Breves considerações sobre os rumos da filosofia dos direitos do consumidor
Marcelo Bottallo*
Em alusão a comemoração mundial, no próximo dia 15 de março, dos Direitos do Consumidor, algumas reflexões sobre a realidade e os caminhos que esse ramo da ciência jurídica deve traçar neste novo Século, merecem ser aqui consideradas.
Inicialmente, a doutrina aponta, de maneira sistematicamente unânime, como um dos marcos da virada da valoração e efetivo caminho para a tutela da defesa dos interesses dos consumidores a mensagem dirigida pelo Presidente Kennedy ao Congresso Americano, em 15 de março de 1962, fato que gerou a data da comemoração que agora é chegada.
Esse marco histórico caracteriza-se, em importância, primeiro por ser um amplo programa de reformas consoantes com os interesses dos consumidores. Em segundo lugar o mesmo acabou sendo efetivamente continuado por uma série de práticas legislativas e judiciais que acabaram por levar os Estados Unidos à, em determinada época, uma posição pioneira e de vanguarda nessa área.
Entretanto, é bastante interessante que, pelos menos trinta anos antes desta evolução do pensamento jurídico sobre uma nova forma de sociedade, tenha sido profeticamente previsto pelo consagrado autor H. G. Wells, escritor, novelista, jornalista e sociólogo inglês, autor de clássicos da ficção científica, que, em discurso publicado em 30 de janeiro fala com otimismo do futuro, apesar da iminência da 2ª Guerra Mundial:1
“… Talvez, uma vez mais, as nações se entrechocarão. Tudo isso não impedirá que, segundo me parece, as invenções atualmente no ovo se desenvolvam. Através dos piores cataclismos, o mundo continuará a ser mundo, a vida a ser vida. O progresso passa por toda parte e é isso, creio, a lição essencial da história.
…
Nada me impede supor que a tendência ao bem-estar não se acentue nos próximos cinqüenta anos e que o homem médio de 1988 não conheça também condições de vida mais agradáveis do que as atuais, e tudo isso apesar de todos os alarmes da hora que passa.
…
Agora que lançamos um golpe de vista sobre hoje e como é sobretudo o amanhã que nos interessa, indaguemos das coisas futuras que, logicamente, devem derivar dos prolongamentos das coisas atuais. Há uma que salta aos olhos, sem dúvida a mais importante: o desaparecimento do círculo familiar.
Em 1888, o cidadão médio desta terra era, primeiro que tudo, chefe de família, ou em vias de o ser. habitualmente rodeado de sua mulher e de numerosos filho, ocupava uma casa distinta, a sua casa. Esta família fazia a sua roupa. Freqüentemente , mesmo os vestidos das crianças eram confeccionados pela mãe. Se se morava no campo, havia uma horta e os primeiros encanamentos de água não impedem que existisse ainda um poço. A instrução acabava aos treze anos e desde então as crianças ajudavam em casa. Aquilo que sabiam recebiam-no da família. Fundar e manter um lar, eis o que significava a vida do cidadão médio de 1988. Vida intensa e estreita. Apenas alguns amigos, a maior parte da vizinhança, compunham o círculo de visitas. Para as relações sociais, o homem dirigia-se ao café. Toda idéia nova era considerada intrusa.
Atualmente, tal vida tornou-se impossível, e dissolve-se sob nossas vistas. O número dos filhos diminui. A sua colaboração desapareceu. O lar consiste em três cômodos, num prédio imenso. O apartamento expulsou a casa. A escola de grandes janelas luminosas tornou-se, para os moços, o centro de uma vida vasta, mais clara, mais sã.
….come-se no restaurante. Manda-se a roupa à lavanderia. A vida familiar cede o passo a vida social. O interesse geral está cada vez mais acima do interesse particular. E não há razão para que não continue a ser assim.
Por isso, ser-me-á permitido, sem grande risco de erro, deduzir que em 1988 a vida cotidiana será muito menos fechada, muito mais aberta do que em 1938. A comunidade centrada na escola substituirá a família por toda a parte. O homem e a mulher desses tempos serão menos reservados, menos mesquinhos, menos invejosos. Reinará a fraternidade e o desinteresse. Haverá homens verdadeiramente livres, puros, agradáveis, que terão, creio eu, em média, alguns centímetros a mais de altura.”
Como elementos que se destacaram na tomada de rumo para a efetiva tutela dos interesses dos consumidores destacam-se:
- crescimento em espiral da procura e oferta de bens de consumo, nas sociedades industrializadas, mas também naquelas que estão em vias de desenvolvimento, para a satisfação de necessidades nem sempre reais ou corretamente hierarquizadas (consolidação da sociedade de consumo);
- a pressão das massas dos consumidores sobre a quantidade e qualidade dos produtos, que tanto se explica como uma força da procura global (soberania do consumidor), como pela sugestão e condicionamento da organização dos produtores;
- a crescente organização dos consumidores, seja pela forma de associações ou cooperativas de consumo, seja pela sua ligações à associações sindicais ou outras forças reivindicativas;
- finalmente, pela recepção de todo este movimento pelas superestruturas estatais, seja na forma do seu reconhecimento na planificação econômica, seja pela efetiva criação do direito positivo atinente à matéria.2
Consolidada, através desse breve relato histórico, a efetiva, sucessiva e irreversível inserção nos ordenamentos jurídicos de diversos países da adequada tutela dos direitos e interesses dos consumidores e, mais modernamente, de força normativa apta a provocar o eficiente equilíbrio das chamadas relações de consumo, destaca-se como seu princípio geral e comum a eficiente defesa da melhor qualidade de vida de todos os cidadãos e dos consumidores, em especial.
No plano nacional, dentro da área legal, definitivo marco na garantia da efetiva proteção da relação de consumo, com a necessidade da criação de norma que, municiando o lado mais frágil dessa relação – o consumidor – com garantias legais, efetivamente tuteladas e asseguradas, foi a promulgação da Carta Constitucional de 1988.
Miriam de Almeida Souza , ao escrever “A Política Legislativa do Consumidor no Direito Comparado”3, entende que o consumidor merece a proteção que lhe é dada pela lei porque ele é economicamente hipossuficiente na relação de consumo. É também reconhecido, em comentário ao CDC4, pelo Prof. José Geraldo Brito Filomeno o reconhecimento da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor como sua característica marcante.
É indiscutível que a proteção jurídica dada ao consumidor, pela tutela e proteção de seus interesses, cumpre a nova determinação constitucional e, mais importante, atende aos anseios que o panorama histórico da vida sócio-econômica, como bem demonstrado acima, buscou valorizar e tutelar positivamente através dos sistemas jurídicos de todos os países de avançada economia de mercado.
Tem-se, então, que já a Constituição determina ao Estado estabelecer a Política de defesa dos interesses dos consumidores e, preventivamente, que este pode e deve intervir na ordem econômica a fim de prevenir qualquer lesão a estes interesses.
Esta situação é totalmente condizente com a noção de função social do direito.
Na medida em que aceitamos e nos amparamos na visão concebida pelo eterno jurista e professor Miguel Reale que aborda de maneira tridimensional e dinâmica o direito, onde a norma, o fato e o valor encontram-se em subsistemas interativos e indissociáveis.
Portanto, evidente o reconhecimento de que o modelo de organização econômica da nossa sociedade é o sistema capitalista com irreversível e vital abertura da economia para o mercado globalizado, seja regional, através do Mercosul, seja em esfera maior dimensionada.
Para o professor Nelson Nery5 Junior a defesa do consumidor, mais do que ser ela mesma instituída como garantia constitucional é, ao lado da livre iniciativa, princípio constitucional geral da própria ordem econômica. E, ainda que, por ventura, esses pudessem vir a, em determinado momento se contraditarem, a própria força de interpretação lógica da Carta, força o intérprete a busca a sua harmonização.
Rui Stoco, de maneira concisa assim faz o apanhado das disposições constitucionais atinentes à matéria:
“A Constituição Federal de 1988 demonstrou a grande preocupação do legislador constituinte com o consumidor, resgatando um atraso considerável em nossa legislação, ao contrário de outros países em que a força do consumidor é fantástica e impressionante, apoiado por entidades públicas e privadas, vivamente interessadas em sua proteção efetiva e permanente.
No art. 5º, inciso XXXII, declarou ser obrigação do Estado a defesa do consumidor. No art. 24, inciso VIII, estabeleceu a competência da União, Estados e Distrito Federal para legislar, concorrentemente, sobre a responsabilidade por dano ao consumidor, Outras disposições acerca do consumidor encontram-se nos artigos 150, §5º e 170, V.
Finalmente, previu-se nas Disposições Constitucionais Transitórias (art. 48) a elaboração do código do Consumidor, no prazo de 120 dias.6″
Destas preciosas ponderações destaquemos o ponto que nos interessa e que implica que o Estado deverá promover a sua defesa (CF, art. 5º, XXXII), bem como o que dispõe que a ordem econômica deverá respeitar como princípio básico, entre outros, a defesa do consumidor (CF, art. 170, V).
Quem avaliza a propriedade destes mandamentos constitucionais é o festejado autor italiano Guido Alpa ao afirmar “não se pode falar de tutela do consumidor sem envolver, necessariamente, o problema do controle da atividade empresarial. Tutela do consumidor e controle da iniciativa econômica privada são dois aspectos do mesmo fenômeno. A história do primeiro é contextualmente a história do segundo.”
Esta é, no nosso entender a base da política de defesa do consumidor, que aqui deve ser entendia, não só como a sucessão ou conjunto de atos práticas relativas a um estado ou sociedade, mas conjugando-se com a sua função de “intenção”, “plano” ou “programa”.
Desta maneira, pelo menos por força legal, podemos dizer que Wells estava correto em suas projeções de um futuro onde a o interesse geral está cada vez mais acima do interesse particular, efetivamente fazendo com que seja uma busca da sociedade valores menos reservados, individualistas, mesquinhos e invejosos.
Estás certeza, no nosso País, se dão pelos preceitos constitucionais do estado democrático de direito, da dignidade da pessoa humana e da busca pela qualidade de vida, valores que estão arraigados em nosso ordenamento jurídico, por coincidência, desde 1988.
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1. “100 Discursos Históricos”, organização de Carlos FIGUEIREDO, Belo Horizonte, Ed. Leitura, 2002, pág. 295
2. Almeida, Carlos Ferreira “Os Direitos dos Consumidores”, Livraria Almeidina, Coimbra, 1982, págs. 29 e 30
3. Miriam de Almeida Souza, “A Política Legislativa do Consumidor no Direito Comparado”, Edições Ciências Jurídicas, Belo Horizonte, 1996, págs. 45 e segs..
4. “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor” – comentado pelos autores do anteprojeto, ed. Forense Universitária, São Paulo, 1991
5. “Os Princípios Gerais do Código de Defesa do Consumidor” in Direito do Consumidor, volume 3, Ed. RT, São Paulo, 1992, pags. 44 e segs.
6. “Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial
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*escritório Bottallo e Gennari Advogados. Mestrando em Direito das Relações Sociais – Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor Titular das Cadeiras de Teoria Geral do Direito Privado e Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Santo Amaro. Professor da Cadeira de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.
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Atualizado em: 1/4/2003 11:49