Livros didáticos e direitos de autor em disputa
Ricardo Pinho*
Tramita, na Câmara Federal, a Proposição de Projeto de Lei n° 1.888/2003, que acrescenta um inciso ao Artigo 46 da Lei n° 9.610/98 – Lei de Direitos Autorais, com o seguinte teor:
“Artigo 46: Não constitui ofensa aos direitos autorais:
(…)
IX – a reprodução parcial ou integral, em livro didático destinado à educação regular, da obra intelectual de qualquer gênero, na medida justificada para o fim educacional e desde que explicitados sua autoria e demais elementos identificadores. “
Na sua justificação, os autores da proposição a defendem sob diversos aspectos, deixando claro que a atual Lei de Direitos Autorais possui uma lacuna no que concerne ao livro didático que deve ser suprida e que a aplicação dos incisos III e VIII, do mesmo Artigo 46 da Lei de Direitos Autorais “tem se revelado insuficiente quando da reprodução de obras intelectuais protegidas no livro didático.”
Será mesmo?
Dizem os incisos III e IV, do Artigo 46, da Lei de Direitos Autorais:
“Artigo 46: Não constitui ofensa aos direitos autorais:
(…)
III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim de atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra:
IV – o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia de quem as ministrou;”
O legislador esqueceu-se de acrescentar a seu estudo, a exceção também contida no inciso VIII, ainda do Artigo 46, onde se lê:
“VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.”
Permitimo-nos discordar dos autores da proposição, para dizer que o inciso IX, o qual se pretende acrescer ao Artigo 46, da Lei de Direito Autoral, é de todo desnecessário e as exceções dos incisos III, IV e VIII aos direitos do autor são mais do que suficientes para o alcance dos objetivos pretendidos pela proposição de projeto de lei em questão.
É evidente que o inciso III, do Artigo 46, da Lei de Direitos Autorais, quando fala em livros e qualquer outro meio de comunicação, inclui o livro didático, ainda mais quando se refere expressamente à reprodução para fins de estudo.
Da mesma forma, o inciso IV, do referido artigo, permite a reprodução de lições por quem às quais se destinam, ou seja, pelos próprios alunos. Numa interpretação extensiva – se bem que as exceções não devam ser interpretadas extensivamente – permite que os alunos reproduzam, para seu próprio uso, as lições de livros didáticos.
O inciso VIII vai mais longe, para permitir a reprodução em quaisquer obras – de novo, evidentemente abrangendo o livro didático – de qualquer obra, sendo permitida, nos casos de obras plásticas, sua reprodução integral.
Qual, então, o motivo da proposição de tal projeto de lei?
A diferença é simples. Enquanto a Lei de Direitos Autorais permite a reprodução de passagens, de apanhados e de pequenos trechos – exceção feita, como já visto, às obras plásticas – ou, em outros termos, a reprodução de parte ou parcial de obras protegidas, o inciso proposto permite a reprodução integral de obra intelectual de qualquer gênero.
Cabe indagar: a autorização para a reprodução integral de obra intelectual protegida é realmente necessária?
Segundo os autores da proposição de projeto de lei, sim. Sim, porque as atuais exceções da Lei de Direitos Autorais são insuficientes com relação a “reprodução de obras intelectuais protegidas no livro didático, o que gera uma verdadeira insegurança para a atividade editorial dirigida ao livro didático, que está obrigada a seguir as normas relativas a educação.” Também deveria dizer que esta atividade, tal como qualquer outra, está, igualmente, obrigada a respeitar a Lei. E prossegue a proposição, para afirmar que a exceção proposta é necessária “para garantir a efetiva realização da educação, inclusive, nos moldes propostos pelo próprio Ministério da Educação.”
Será que, por exemplo, traz ao mercado editorial em geral mais segurança saber que todas as obras publicadas – inclusive aquelas recentemente publicadas – podem ser reproduzidas integralmente por todo e qualquer livro que se qualifique como livro didático?
Será que traz mais segurança ao mercado editorial, em especial ao mercado editorial de livros didáticos, saber que essas mesmas obras – que são obras intelectuais protegidas por direito de autor – podem ser reproduzidas integralmente dentro de outros livros que se qualifiquem como livros didáticos?
Será que os autores – inclusive aqueles de livros didáticos – se sentirão incentivados a produzir mais obras?
Na proposição do projeto de lei fala-se muito em na “efetiva realização da educação” e no princípio constitucional de “acesso ao ensino e à educação como dever do Estado para o desenvolvimento de uma nação”. Mas será que permitir a reprodução integral de uma obra intelectual contribui para que uma nação alcance melhores níveis de educação e ensino? Não parece óbvio que educar também compreende fazer com que a Lei seja respeitada e, não, excepcionar a Lei? Que dizer de uma nação que, seja a que título for, pretende permitir que o trabalho intelectual de suas mentes mais brilhantes possa ser reproduzido e explorado comercialmente, sem que seu autor tenha direito a qualquer remuneração por tal utilização?
É certo que os direitos de autor – a que também denominamos propriedade intelectual – equiparam-se a direito de propriedade, pois se o homem pode tornar-se proprietário de coisas que lhe são externas, com muito mais razão pode ser proprietário daquilo que cria com seu trabalho intelectual e exterioriza para o mundo.
É certo, por outro lado, que, como determina a Constituição Federal, a propriedade deve atender à sua função social. Mas qual é exatamente a função social de uma obra intelectual?
Uma obra intelectual não tem função se não é exteriorizada. Aquilo que o autor intelectual cria e guarda para si, não tem função para a coletividade. Portanto, não tem função social. Mas, ainda assim, a lei lhe dá proteção, porque o autor tem o direito de manter a obra inédita (Artigo 24, inciso III, da Lei de Direitos Autorais).
A obra exteriorizada, alcança a sua função social sob diversos prismas, porque é na exteriorização que se revela à coletividade e revela o objetivo de seu autor. A educação e o ensino podem ser os objetivos de uma obra intelectual, mas não são, por excelência, os únicos objetivos através dos quais as obras intelectuais, enquanto propriedade, alcançarão sua função social.
Portanto, se o Estado – e o ordenamento jurídico – exige que a propriedade intelectual realize a sua função social, deve, em primeiro lugar, possibilitar sua exteriorização à coletividade, o que, evidentemente, não se faz retirando o direito exclusivo de utilização que é conferido ao autor.
A obra intelectual – em que lhe pese o respeito à origem – uma vez exteriorizada, pode converter-se em produto, ser produzida e comercializada – sem perder a qualidade – em escala industrial e trazer à coletividade, os benefícios que lhe traz toda e qualquer atividade econômica – empregos, impostos etc. – e, ainda, o benefício de multiplicar o conteúdo da obra em si.
O Estado pode, portanto, incentivar a atividade editorial para fins de ensino e educação através de meios que lhe são próprios e à custa do erário público – que se traduz como sendo às expensas de toda a coletividade – sem ter necessidade de sacrificar o direito de autor e os próprios autores.
Mas, ainda assim, exceções de direitos ou concessão de benefícios e incentivos para determinadas atividades econômicas – ainda que para aquelas que têm a educação ou o ensino como pano de fundo – devem ser avaliadas com cautela e distribuídas com ponderada moderação, sob pena de onerar-se a coletividade imerecidamente. Não se deve fazer da exceção, a regra, sob pena de serem criadas “reservas” desnecessárias e apenas cômodas. Como sabemos, a experiência brasileira com reservas de mercado não apresenta saldo positivo.
A proposição de projeto de lei, por outro lado, parece ser extremamente impertinente. Nesse momento em que se busca combater a “pirataria” em muitas frentes, não parece ser conveniente que se faça uma exceção ao direito de autor para permitir uma modalidade de exploração não remunerada de sua obra protegida.
Assim, parece que o quê os autores da proposição do projeto de lei pretendem, na realidade, é uma desapropriação esdrúxula das obras intelectuais – ou de algumas delas – de modo a possibilitar que o Estado, através da iniciativa privada – posto que através da “atividade editorial dirigida ao livro didático” – cumpra o seu dever de prover à sociedade com educação e ensino.
Permitir a reprodução integral sem qualquer remuneração ao autor é, repita-se, promover uma desapropriação esdrúxula. Isso porque – como bem lembrado pelos autores da proposição – toda a propriedade pode ser desapropriada por “necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social,” – ainda que não vislumbremos, nas dificuldades da “atividade editorial dirigida ao livro didático” nenhum desses fundamentos – porém, sempre “mediante justa e prévia indenização em dinheiro.”
A exploração das obras intelectuais sem remuneração, não é, nem mesmo, desapropriação, porque lhe falta a justa indenização. Sem justa indenização, como pretende a proposição de projeto de lei, ora em exame, tem-se, na verdade, expropriação. Tem-se o sacrifício dos autores por um pretenso aprimoramento da educação e do ensino. Até que não haja mais autores, nem obras, nem a quem ensinar e educar.
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* Sócio do escritório Daniel Advogados
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Atualizado em: 11/2/2004 12:37