A cláusula de melhores esforços nos contratos
Sílvio de Salvo Venosa*
Com muita freqüência, por tradução, influência ou injunção do direito anglo-saxão, encontramos em contratos aqui redigidos ou cujos efeitos jurídicos ocorrerão em nosso país cláusulas pelas quais “as partes envidarão os melhores esforços” ou “as partes utilizarão os esforços comercias razoáveis” para dar, fazer ou não fazer alguma coisa.
No direito de origem consuetudinária, na ausência de códigos e de uma teoria geral dos contratos escrita, as partes preocupam-se em colocar todos os detalhes no pacto escrito. Daí por que os contratos redigidos no Estados Unidos, por exemplo, são, aos olhos do jurista de formação romano-germânica, excessivamente prolixos e com detalhes aparentemente desnecessários ou inúteis. No direito de língua inglesa, a interpretação do contrato é objetiva, o critério ainda é o do reasonable man, do homem médio. O sentido do contrato não é aquele em princípio indeterminável que as partes lhe deram, mas aquele realmente dado, de acordo com fair and reasonable men, tendo em vista o ponto litigioso. Por essa razão, com muita freqüência a jurisprudência inglesa e norte-americana recorre aos denominados implied terms (cláusulas implícitas), que muito se aproximam de regras criadas pelo juiz para o caso concreto.
Para nós, vale o brocardo segundo o qual o contrato faz lei entre as partes e assim deve ser entendido. Essa obrigatoriedade forma a base do direito contratual. O contrato é o veículo ideal para conter obrigações recíprocas. Havendo litígio decorrente do contrato, a interpretação em nosso direito realça dois elementos que integram qualquer manifestação de vontade. Há um elemento externo, palpável, material, perceptível pelos sentidos: trata-se da declaração contratual propriamente dita. Na relação contratual, esse aspecto materializa-se pela palavra escrita ou falada e, mais raramente, por gestos ou condutas dos contratantes. De outro lado se coloca o elemento interno, isto é, o que foi realmente pensado, raciocinado e pretendido pelos contratantes, qual seja, o substrato de sua declaração, sua vontade real.
No cotejo do elemento interno com o elemento externo da declaração, o ideal é que haja coincidência, ou seja: o que foi desejado pelas partes é efetivamente o que foi manifestado. Sabemos bem que não é isso que com freqüência ocorre. Surge, portanto, a necessidade de interpretação da cláusula contratual e do contrato. Caberá ao juiz, intérprete último da declaração contratual, estabelecer o verdadeiro sentido da vontade contratual. Qualquer que seja a posição doutrinária que se adote, o intérprete do direito continental e brasileiro sempre ficará preso a dois parâmetros, dos quais não poderá fugir: de um lado estará a vontade declarada, geralmente externada por palavras, de outro lado, se colocará a necessidade de investigar a verdadeira intenção dos sujeitos envolvidos. Em momento algum o juiz pode descurar-se de que a palavra expressa é a garantia maior e primeira das partes. Não é dado, pois, ao intérprete brasileiro alçar vôos interpretativos que o levem para longe do fulcro da relação em exame. Não pode, portanto, entender o magistrado que há cláusulas implícitas no contrato, criando normas, como faz o juiz anglo-saxão, fora da intenção pretendida e declarada pelas partes, sob pena de converter-se em uma terceira vontade contratual ou em legislador; o que não é admitido por nosso ordenamento. O negócio jurídico deve valer e ter eficácia conforme foi desejado e não tendo como parâmetro o homem médio, noção aplicada em nosso direito em outras situações, mas não especificamente no exame do cumprimento do contrato.
No nosso intuito de interpretação, deve-se buscar o sentido da vontade comum dos contratantes. Nesse contexto, sopesa-se o exame objetivo com o exame subjetivo do contrato. Nesse sentido, o novo Código Civil, na mesma esteira do Código de 1916, traçou um princípio geral no artigo 112, dando proeminência, mas não exclusividade, ao aspecto subjetivo da interpretação: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nela consubstanciada do que o sentido literal da linguagem”.
Nesse diapasão, a cláusula de “melhores esforços”, inserida em um contrato brasileiro, nada acresce ou modifica no nosso sistema. Trata-se de dispositivo aparentemente inócuo no contrato e que unicamente ganhará alguma eficácia no exame sistemático do pacto contratual. Note que há patente diferença entre estas duas disposições: 1) Tício se compromete a desenvolver os melhores esforços para obter uma coisa; 2) Tício obterá uma coisa ou Tício deverá obter uma coisa. Na primeira hipótese, o agente não se compromete pelo resultado, pois obter a coisa e posteriormente entregá-la traduz uma obrigação de resultado. Na segunda hipótese, em esforço interpretativo, pode ser divisada uma obrigação de resultado. Ora, as obrigações de meio decorrem da natureza da própria obrigação e não podem ser alteradas por vontade das partes. Assim, por exemplo, a atividade do médico no tratamento que busca a cura do paciente: tão inócuo seria o contrato pelo qual o médico se obriga a curar o paciente, pois médico algum pode garantir o resultado pela própria natureza da obrigação; como inócua seria a disposição que fixasse ao médico desenvolver seus melhores esforços para curar o paciente. Os melhores esforços de cura são ínsitos à arte da medicina e independem de qualquer disposição escrita. A culpa do médico por erro em sua conduta se apura no exame dos meios razoáveis utilizados.
Esse enfoque, contudo, não pode, em tese, ser transplantado para as obrigações de resultado, a grande maioria no universo jurídico: é inconcebível, por exemplo, que em um contrato de transporte, o transportador faça inserir cláusula no sentido de que desempenhará os melhores esforços para levar a coisa ou a pessoa a seu destino. Desse modo, se as partes não são expressas e diretas em definir o resultado que buscam e estabelecem, para uma obrigação claramente de resultado, a vazia expressão “melhores esforços”, “boa-fé”, “esforços razoáveis” etc., tal disposição refoge ao âmbito obrigacional, isto é, não constitui uma obrigação jurídica. Pode-se até mesmo afirmar que se trata de disposição não-contratual inserida no contrato, de conteúdo ético ou moral, equivalente a uma carta de intenções ou a um acordo de cavalheiros. Mencionar essas expressões ou referir expressamente à conduta de boa-fé dos contratantes, ademais, é superfetação absolutamente inútil. A boa-fé objetiva integra a noção do contrato, pois todo e qualquer contrato a pressupõe. Não se admite que alguém ingresse e se mantenha em um pacto negocial com má-fé. Esta constituirá sempre uma situação patológica coibida pelo ordenamento. Referir-se, portanto, à boa-fé nas cláusulas contratuais, como norma de conduta, é disposição que nada acresce ou subtrai no âmbito contratual.
Assim é no sistema atual do Código Civil, que não possui dispositivo expresso sobre a boa-fé, o que não impede a doutrina e a jurisprudência de admitir o princípio; assim será no novo Código Civil, que traz princípio expresso, no artigo 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Esse princípio é filosófico e programático no Direito e independe de texto expresso para ser admitido. Colocá-lo ou não como cláusula contratual é absolutamente irrelevante. Toda distorção ou desvio do princípio da boa-fé no desempenho contratual constituirá ato abusivo, e como tal, coibido como ilícito.
Como já acenamos, tudo é no sentido de que não havendo comando ou ordem direta na cláusula para o contratante dar, fazer ou não fazer algo, mas simplesmente para que se conduza sob seus melhores esforços, a disposição não é contratual, não é coercível, equivalendo a simples exortação, a uma carta de intenções ou mero acordo de cavalheiros. A fórmula dessa disposição não é coercitiva e, destarte, não permite a execução específica porque não se trata de obrigação, ou se quisermos, poderá ser conceituada como mera obrigação de meio. Não se esqueça, porém, que a avença dessa natureza não é estranha ao direito: há princípios gerais, como o abuso de direito e o enriquecimento sem causa, por exemplo, que podem ser aplicados. O teor do acordo de cavalheiros e da cláusula de “melhores esforços”, por outro lado, pode dar valiosos elementos de interpretação ao julgador, para a investigação da vontade das partes, quando ocorrer pretensão resistida. O fenômeno, cada vez mais sentido na advocacia empresarial, está a merecer, sem dúvida, maior aprofundamento doutrinário, maior atenção do jurista e requer cuidado especial dos magistrados.
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* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil – sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados – Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes
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Atualizado em: 1/4/2003 11:49
Sílvio de Salvo Venosa
Sócio consultor de Demarest Advogados, Está no escritório desde março de 1996. Foi juiz no estado de São Paulo, tendo se aposentado como desembargador. Autor da coleção de direito civil, atualmente em 5 volumes, na 20ª edição e várias outra obras. Direito Empresarial. Lei do Inquilinato Comentada. Introdução ao Estudo do Direito – Primeiras Linhas, entre outras.