação, então, o princípio da actio nata, mais velho que a Sé de Braga.”

 

O princípio que estabelece que a prescrição não corre enquanto não decidida em outro processo matéria da qual dependa a configuração do crime (art. 116, do Código Penal) se aplica aos crimes contra a ordem tributária. 

 

9. Conclusão 

 

Por todo o exposto, podemos concluir que:

 

a) Para a configuração dos crimes contra a ordem tributária, materiais ou formais, é preciso que exista um tributo devido, e portanto, faz-se indispensável , ter havido o lançamento.

 

b) Admitir a instauração do processo penal, antes de concluído o procedimento administrativo, é negar a garantia da ampla defesa, pois o contribuinte ao ver-se ameaçado penalmente, certamente vai apressar-se e efetuar o pagamento do tributo, mesmo que este seja indevido, para não correr o risco da condenação.

 

c) Para fazer valer o direito de defesa do contribuinte em procedimento fiscal, e também a opção da extinção da punibilidade pelo pagamento, é indispensável o prévio esgotamento da via administrativa para o oferecimento da denúncia, pois prevalecendo o entendimento de que a denúncia pode ser oferecida independente do processo administrativo, pela autonomia das instâncias, nenhum contribuinte, principalmente aqueles de boa fé e preocupados com a moral, vai discutir o crédito administrativamente, pois correrá o risco de vendo-se condenado, não ter mais a opção de pagar e livrar-se da ação penal.

 

d) A norma do art. 83 da Lei 9430/96 estabelece o momento exato para a remessa da documentação necessária a instauração da ação penal por parte do Ministério Público. Se não fosse com esse fim, e se entendessemos que o artigo 83 não vincula a atuação do Ministério Público, estaríamos tornando-a uma norma sem utilidade.

 

e) Não é possível admitir-se o argumento da autonomia das instâncias para justificar a ação penal antes do final do processo administrativo pois, sendo a exigência fiscal impugnada pelo contribuinte, e ao final confirmada a sua inexistência, ilegalidade ou inconstitucionalidade, não se pode cogitar de crime, sequer, em tese. Não é possível portanto, falar-se em ação penal. Faltaria objeto para a instrução criminal. Poderíamos nos deparar com julgamentos contraditórios onde, por uma voz o Estado diz que o contribuinte nada lhe deve e por outra o condena a uma pena por deixar de pagar ou recolher tributo devido. Que tributo, se a autoridade administrativa disse que não há tributo devido? O Direito não pode comportar uma contradição assim, ainda que em nome da independência das instâncias.

 

f) A prescrição com relação aos crimes contra a ordem tributária, só começa a contar da decisão definitiva na instância administrativa, portanto, não se pode utilizá-la como argumento para justificar a instauração de processo penal antes daquela decisão.

 

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* Advogada no Ceará e Membro do ICETInstituto Cearense de Estudos Tributários

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Atualizado em: 9/1/2004 07:42

Suzane de Farias Machado Moraes

Suzane de Farias Machado Moraes

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