Magistratura democrática e reforma do Judiciário   Migalhas
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Magistratura democrática e reforma do Judiciário – Migalhas

Magistratura democrática e reforma do Judiciário*

Dyrceu Cintra*

Quando se fala em reforma do Judiciário, logo vem à mente a palavra crise.

Gramsci definia a crise como sendo a situação em que o velho já morreu e o novo ainda não tem condições de nascer.imagem10-12-2021-13-12-53

O Judiciário brasileiro está em crise. Seu modelo está esgotado. Não atende às necessidades atuais.

Mas ainda não se concebeu um modelo novo. E nada garante que dos debates no Congresso Nacional, da votação do texto da reforma do Judiciário, na atual legislatura, saia este modelo.

E isto por diversos motivos, dentre os quais o de que a mera reforma constitucional poderia significar, dependendo do teor, apenas o início de uma real abordagem dos problemas que afetam o Judiciário, que estão ligados a uma crise maior que é a crise do próprio Estado.

Entendo que os resultados obtidos até agora pouco destaque deram à necessidade de maior acesso à Justiça.

A reforma esboçada atende apenas aos interesses da Administração Pública, ao tão falado e divinizado “mercado” e às recomendações de organismos internacionais, expressas em documentos nem sempre divulgados mais abertamente. Busca concentrar nas altas esferas do Judiciário o poder de decidir as questões que interessam mais diretamente aos grandes grupos econômicos e à Administração, desprezando a base do sistema.

É a fórmula oferecida ao capital estrangeiro, que exige perfeita previsibilidade das decisões do Judiciário, o que não parece possível num país tão multifacetado, com grandes injustiças sociais e uma legislação repleta de contradições e inconstitucionalidades.

Eu pergunto: seria possível “organizar” democraticamente o Judiciário para que dele emergisse essa previsibilidade de decisões tão desejada, sem que isto signifique enormes lesões aos direitos das pessoas?

Parece-me que não.

É crescente a onda de flexibilização de direitos sociais. O desemprego aumenta. Para sobreviver, as pessoas abrirão mão de direitos historicamente conquistados. Isso não ocorre só no Brasil. Mas aqui tende a ser pior por causa da histórica omissão das elites econômicas e dirigentes em dar cidadania à população.

Aumenta a população de rua nas grandes cidades. No campo, já não há mais camponeses. Nas estradas, há sem-terras e busca de um lugar em que possam viver e produzir.

Que modelo econômico é este? É o determinado pelo capital internacional, nessa terceira onde de globalização, que gera uma exclusão social sem precedentes.

Nem se diga “globalização”; é “globalismo” no dizer de Alberto Silva Franco, porque não tem uma dimensão plural. Não há “globalizações” com dimensões diversas (na comunicação, economia, ecologia, organização do trabalho, cultura, sociedade civil), mas, apenas, uma situação em que o mercado mundial desaloja o primado político e o substitui pelo econômico.1

Há livre circulação de bens e dinheiro. Não de pessoas. Muitos outros muros, invisíveis mas reais, foram erigidos no lugar do Muro de Berlim. Entre o México e os EUA; em Gibraltar, nas fronteiras do Leste Europeu.

Não falemos aqui de Bush, do terrorismo, dos retrocessos que os EUA vem imprimindo às relações internacionais, no desprezo deles pelo Direito Internacional, no mundo em crise, na humanidade em crise.

Fixemo-nos apenas numa frase do jornalista Clóvis Rossi, lançada logo depois do ataque ao WTC de 11 de Setembro: Não haverá paz no mundo enquanto conviverem miséria extrema e riqueza.

Mas essas questões todas, que alimentam a crise interna em que vive o Estado Brasileiro são importantes na análise da reforma do Judiciário.

Elas estão determinando uma certa feudalização das relações dentro do território e um descarte do Estado em muitos aspectos.

Como nota Eric Hobsbawn, já houve quem imaginasse “um planeta no qual as unidades básicas não seriam os Estados, mas as grandes corporações”, ou seja, “um mundo dividido não mais em termos geográficos”.2

Temos que ter em conta que a economia global existe; a sociedade global, o Estado global e o governo global, não.

Há uma nítida tensão entre o Estado-nação e a economia transnacional, uma faixa estreita na qual se “poderá reinventar o Estado-nação, ou os consórcios de Estados-nações como pólo de resistência à globalização hegemônica”.3

Pois dessa tensão surge a necessidade presente de juízes para proteger mais imediatamente direitos de pessoas comuns contra os altos interesses do capital.

E tem ocorrido, por conta disso, uma certa transferência de legitimidade do sistema democrático dos setores políticos tradicionais para o Judiciário, que por óbvio não corresponde às expectativas e não está preparado para esse papel, gerando, de qualquer forma, protagonismo dos juízes, tensão entre o poder político e o judicial, judicialização da política e politização do judicial.4

Como revela o sociólogo Português Boaventura de Souza Santos, a nova situação determinada pela economia implica mais violações dos direitos humanos, agora não mais pelo Estado, mas por agentes privados. O problema não é mais o Estado autoritário, mas as novas formas de fascismo societal protagonizadas pelos atores econômicos, que tem poder de veto sobre os cidadãos, impondo, por exemplo, cláusulas leoninas nos contratos sem que as pessoas possam deixar de aceitá-las.5

Daí não faça muito sentido a pretensão de “organizar” por meio de reforma constitucional ou de leis, um certo padrão interpretativo “para já”, até porque, no dizer de Alberto Silva Franco, “uma sociedade marcada por profunda exclusão social não se compatibiliza com o perfil de um juiz apegado ao texto da lei, insensível ao social, de visão compartimentada do saber, auto-suficiente e corporativo. E, acima de tudo, com um juiz que ainda não teve a percepção de que sua legitimação não se apóia na vontade popular ou nas leis de mercado, mas substancialmente na sua função central de garantidor dos direitos, que atribuem dignidade ao ser humano, e dos valores axiológicos incorporados aos modelos sociais que têm a democracia como uma garantia irrenunciável”.6

Há, nesse quadro a clara necessidade de uso pelo Judiciário de novos e até velhos, mas esquecidos, instrumentos e conceitos jurídicos, muito úteis para ir mudando gradativamente interpretações necessárias à preservação dos direitos humanos: Código de Defesa do Consumidor, teoria da imprevisão, tutela de interesses coletivos e difusos, inclusive das futuras gerações, contra agressões ao meio-ambiente ou para a adoção de políticas públicas de racionalização do uso de espaço urbano, por exemplo.

Destaca-se um sentido promocional do direito, para implementar mudanças nas relações entre as pessoas e entre essas e o Estado. Emerge uma atividade jurisdicional de matiz mais marcadamente constitucional. Afinal, a Constituição esboça um Estado democrático em que as pessoas têm direitos, ligados a interesses difusos, que têm de ser implementados. Ou seja, cabe também ao Judiciário participar dessa cada vez mais árdua tarefa de construir a democracia real.

Pois bem.

A Associação Juizes para a Democracia (AJD), à qual pertenço, acompanhou a tramitação legislativa da reforma do Judiciário: as diversas sugestões, o parecer do deputado Aloysio Nunes Ferreira, o parecer da deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, que foram os dois relatores da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, e, depois, a tramitação no Senado, em que foi relator o Senador Bernardo Cabral, até a votação, recentemente, na Comissão de Constituição e Justiça.

Quando a PEC tramitava na Câmara dos Deputados, a AJD foi ouvida pela Comissão Especial, apresentou sugestões concretas, muitas, até, encampadas, todas elas centradas num propósito: a questão do acesso à Justiça.

Antes, porém, dos comentários pontuais, é preciso dizer que mesmo que tenhamos uma reforma boa na concepção constitucional do Judiciário, não seria ela suficiente para resolver os muitos problemas da administração da Justiça em nosso país.

Existe um fator cultural que prepondera no alijamento do Judiciário do centro das decisões no Estado e que cada vez mais se agrava.

Os bacharéis têm uma tradição discursiva, linguagem arrevesada e falta de objetividade no trato de coisas por vezes muito simples. Gasta-se muito tempo com questões periféricas e formais. Os juizes e demais operadores do direito não têm formação voltada para aplicar o saber jurídico de modo a atender a demanda da sociedade contemporânea, que é fragmentada, heterogênea, em transição.

A magistratura, especificamente, guarda ranços do positivismo normativista, que mantém distante a preocupação com a justiça real. Cultiva demasiada reverência às cúpulas dos tribunais, reservando pouco espaço para criatividade.

O processo tradicional despolitiza o conflito, que muitas vezes é afastado sem ser resolvido.

Os operadores jurídicos de forma geral, e em especial os juizes, não estão preparados para dar respostas satisfatórias e eficazes para os conflitos inéditos da atualidade, que se caracterizam pela massificação e atuação dos corpos intermediários a questão dos interesses coletivos e difusos a que já me referi.7

Por isto é que foram criadas as Escolas de Magistratura. Estão previstas na Constituição (artigo 93, IV). Caberia a elas cumprir imagem10-12-2021-13-12-54o papel de mudar este estado de coisas. Aproximar mais o juiz dos problemas concretos que tem que julgar. Mas nem sempre cumprem. Deveriam, ser centros de pesquisa interdisciplinar, ligados às universi-dades. Mas se limitam a suprir as falhas do nosso lamentável ensino jurídico. Adotam posturas conservadoras, moldando o agir dos juizes mais novos ao pensamento dos mais antigos, que são, com seus fiéis e bem disciplinados discípulos, os exclusivos professores.

É bem verdade que a reforma de mentalidades não se faz da noite para o dia. Mas cabe à legislação criar condições objetivas para o início de um trabalho pedagógico e as Escolas de Magistratura foram um passo.

Há também a questão da reforma legislativa.

Muitas leis são responsáveis pela burocratização das relações, em sua maioria, leis antigas, anteriores à redemocratização do país.

Mas é difícil reformar os Códigos de forma abrangente com o sistema que temos, daí tenha sito usado o método das reformas pontuais.

E quando vêem reformas boas à legislação processual, o conservadorismo do ambiente jurídico chega a desvirtuar seu sentido.

Nota-se com relação aos Juizados especiais Cíveis, por exemplo, crescente burocratização e a prática de velhos padrões utilizados no Juízo Comum.

Ademais, se não vier lei que deixe clara a obrigatoriedade do procedimento do Juizado Especial em causas cíveis definidas como “de menor complexidade”, a idéia de uma justiça célere e despida de fórmulas estará comprometida. Isto porque dissemina-se na doutrina e jurisprudência, absurdamente, o entendimento de que é facultativa a via do Juizado Especial, podendo o autor optar pelo Juízo Comum.

Teremos em breve, portanto, não uma Justiça informal para causas de menor complexidade mas uma Justiça informal para pobres, com grave violação do princípio da isonomia.

Mas há pontos, evidentemente, em que reformas legislativas, constitucional e infraconstitucional, poderiam dar maior eficiência ao Judiciário.

A começar pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Quando da Constituinte de 1988, a subcomissão então encarregada do Judiciário havia proposto a criação de um Tribunal Constitucional, inspirado em modelos europeus, composto de juizes com mandato fixo.

Essa também havia sido a idéia do professor Fábio Comparato em seu anteprojeto de Constituição.8

Mas a idéia não vingou.

As modificações na competência do STF que emerge do texto atual da reforma poderá aliviar um pouco a Corte. Mas não será suficiente para dar a ela a roupagem de Tribunal Constitucional.

O STF poderia ter ministros indicados em igual número pelos três poderes da República, com mandato fixo.

O parecer do deputado Aloysio Nunes Ferreira não introduzia mudança alguma na composição do STF e pouco alterava sua competência. A deputada Zulaiê havia concebido algumas mudanças, que, infelizmente não vingaram, como o fim da ação declaratória de constitucionalidade.

Quanto à composição do STF, a única mudança veio recentemente, no Senado, com a previsão de que 2/3 dos ministros do STF devem ser oriundos da magistratura, o que atende apenas aos anseios corporativistas dos magistrados, não garantindo absolutamente nada quanto ao desempenho da Corte.

De qualquer forma, os ministros continuarão sendo nomeados pelo Presidente da República, sem previsão de listas ou indicações, mas apenas de aprovação pelo Senado.

Há um ponto positivo introduzido pelo senador Bernardo Cabral no Senado: a quarentena. Aquele que tenha ocupado certas funções (mandato de Presidente, Senador e outros ou cargo como o de Ministro de Estado ou Procurador Geral da República) nos últimos três anos não pode ser Ministro do STF.

O redimensionamento mais radical das funções do STF evitaria que tanto se falasse em súmulas de jurisprudência com efeito vinculante. Esta idéia, que constava da proposta do deputado Aloysio, acabou sendo aprovada, infelizmente, pela Câmara e, depois, na Comissão de Constituição de Justiça do Senado.

A fórmula do impedimento de recurso apenas no caso de aplicação da súmula não traz os mesmos inconvenientes da súmula vinculante, por manter viva a possibilidade de o juiz não aplicar a súmula, vindo a discussão a chegar ao STF. O processo dialético da jurisprudência não ficaria comprometido.

Não permitir que o juiz interprete a lei senão no sentido já fir-mado pelos tribunais superiores é providência que guarda nítido sabor de autoritarismo.

Tal controle interno das decisões judiciais, por meio de súmulas vinculantes, só res-ponde aos in-teresses de elites eco-nômicas e sobretudo dos governos que pretendem res-tringir aos órgãos de cúpula do Judiciário decisões de conflitos que interessem à tão propalada governabilidade, que quase sempre esconde desrespeito à Constituição e aos princípios que regem a ordem democrática.

Outro ponto de atenção diz respeito ao polêmico controle externo do Judiciário.

Em primeiro lugar, uma verdadeira reforma do Judiciário deve ter em mente a necessidade de que ele se manifeste sempre com total transparência, permitindo o controle difuso por qualquer cidadão.

Falta de transparência permite relações escusas e é porta aberta para a corrupção. Bom exemplo se tem na questão do prédio do TRT de São Paulo, cuja construção era acompanhada por uma comissão interna daquele tribunal, presidida, absurdamente, por um juiz aposentado, que não tinha mais cargo público nenhum.

Daí se vê a necessidade de modificar o artigo 93, IX, da Constituição Federal, que dá base às chamadas “sessões reservadas” dos tribunais. Exceções à regra da publicidade só encontram motivação razoável quando estejam em jogo interesses pessoais, com reflexos no direito à intimidade. Sob o manto do “interesse público” não se pode, contraditoriamente, admitir que se negue publicidade a atos de poder, que interessam a todos.

Nesse ponto, a sugestão da Associação Juizes para a Democracia (AJD) foi integralmente adotado, aprovado pela Câmara dos Deputados e pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Mas além da transparência, é preciso criar um órgão de fiscalização externa do Judiciário, do qual participasse, inclusive, a sociedade civil.

Isto poderia ser feito por Conselhos de Planejamento, em nível federal e em cada unidade federativa, aos quais caberia: (a) em primeiro lugar, funções decisivas, na administração do acesso à justiça, para planejar e modernizar a estrutura, implantar polí-ticas judiciárias, de acordo com a proposta orçamentária, exercer iniciativa legislativa concorrente com a dos tribunais, nas matérias em que aquela é exigível, e fiscalizar o respeito ao princípio do juiz natural; (b) em segundo lugar, funções propositivas e investigativas, por meio de um Ouvidor Geral, objetivando dar transparência aos procedimentos administrati-vos internos.

Cada Conselho, atuando decisivamente no estabelecimento de metas anuais de política judiciária e planejamento administrativo, no âmbito de cada estrutura, poderia auxiliar na tão esperada modernização da estrutura do Judiciário e na escolha de prioridades para melhor atendimento dos interesses maiores da população.

Por outro lado, a idéia de um Ouvidor Geral correspondente a cada estrutura autônoma responderia bem à necessidade de transparência. A ele caberia receber reclamações, encaminhá-las aos órgãos do Judiciário e do Ministério Público e acompanhar passo a passo as providências. Estariam incluídas em tal atividade as questões atinentes a faltas funcionais, promoções e remoções de magistrados, a serem decididas internamente, mas com a publicidade agora garantida.

Tais Conselhos poderiam ser integrados por representantes indicados pelos três poderes, pela OAB, pelo Ministério Público e pelas universidades, com mandato certo.

Neste tema, a abordagem inicial feita pelo deputado Aloysio Nunes Ferreira era inadequada. Seu relatório deixou de lado a idéia de fiscalização da sociedade sobre a administração do Judiciário para render-se à criação de um Conselho Nacional de Justiça, interno, erigido basicamente para ser um órgão punitivo.9

O texto final da deputada Zulaiê previa, mais adequadamente, a participação de membros de fora do Judiciário, mas em minoria.

Ora, todos sabem que é nas cúpulas dos tribunais que estão os maiores problemas. Juizes que cometem ilegalidades nem sempre são punidos como deveriam é porque as cúpulas, atuando sem a necessária transparência, muitas vezes são condescendentes. É preciso abordar essa questão por uma ótica ampliada. Uma fiscalização sobre as cúpulas.

Na votação final da Câmara, as idéias da AJD quanto ao tema da fiscalização foram incorporadas apenas quanto à criação de ouvidorias. Mas não houve a preocupação de que os ouvidores fossem pessoas alheias aos quadros do Judiciário, com amplo poder de requisição de papéis.

Não se tem, no modelo preconizado atualmente um verdadeiro controle externo. O comando estará com os membros dos tribunais. É interno, portanto. Na redação final que saiu da CCJ do Senado, de fora só há dois advogados. Minoria, portanto. E mais: no Conselho concebido pela Câmara havia dois membros do Ministério Público e dois cidadãos; na redação da CCJ do Senado saíram estes e entrou um ministro do STM. Tornou-se mais interno ainda o tal órgão.

Mais uma expressão da concentração de poderes nas cúpulas a que já me referi.

Um Conselho Nacional de Justiça que desrespeita o princípio da federação, por se manifestar enquanto órgão de poder concentrado junto à cúpula do STF, não funcionará.

Outro ponto importante a ser abordado é o da democratização interna dos tribunais.

É preciso criar, em nível constitucional, formas democráticas de escolha dos dirigentes e composição dos órgãos especiais dos tribunais, onde houver.

A AJD preconizava a eleição direta dos cargos diretivos e de metade dos órgãos especiais dos tribunais pelos juizes vitalícios. Na Câmara e na CCJ do Senado não vingou a eleição. Mas foi aprovado algo importante: a eleição de metade dos órgãos especiais que pode ser constituído nos tribunais com mais de vinte e cinco julgadores para o exercício das atribuições da competência do tribunal pleno.

No que se refere à Justiça do Trabalho, felizmente já livre da representação classista, viraram pó as bravatas, no sentido de extingüi-la, incorporando-a à Justiça Federal.

Considerando a absurda investida sobre os direitos dos trabalhadores que vem havendo ultimamente e a marcada especificidade das lides de natureza trabalhista, é mesmo exigível uma justiça especializada para conhecê-las, Justiça esta pelo texto que saiu da CCJ do Senado se fortalecerá, ganhando competência.

Um ponto em que a AJD muito insistiu, e continua insistindo, é na extinção das Justiças Militares, principalmente as Estaduais.

Entendemos que são incompatíveis com o Estado Democrático porque não se pode pretender conciliar conceitos inconciliáveis: de um lado, o ideal de Justiça – baseado na igualdade e na democracia -; de outro, a hierarquia militar – centrada conceitualmente na anti-democracia da diferença entre o que manda e o que obedece -, de cujo topo saem a maior parte dos juizes daqueles órgãos.

Foro privilegiado para policiais militares, ademais, é herança de um regime inaceitável, banido pela sociedade brasileira.

O deputado Aloysio preservava em seu parecer todas Justiças Militares. A deputada Zulaiê havia proposto a extinção das Justiças Militares Estaduais. Mas encontrou muita resistência à idéia e, tanto na Câmara dos Deputados, quanto na CCJ do Senado, foi mantida a possibilidade de os Estados criarem a Justiça Militar Estadual.

Quanto à Justiça Militar Federal, teria ela que ser extinta até por falta de processos. Segundo as estatísticas oficiais, o Superior Tribunal Militar (STM) julga num ano inteiro cerca de quinhentos processos, o que significa pouco mais de trinta processos para cada um de seus quinze juizes.10 É o número de processos que cada juiz, nos tribunais mais tranqüilos e organizados do país julgam em dez dias.

A saída foi diminuir o número de ministros do STM (de quinze para nove), mas mantendo a maioria de militares, e atribuir à Justiça Militar a competência para exercer o controle jurisdicional sobre as punições disciplinares aplicadas aos membros das Forças Armadas, o que não deixa de ser uma coisa boa.

Está também a merecer disciplina constitucional cuidadosa é a federalização dos crimes contra direitos humanos.

A proposta da AJD sobre o assunto procurou resolver o problema mediante a previsão de um incidente de deslocamento de competência a ser decidido fundamentadamente pelo STJ, quando comprovada a demora injustificada ou fundado receio de comprometimento da Justiça ordinariamente competente. Algo semelhante ao que ocorre com o desaforamento do júri (artigo 424 do CPP). Isto para que o deslocamento não ficasse a critério de uma única pessoa ou órgão, de modo a permitir subjetivismos.

O deputado Aloysio Nunes Ferreira havia incorporado o cerne da idéia, mas previu, em seu parecer, legitimação restritiva para suscitar o incidente: apenas o Procurador-Geral da República e o Procurador-Geral da Justiça.

Mais uma vez, a tônica foi a concentração de poder nas cúpulas, agora do Ministério Público.

A deputada Zulaiê tratou melhor da questão. Seu substitutivo falava apenas que é competente o Ministério Público, na forma prevista na lei processual, abrindo caminho a que o promotor do caso possa suscitar o incidente, como é mais adequado.

Infelizmente, tanto na votação na Câmara dos Deputados quanto na CCJ do Senado, prevaleceu a proposta que atribui apenas ao Procurador-Geral da República tal poder.

Há outros pontos que considero bons, que tendem a vingar: distribuição imediata de processos em todos os tribunais; limitação do privilégio de foro a autoridades quando no exercício do cargo; inclusão do prefeito municipal como legitimado à propositura da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, submissão do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional cuja criação subscreveu; extinção dos Tribunais de Alçada.

Mas há também, outros que considero ruins: abertura da possibilidade de juizado de instrução; efeito vinculante, ao qual já me referi, ainda mais ampliado, como previsto no texto da CCJ do Senado, abarcando decisões do STJ; manutenção de férias coletivas em segunda instância; omissão quanto ao problema do nepotismo.

Muito mais haveria que falar sobre a reforma do Judiciário. Porém, aí está o essencial.

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* Anotações para palestra na XVIII Conferência Nacional dos Advogados, em Salvador, 14.11.02.

1 Alberto Silva Franco, Globalização e criminalidade dos poderosos, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 31, julho/setembro 2.000, IBCCRIM/RT, p. 102

2 Eric Hobsbawn, O Novo Século, Companhia das Letras, 1999, p. 89.

3 Alberto Silva Franco, O perfil do juiz na sociedade em processo de globalização, em Ana Messuti e Sampedro Arrubla (org.), La Administración de Justicia en los albores del tercer milenio, Editorial Universidad, Buenos Aires, 2001, p. 99.

4 Alberto Silva Franco, O perfil do juiz na sociedade em processo de globalização, op. cit.

5 Boaventura de Souza Santos, Que formação para os magistrados nos dias de hoje?, Revista do Ministério Público n° 82, abril/junho-2000, Lisboa, p. 14.

6 O Perfil do Juiz na Sociedade em Processo e Globalização. op. cit.

7 José Eduardo Faria, Justiça e conflito, RT, 1991; Faria, A revisão constitucional e a justiça, Folha de S. Paulo, 22.06.93.

8 Muda Brasil – Uma Constituição para o desenvolvimento democrático, Brasiliense, 1986.

9 Marcelo Semer, A proposta de reforma do Judiciário, O Estado de S. Paulo, 11.06.99.

10 Segundo o Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, do Supremo Tribunal Federal, o STM julgou, no ano de 1997, apenas 464 processos; as Auditorias Militares Federais, em todo o país, julgaram 485 feitos.

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*Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior, Magistrado em São Paulo – 2° TAC. Ex-presidente da Associação Juizes para a Democracia

 

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Atualizado em: 7/4/2003 13:21

Dyrceu Cintra

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