Um dano moral autêntico
Mário Gonçalves Júnior*
Dia desses um grande amigo, cuja identidade obviamente preservarei, procurou-me para desabafar. Conhecendo-o desde sempre, logo percebi a extensão da mágoa que lhe sufocava.
Advogado como eu, acompanhei sua trajetória de vida desde muito antes de ser causídico e se interessar pelo tema dos danos morais. E justamente por saber dele tanto quanto sei de mim, senti vivamente a razão de sua tristeza.
Quando menino, ele não pensava advogar. Sonhador e romântico que já era, seus interesses voltavam-se para as artes. Não era para menos. A sensibilidade é até hoje sua veia aorta.
Malqueria a disciplina curricular do colégio. Seu talento e genialidade não apreciavam as ortodoxias decoradas. Preferia lambuzar-se nas tintas que deslizavam sob pincéis, ou compenetrar-se no complicado desafio de acomodar palavras, às sílabas, em quadras poéticas.
Foi talvez a graça divina que lhe fez assim, pois a isto se deveu um mundo paralelo e fictício que lhe fez passar relativamente incólume pelo trauma do divórcio dos pais, e muitos anos após, do seu próprio.
Escolheu o Direito, como eu, provavelmente pelo gosto com a redação, e a sensibilidade vem fazendo da sua carreira digna de admiração.
Essa mesma sensibilidade trouxe outra coincidência entre nós: a preferência pelos temas acentuadamente humanísticos do Direito, como os que são violentados por danos morais (art. 5o., X, CF/88).
Após anos de dedicação sincera, honesta e talentosa à advocacia, sofreu duas frias punhaladas seguidas, vindas de dois de seus superiores (com o requinte de ocorrerem justamente na véspera e no dia de seu aniversário, não notado pelos seus agressores).
Para partilhar minimamente sua decepção (como ele fez comigo), é preciso contextualizá-la.
Há alguns anos sacrificando seu padrão de vida, procurando compreender a ausência de reposição inflacionária nos seus ganhos (com a sempre lembrada justificativa de crise econômica do País), eis que teve a primeira agressão espiritual.
Considerado o melhor advogado por esses e outros superiores (e até por boa parte dos seus pares), foi sempre elogiado, malgrado a corrosão salarial que, nunca sanada, se procurava compensar alimentando a esperança de que seus dias de bonança chegariam.
O outro “argumento” para o resfriamento da remuneração era no sentido de que já seria maior que a dos demais subordinados. Mas o tempo, favorável a estes e ingrato ao meu amigo, vinha fazendo perecer paulatinamente essa diferença, embora não se lhe negasse, jamais, o destaque intelectual.
Doutras vezes meu amigo havia alertado para o fato, e ficavam sempre de “estudar o caso”.
Os anos passaram e nada mudou, senão, para melhores ainda, a sua dedicação e ética desinteressadas, frutos de seu profundo amor pela profissão. De nada adiantou.
Há pouco tempo o chefe lhe chamou para uma conversa reservada, dizendo-se preocupado com o seu semblante triste, incomum dada a sua vivacidade no trabalho, e lhe prometeu mais uma vez o reajuste.
Na véspera do aniversário deste amigo, o reajuste saiu, mas para todos os demais advogados, não para ele.
Tentando assimilar a primeira “deferência”, no dia do aniversário propriamente dito veio a segunda agressão, que precisa ser também contextualizada para ser “sentida”.
Esse grande amigo é daqueles advogados que naturalmente suportam (e assumem) responsabilidades acima da média, quer pela sua extraordinária vocação, quer pela ‘boa’ ingenuidade de preferir não delegar. Viaja a trabalho constantemente, assume causas de tremer a maioria, com ansiedade de herói.
Essas características pessoais exigem-lhe agilidade. Atende clientes, redige, lê processos (mais de um ao mesmo tempo quase sempre), quando está no escritório. Para que isto seja possível, utiliza do que dispõe, como a correspondência interna (e-mail), disparando orientações e pedidos de providências aos companheiros de trabalho.
Uma dessas correspondências eletrônicas foi respondida rispidamente por outro chefe, no sentido de que seria “melhor levantar da cadeira” e ter pessoalmente com aqueles para quem passava os e-mails. Esta mensagem veio exatamente no dia do seu aniversário.
Quando me contou essas coisas, meu amigo chorava de desânimo. Aquilo tudo atingiu as fibras mais íntimas da sua alma.
Pensei no nosso interesse por dano moral e me ocorreram os abnegados cientistas que, em prol da humanidade, fizeram-se cobaias dos próprios experimentos.
Depois dessa experiência pessoal, seus arrazoados sobre danos morais nunca mais serão os mesmos. Serão melhores ainda.
Ele pode saber, hoje, que a concorrência do mercado de trabalho aliada ao natural egoísmo humano dificultam que laços de amizade (como os nossos) se firmem entre colegas de empresa. Nesses ambientes hostis geralmente o seu melhor amigo é você mesmo.
Terá aprendido também que dinheiro nenhum “indeniza” o sofrimento espiritual, pois se “amor com amor se paga”, “desamor com amor se compensa”.
Foi por esse motivo que eu fiz, e faço, o que seus agressores não fizeram: ouvi-lo. Não no sentido de ‘escutar’ o que se tem para dizer, e depois prosseguir sem alteração de rumo, mas de compreender e solidarizar, posicionar-se sinceramente.
A esse amigo, e a todos nós desapegados (no limite da felicidade ou da sobrevivência), eu dedico um trecho de um livro sobre física quântica e filosofia que estive lendo noutro dia, e que, coincidentemente, trata do “verdadeiro altruísmo”:
“O altruísmo é sempre um ato de nobreza, mas doar nem sempre é um ato altruísta. Contam que existia um rei muito bondoso que, sempre que podia, pregava aos seus súditos a prática do altruísmo. Um dia, caminhando pelo palácio, notou que a sua guarda real estava desarmada. Surpreendido com o fato, perguntou ao guarda por que não portava a sua espada.
Ele respondeu que, como queria ser tão altruísta quanto o rei, ele doara a sua espada a um pobre lavrador que não tinha com que cortar o mato que invadira seu trigal. O rei, compreendendo o mau entendido de suas palavras, disse ao guarda: doar aquilo que é essencial para exercer a nossa função útil, e justificar a nossa ociosidade através desse ato, é egoísmo disfarçado de altruísmo. Só poderemos doar a nossa espada quando estivermos preparados para exercer a nossa função sem ela!
Do mesmo modo, muitas vezes acreditamos que, para ser altruísta, devemos doar tudo o que temos e passar a viver na extrema pobreza. Quando analisamos as leis da natureza com mais sabedoria, notamos que em tudo existe um equilíbrio que deve ser respeitado e, neste equilíbrio, as forças ali existentes são fundamentais. O Sol é a fonte de toda a vida na Terra. Ele atrai a Terra mantendo-a “perto” de si, não por querer algo do planeta, mas para que possa lhe doar a sua luz. Sem a sua força atrativa, aparentemente egoísta, a Terra sairia de órbita e ele deixaria de exercer essa função útil no universo. Ele doa tudo à Terra, mas preserva para si o essencial. Assim é em tudo no universo, desde os átomos até as galáxias. Manter aquilo que nos torna útil na nossa função pode até parecer egoísmo, mas é a forma que nos possibilita continuar a exercer o verdadeiro altruísmo” (Quem se atreve a ter certeza? A realidade quântica e a filosofia, Prof. Dr. José Pedro Andreeta e Maria de Lourdes Andreeta, Editora Mercuryo, São Paulo, 2004, págs. 92/93).
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* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados
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Atualizado em: 10/5/2004 11:33
Mário Gonçalves Júnior
Advogado trabalhista, pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho