Adam Smith e a lesão no novo código civil
Denis Borges Barbosa*
Tanto se fala da prestidigitação da mão furtiva de Adam Smith, que acabam se esquecendo que o inglês concebia uma economia tendendo ao equilíbrio de um preço natural. Este seria o preço pelo que cada mercadoria ou serviço deveria estar sendo vendido, para remunerar o uso da terra, os salários, e o “retorno natural” do investimento de capital necessário para criar o produto e levá-lo ao mercado. A idéia de que o mercado servia, não ao equilíbrio, mas à maximização de lucros, é posterior a 1776, ano de A Riqueza das Nações (e da Revolução Americana…).
A existência de um preço de mercado, como o resultado do impacto da demanda e da oferta, da desigualdade de poder, e principalmente da desigualdade de informação entre as partes de um negócio, também é registrada por Adam Smith. Mas estes fatores de perturbação não impediriam, em sua concepção, que os preços gravitassem para o “centro de repouso e continuidade”, que seria o preço natural.
Bem cedo o direito reconheceu que o elemento característico do mercado capitalista é o ganho, não só “natural”, mas o máximo possível. Segundo Torre-Schaub, em sua tese publicada em Paris faz dois meses, já em 1811 o tribunal de Bruxelas havia chegado a tal conclusão. A construção de um direito comercial, ou segundo a nomenclatura mais recente, de um direito do mercado, resultou desta elaboração: há um espaço na economia para a racionalidade da maximização dos ganhos, e outro para relações mais “naturais” (no dizer de Charles Gide, mais solidárias). Este, o do direito civil.
O novo Código Civil se enraíza no conceito do preço natural, ao regular (art. 157) como causa de anulação dos contratos a lesão, ou seja, quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. Essa noção existia no nosso direito antes do Código Civil de 1916, e voltou a aparecer muito embaçado na Lei da Economia Popular de 1951; volta agora como mainstream do Direito Brasileira uma das grandes novidades do novo Código.
Os elementos da lesão, sob uma ótica smithiana, seriam assim a falta de transparência da situação econômica ou desequilíbrio de poder entre as partes, resultando em um preço diverso do natural – o que seria proporcional à prestação da outra parte. É bem verdade que a lei fala em “manifestamente desproporcional”, o que facilita o reconhecimento da disfunção; mas essencialmente retira do contrato o espaço do ganho maximizado.
Qual o problema disso? É que a nova lei é, em sua proposta, uma norma geral de Direito Privado. Acabou, agora, a idéia de um direito comercial especializado, como o que fora construído em torno de nosso Código Comercial de 1850, o código específico das atividades de mercado. Como sucedâneo, a nova lei introduziu a idéia de empresa como um foco de análise jurídica. A noção de empresa, proposta originalmente por Escara (Art. 966), é o exercício organizado de atividade econômica para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Atividade econômica. Qual? A homoestática atividade de uma economia de equilíbrio, ou a voltada para a maximização de lucros? A atividade solidária de Charles Gide, ou a geração constante da mais valia?
A noção de lesão aponta, pelo menos em aparência, para a acepção civilista, ou pelo menos smithiana, de uma economia solidária. Mas as conseqüências dessa regra de direito positivo podem ser radicalmente conflituosas. Por exemplo, qual é o preço natural, e qual é o preço de mercado, de um software da Microsoft? Quanto das centenas de cruzeiros que custa o Windows que justificaria o investimento em pesquisa e comercialização da solução técnica, e quanto apenas faz de Bill Gates o homem mais rico do mundo? Quanto há no preço do programa de uma “proporção manifestamente adequada” entre o que se paga e o que se recebe, e quanto apenas da intervenção inatural do direito autoral?
A pirataria que sempre grassa parece responder à questão. É ilícita, sem dúvida, mas pareceria gravitar, como o que sugeria Adam Smith, para o centro de repouso e continuidade da economia. Ainda que não para a maximização do lucro. Pelo princípio da lesão, o preço adequado do Windows seria o que justificasse o investimento, e evitasse a pirataria, com as inseguranças e a falta de suporte que lhe são próprias.
Mas isso é mesmo economia de mercado?
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* Advogado, coordenador dos Programas de Direito do Ibmec/Rio
Atualizado em: 1/4/2003 11:49