A ação cautelar para atribuir efeito suspensivo a recurso de apelação: legitimidade passiva da Fazenda Pública?
Rogerio Licastro Torres de Mello*
Se o assunto é a necessidade de majoração dos resultados práticos que se colima sejam hauridos por via do processo civil, um dos motes prediletos do interessados na questão da chamada “crise de efetividade” é a excessividade dos meios recursais postos à disposição dos que contra si têm proferida uma decisão judicial desfavorável.
Uma das críticas mais agudas arrima-se na regra da suspensividade automática dos recursos de apelação, fator responsável pela impossibilidade de tornar executáveis desde já (ainda que provisoriamente) a maior parte das sentenças proferidas nos foros pátrios. O rol de sentenças que comportam execução provisória na pendência da apelação é diminuto, sendo que o artigo 520 do Código de Processo Civil concentra quase que a totalidade das ações que, mesmo sentenciadas em primeiro grau, comportam executividade provisória.
Mas esta realidade (a excepcionalidade das hipóteses de executividade provisória) encerra, a nosso ver, inaceitável paradoxo: mesmo existindo um pronunciamento judicial decisório monocrático que abrande sobremaneira, em benefício do vencedor, o cenário de dúvida peculiar à aurora de qualquer ação judicial, por que o legislador processual civil optou pela dúvida em benefício do sucumbente monocrático, atribuindo-lhe o amplo e oportuno (para o vencido em primeiro grau) anteparo da suspensividade automática da apelação na maioria absoluta das demandas? A suspensividade da apelação como regra significa, em essência, dizer que o vencedor monocrático tem de esperar longos meses, anos até, para, tão-só após apreciada a apelação pelo tribunal, ver seu direito satisfeito, caso mantida a sentença que lhe fora favorável já quando do julgamento na instância proemial.
Não é de hoje, pois, que se sustenta a ampliação das possibilidades de execução provisória (ou até a sua transformação em regra, tolhendo-se a vigente regra da suspensividade da apelação) como atalho para a adesão de maior eficácia ao direito processual civil.
Mas, se a querença por maior efetividade processual pode encontrar lastro na defesa da regra da executividade provisória em substituição à norma da suspensividade da apelação, paradoxalmente é possível afirmar que em cada embate judicial cuja sentença seja passível de apelação sem eficácia suspensiva (os casos de apelação com efeito exclusivamente devolutivo) concentra-se um foco de potencial inefetividade, já que muitas das vezes a aplicabilidade imediata da sentença apelável apenas com efeito devolutivo pode precipitar uma situação de perecimento de direitos, mormente se esta decisão executável já quando da sentença de primeiro grau for evidentemente equivocada, continente de erro flagrante ou, à parte estas hipóteses, a situação julgada na instância inicial simplesmente revestir-se, uma vez engendrada sua executividade provisória, de risco de dano irreparável ou de difícil reparação caso não seja excepcionalmente dotada de efeito suspensivo a apelação que originalmente não o tem.
Esta possibilidade já exigiu a atenção do legislador, dado que os recursos com eficácia unicamente devolutiva podem, mediante juízo de conveniência do magistrado relator, contar também com característica suspensiva da decisão contra a qual foram agitados, a teor do disposto no artigo 558 do Código de Processo Civil.
Assim, o jurisdicionado, caso tenha seu direito arriscado ante a potencial execução provisória de sentença apelável apenas devolutivamente, tem no relator do recurso de apelação a possibilidade de suspensão desta decisão tradutora de significativo dano potencial.
Este dispositivo legal, inserido no ordenamento processual recentemente, seguramente teve como um de seus escopos a redução do número excessivo de medidas cautelares autônomas que eram ajuizadas com a finalidade de obstar a executoriedade provisória de sentenças recorríveis apenas no efeito devolutivo.
Entretanto, não foi esta a conseqüência verificada após a introdução deste mecanismo de acautelamento na seara recursal. Em que pese o caráter louvável da iniciativa legiferante de atribuir ao relator do recurso, mediante simples requerimento da parte e sem necessidade de remédio processual mais complexo, o poder de suspender a decisão conforme o exame de seu potencial prejuízo ao recorrente, ainda hoje se nota que as cautelares autônomas com tal finalidade soem ocorrer, o que significa admitir que ao mecanismo previsto no artigo 558 do Código Processual Civil não vêm sendo destinados a atenção e utensílio devidos, seja pelo jurisdicionado, seja pelo órgão jurisdicional (que pode, aliás, aplicá-lo de ofício, já que não deixa a hipótese de cuidar de exercício de poder geral de cautela).
Não obstante, ainda que a lei processual preveja às expressas o cabimento de pleito ao magistrado para atribuição excepcional de efeito suspensivo a recurso que ex lege não o tem, de rigor admitir, esgotada desfavoravelmente a possibilidade emanada do artigo 558 do CPC com o indeferimento da suspensão recursal, que a via última de acautelamento que resta à parte consiste na medida cautelar autônoma, em que se requer ao tribunal a adesão deste efeito suspensivo ao recurso de eficácia exclusivamente devolutiva.
Estabelecidas estas ponderações, afere-se que a neutralização da situação de risco de perecimento de direito em virtude de decisão impugnável por recurso sem eficácia suspensiva ainda pode concentrar-se no aforamento de ação acautelatória independente, mormente se indeferida a tentativa de aplicação do contido no precitado artigo 558 da codificação processual. Porém, esta alternativa de acautelamento (a ação cautelar autônoma perante o tribunal ad quem), pelo fato de se materializar por via do exercício do direito de ação, apresenta-se mais formalizada, adstrita à atenção de requisitos obviamente mais complexos que aqueles ínsitos ao simples requerimento que tem no artigo 558 do CPC seu arcabouço legislativo. Ex positis, o aforamento da cautelar, ad exemplum, impõe ao seu utilitário a observância das condições da ação, e justamente deste microcosmo desgarra-se interessante constatação: se excogita-se de ação autônoma, destinada à tutela de uma situação jurídica particular, distinta da originária, é à luz deste novel circunstancial (em que são novos a causa de pedir e os “atores” da relação jurídica controvertida) que serão assumidos as condições da ação, seus elementos e os pressupostos processuais, todos aferíveis em consonância com fatores não exatamente idênticos àqueles que animaram o autor da ação principal.
Considerando-se este cenário de independência entre a ação dita principal e a ação cautelar autônoma (cuja necessidade deriva de ser a sentença da primeira apelável apenas devolutivamente), algumas peculiaridades eclodirão, dentre elas a definição da legitimação passiva desta cautelar de suspensividade recursal.
O exame das legitimidades na senda do processo cautelar passa, de ordinário, pela estipulação de quem se vê vitimado (ou ameaçado de sê-lo) por um situação de potencial perecimento de direito – caso em que se afere a legitimação cautelar ativa – e pela investigação de quem vem a ser o suposto agente provocador desta situação de perigo de fenecimento de um direito – hipótese conformadora da legitimação cautelar passiva.
Dúvidas não existem no que toca à legitimação ativa para a demanda cautelar concebida para a situação em exame. Contudo, a mesma placidez não se debruça sobre a legitimação passiva para tal demanda.
Se, no âmbito do processo cautelar, a legitimidade passiva concentra-se ordinariamente na pessoa física ou jurídica de quem deflui o perigo de perecimento do direito a final debatido, na hipótese em análise há que se admitir que o risco de perecimento de direito (que advém da não suspensão da sentença apelável no efeito unicamente devolutivo) foi provocado não pela parte contrária da ação principal, mas sim avolumou-se ante o indeferimento, pelo órgão jurisdicional, do pleito de adesão do efeito suspensivo ao recurso de apelação que originalmente não o possui.
Nesta linha de raciocínio, sendo certo que o móvel desta ação cautelar, mormente na hipótese que sugerimos (de corriqueira ocorrência na praxis forense) é o indeferimento da suspensão do artigo 558 do CPC pelo órgão jurisdicional, antolha-se impossível atribuir à parte contrária da ação principal a legitimidade passiva para esta cautelar, pelo simples fato de dela não provir o risco enunciado na cautelar.
De outra banda, se a situação de perigo não é protagonizada pela parte adversa, o horizonte de hipóteses que se perfaz permite, a nosso ver, solteiro desfecho: se o autor da cautelar em debate pretende precaver-se contra o indeferimento da suspensão da sentença apelada, e sendo extreme de questionamentos que esta decisão de indeferimento do pedido arrimado no artigo 558 do Código de Processo Civil não proveio da parte contrária da ação principal, a trilha de aferição desta legitimação passiva desembocará na esfera do órgão jurisdicional responsável pelo denegação da suspensão prevista no artigo 558 do CPC, responsável pelo risco contra o qual se volve o autor da ação cautelar. Noutros termos, a legitimação passiva desta ação cautelar, consoante este encadeamento de idéias, seria estipulada tendo em vista a figura do agente público indeferidor da suspensão da ordem, o que significa dizer que a parte passiva legítima para responder a esta cautelar seria o Estado da Federação continente do Poder Judiciário integrado pelo órgão jurisdicional denegatório da suspensão requerida.
A conclusão epigrafada pode, se objeto de uma primeira e superficial mirada, provocar espécie. Todavia, a dissecação dos elementos componentes do quadro fático sugerido (quadro este que não se afigura sui generis na prática) não permite voltar a ação cautelar face à contraparte da ação principal; porém, o exame linear dos componentes deste quadro isola a figura do órgão jurisdicional, que em juízo será representada pela Fazenda Pública, como artífice do perigo que se pretende evitar pela via cautelar, o que faz por definir a legitimação passiva desta ação.
Quanto à parte contrária da ação originária, é de bom alvitre seja intimada da propositura da demanda cautelar e de seus atos processuais como terceira juridicamente interessada em virtude de, ainda que reflexamente, ser-lhe possível suportar conseqüências em sua esfera jurídica por conta do desfecho desta hipotética ação cautelar, sendo a mais relevante destas a impossibilidade de dar início à execução provisória da sentença cuja suspensão é requerida pela via cautelar.
De remate, registre-se que a importância da questão aqui apresentada evidencia-se ante o fato de cuidar de uma das condições da ação. Neste sentido, a eleição da parte passiva legítima para participar da relação processual cautelar significa satisfazer questão de ordem pública, cognoscível de ofício e de cujo desenlace depende a higidez e a admissibilidade do pleito de prestação jurisdicional. Inolvidável que, sendo a legitimação um assunto visceralmente conectado ao interesse de agir (este, como necessidade da prestação jurisdicional, junge-se àquela como que fonte conformadora, porque legítimo para demandar ou ser demandado será o titular da necessidade de tutela ou o criador da necessidade de tutela do oponente), não é admissível tratá-lo sob viés fenomenológico, estático, como ocorreria se simples e mecanicamente aceitássemos que o legitimado passivo da ação cautelar de atribuição de efeito suspensivo a apelações fosse o oponente da ação principal de que tirado o recurso.
Como se vê, o debate que se sugere no presente texto dista do mero preciosismo técnico, posto ingressar de todo na seara do justo direcionamento subjetivo da atividade processual.
Veras, à luz do que comanda nosso ordenamento processual civil e do que exala da experiência forense, uma das mais intrincadas questões processuais que se impõe quando do processamento de qualquer pleito de atuação do Poder Judiciário diz respeito à permissividade legal de se dirigir ao Estado-juiz pretendendo-se deste uma atuação (seja de natureza cautelar, cognoscitiva ou executiva). Esta permissão, por assim dizer, de se dirigir ao Judiciário atende pelo nome de legitimidade ad causam, ou seja, a condição de parte legítima a demandar do juiz um bem da vida em face de outrem.
Este direito de fazer movimentar a atividade jurisdicional estatal, ante a própria magnitude de que se reveste (porque é dos liames de maior proximidade entre o indivíduo e o Estado, porquanto invariavelmente traduz pleito de invasão da esfera jurídica alheia em busca de bem vital e traz consigo, imanente, a idéia de litígio, dado que acarreta a movimentação de complexo e dispendioso aparato estatal, para citar apenas algumas peças componentes desta miríade), não se apresenta absoluto. Seus maiores óbices, ou requisitos, atinem à satisfação de determinados requisitos pré-meritórios, a saber, as condições da ação, dentre as quais a legitimação para agir.
En passant, aos que poderiam imaginar o interesse de agir como condição da ação umbilicalmente vinculada à questão da legitimação passiva do Estado nas causas em que se pretende adesão de efeito suspensivo a recurso que não o tem e cuja suspensividade também lhe foi negada pelo relator, temos a registrar que não identificamos esta conexão temática com colores de tamanha proximidade.
O interesse de agir, antes de exigir perquirição no sentido de se aclarar “contra quem agir”, traz em seu âmago a pergunta sobre “a necessidade de requerer a atuação do Estado-juiz”, ao que depois se seguirá o exame do direcionamento desta atuação estatal (assunto jungido ao exame das legitimações passivas). Assim, na hipótese que nos conduziu ao estudo em apreço, se o interesse de agir se conjuga com a real necessidade de se requerer do Judiciário a suspensividade de determinado recurso (por razões de perigo na demora do processo, por exemplo), o passo seguinte, assim vislumbramos, atine à definição de quem provocou esta necessidade de busca de socorro judicial (quem, imediatamente, indeferiu a adesão de efeito suspensivo a recurso que naturalmente não o tem). Conforme este escalonamento, digamos, topológico quando do exame das condições da ação, entendemos a legitimidade passiva como mais cerradamente atrelada à condição de réu do Estado em casos como o sub examine.
Atribuindo-se ainda maior elastério às conjecturas que lavramos, pode-se, por que não, enxergar o tema sob viés político-processual.
Se, além do escopo precípuo e imediato de funcionar como instrumento de assunção da lei, aplicando-se-a ao caso concreto, o processo também assume revestimento político (porque, em linhas amplas, é autêntico elemento de harmonização social e de atingimento de fins políticos, em que reside a justaposição de interesses interindividuais), não podemos nos escusar de concluir que, a cada demanda que faça desencadear um processo indevidamente em face de alguém ilegítimo para tanto (como pensamos ocorrer com a inclusão da parte adversa da ação principal no pólo passivo da cautelar de suspensividade recursal) enceta-se um foco despiciendo e ilegal (sob o viés processual positivo) de conflito, exigindo do sujeito passivo indevidamente eleito para o processo o dispêndio injusto de recursos materiais, além de inseri-lo, repita-se, ilegitimamente em cenário de beligerância processual.
A propósito de eventuais entraves, antipatias ou pontos de estrangulamento que possam ser identificados em decorrência da materialização das idéias aqui propostas (referimo-nos, adrede, a elementos como a ampliação dos prazo processuais para o Poder Público em juízo), ponderamos que sucumbem de todo defronte da intangibilidade de um instituto processual civil como a legitimação passiva. Criticar a conseqüência sem se lograr a demonstração da inconsistência da causa soa é postura que desgarra da higidez de qualquer debate ideológico.
Portanto, constatando-se (i) a impertinência subjetiva passiva da parte adversa da ação principal quando do aforamento da ação cautelar para atribuição de efeito suspensivo à apelação que não o tem e (ii) ser incidente sobre o órgão jurisdicional a responsabilidade pela situação de perigo que se pretende acautelar (porquanto é o órgão jurisdicional o criador do risco ante o indeferimento da suspensão recursal), opina-se pela pertinência subjetiva passiva da Fazenda Pública à qual filia-se o órgão jurisdicional negador da suspensão em apreço para responder aos termos da ação cautelar de suspensão recursal, com o que cremos restará satisfeita esta condição para o exercício do direito de ação.
De remate, releve o leitor o muito de ponderações na exigüidade de espaço e ausência de reminiscências de rodapé. Pretendeu-se, muito mais que responder, encetar uma indagação e um protótipo de resposta, ambos surgidos no exercício da advocacia, manejando-se conceitos destituídos de maiores polêmicas e aguardando-se o ânimo dos interessados em contribuir com o debate.
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* mestrando em Direito Processual Civil na PUC/SP, escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Advocacia.
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Atualizado em: 1/4/2003 11:49