Aplicação do Direito Penal às infrações tributárias   Migalhas
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Aplicação do Direito Penal às infrações tributárias – Migalhas

 

Aplicação às infrações tributárias de princípios de Direito penal comum

Eduardo Bottallo*

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Sumário: 1 – A Consulta 2 – Resposta

 

1 – A CONSULTA

A Consulente é empresa prestadora de serviços e, nesta qualidade, tornou-se contribuinte do Imposto Sobre Serviços (ISS), devido ao Município “B” (local da prestação), mas que, por equívoco de sua parte, recolheu, durante certo período, aos cofres do Município “A”, onde está sediada a sua matriz.

Em conseqüência, o Município “B” lavrou, contra a Consulente, dois autos de infração: um, pela falta de recolhimento do tributo, e outro pela não emissão das notas fiscais correspondentes aos serviços executados.

A Consulente, reconhecendo o erro consistente em ter recolhido, no Município “A”, tributo devido ao Município “B”, curvou-se aos termos do primeiro dos autos de infração supra identificado.

Em conseqüência, satisfez a pretensão nele consubstanciada, mediante pagamento do tributo reclamado, acrescido de consectários a título de juros e multa.

Todavia, ela não se conforma com o segundo auto de infração e, em razão disso, consulta-nos sobre sua juridicidade. A propósito, cabe esclarecer que este segundo auto de infração “arbitrou” em cento e trinta o número de notas fiscais que deveriam ter sido emitidas pela Consulente, impondo a multa de setenta unidades fiscais municipais por nota não emitida, o que resultou em débito de expressivo valor, equivalendo, inclusive, ao do primeiro auto, compreendidos todos os seus títulos.

2 – RESPOSTA

I – Os fatos que ensejaram a lavratura, contra a Consulente, de ambos os autos de infração são os mesmos; confundem-se em uma só materialidade, assim:

a) ela deixou de pagar o ISS e, por isso foi autuada, conformando-se com esta autuação, e recolhendo, em conseqüência, o tributo e as penalidades resultantes deste não pagamento;

b) as notas fiscais não emitidas correspondem exatamente aos serviços que ensejaram a falta de recolhimento apurada no auto indicado na letra “a”, supra.

Ora, esta singela demonstração revela, de modo claro e insofismável, que a infração consistente na não emissão de notas fiscais (letra “b” supra), foi absorvida pela que diz respeito ao não pagamento do ISS (letra “a” supra), daí resultando não estar sujeita a repressão em separado.

Vejamos melhor como se confirma esta assertiva.

II – Como sustenta autorizada doutrina, são perfeitamente aplicáveis, no campo do denominado direito penal tributário, as linhas básicas dos princípios fundamentais que norteiam o direito penal comum.

Por todos que assim entendem, vale invocar as lições de Hector Villegas; “verbis”:

“O direito penal tributário funciona automaticamente no que diz respeito ao elenco das diferentes infrações previstas e suas correspondentes sanções (quer dizer, sua “parte especial”). Pode, entretanto, não acontecer o mesmo, no que tange aos princípios gerais que regulam referidas infrações e sanções (ou seja, a “parte geral”). Nada obsta, com efeito, que se apliquem, nesse caso, as disposições do direito penal comum contidas no Código Penal, em forma supletiva.

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A aplicação subsidiária de um único instrumento legal, qual seja, o Código Penal, responde à necessidade prática que exige uma harmonia geral e expressa, num fundo legislativo comum, com validade em todo o país. Por outro lado, referida aplicação subsidiária atende ao princípio da legislação segundo o qual, em qualquer ordem de relações jurídicas, as regras gerais se aplicam às matérias regidas por preceitos especiais, sempre que estes, silenciando sobre dado aspecto, a tanto não se oponham”.1

Como se vê, as diferentes manifestações do “jus puniendi” do Estado regem-se pelos mesmos princípios gerais, seja quando se cogita das infrações penais em sentido estrito (os crimes e as contravenções), seja quando se está diante daquelas que têm cunho mais administrativo.

Ademais, no caso concreto, inexiste, na legislação tributária do Município “B”, preceito que possa mostrar-se, explicita ou implicitamente, incompatível com a incidência das regras gerais do direito penal comum, nos termos e na extensão aqui defendidos.

Pois bem. Assentada essa premissa e trazendo-a à baila para possibilitar o deslinde do caso que deu origem à consulta, não resta dúvida que se está diante de figura que bem se aproxima, em contornos essenciais, do concurso formal do direito penal comum, ou seja, a prática, pelo agente, de mais de uma infração pela mesma ação.

Deveras, a circunstância de ter a Consulente se convencido, por engano, de que deveria recolher ISS no Município “A”, a levou a não emitir notas fiscais pelas prestações realizadas no território de “B” e, por este meio, ao não pagamento do tributo a este Município.

Há, aqui, portanto, uma inequívoca unidade de ação que não permite punição separada: a) pelo não recolhimento do ISS; e b) pela não emissão das notas fiscais correspondentes aos serviços que geraram a obrigatoriedade deste recolhimento.

Não há dúvida que a infração mais grave (falta de pagamento do ISS) já foi objeto de auto de infração, ao qual a Consulente se curvou, pelo que não se justifica que possa ser punida novamente pelo descumprimento de obrigação acessória (emissão de notas fiscais) relacionada aos mesmos fatos.

III – Por outro lado, ainda a partir da mesma premissa retro assentada, ou seja, o largo aspectro de aplicação dos princípios que informam o direito penal comum, há, ainda, outra linha de raciocínio que pode ser considerada.

Com efeito, e mesmo que se aceite que as ações imputadas à Consulente (não pagamento do ISS e não emissão das notas fiscais), comportam a lavratura de autos de infração distintos, então, quando menos, há de ser considerado presente o que poderia ser denominado de “continuidade infracional”, a afastar a aplicação de multa por nota não emitida.

Figura simétrica à aqui considerada, cuja invocação justifica a solução preconizada, é a prevista no art. 71 do Código Penal que, tratando do crime continuado, determina a aplicação da pena de um só deles, ainda que com alguma elevação proporcional2.

Portanto, mesmo que se possa vislumbrar algum tipo de “autonomia”, em relação à falta de pagamento do ISS, na circunstância de ter a Consulente deixado de emitir notas fiscais – hipótese que se admite para meros efeitos de argumentação -, esta circunstância não autoriza a cobrança de multa por nota fiscal não emitida, mas exige que se reconheça, na espécie, a continuidade a determinar a aplicação, uma só vez, da sanção prevista em lei.

IV – Procuraremos, na seqüência, demonstrar que o ponto de vista ora sustentado encontra adequado respaldo no ordenamento jurídico tributário vigente, e que pode ser perfeitamente alcançado por meio de tutela jurisdicional.

V – Os princípios da capacidade econômica do contribuinte e o da vedação do confisco, são preceitos constitucionais expressos em matéria tributária3.

Embora dirigidos literalmente aos impostos (capacidade contributiva) e aos tributos (“utilizá-los com efeito de confisco”), tais postulados se fazem presente em todo o sistema tributário, alcançando o crédito tributário na sua acepção mais ampla como decorre do art. 113, § 1º, do Código Tributário Nacional4. Daí concluir-se que eles atingem as sanções tanto quanto os tributos propriamente ditos:

“Devemos deixar claro, que não apenas os tributos, mas também as penalidades fiscais, quando excessivas ou confiscatórias, estão sujeitas ao mesmo tipo de controle jurisdicional”5.

Assim, a exclusão ou redução da multa pelo Poder Judiciário apresenta-se como resultante do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional a que alude o art. 5º, XXXV, da Lei Maior6.

Aliomar Baleeiro lembra, com sua habitual acuidade, que a eqüidade é dado fundamental para compreensão da política prevalecente em nosso sistema, inclusive no tocante às sanções tributárias:

“Os julgadores fazem profissão de fé da advertência famosa de D’Argentre: “juiz segundo a lei e não juiz da lei”. Mas, em todos os Tribunais, inclusive em nosso STF, resplandecem arestos em que seus mais prestigiosos membros reconheceram que, em certas situações especialíssimas, experimentaram a necessidade invencível de imprimir certa ductibilidade ao texto, vergando-o às circunstâncias do tempo ou das peculiaridades raras do caso concreto, arisco à generalidade da norma”7.

Não resta dúvida que o caso sob consulta caracteriza uma daquelas situações especialíssimas a que alude o saudoso Mestre.

Oportuno invocar, a esta altura, os ensinamentos do reconhecido jurista português Jorge Miranda, lembrando que os princípios precedem logicamente os preceitos e, bem por isso, devem orientar a aplicação e a compreensão destes:

“O Direito não é mero somatório de regras avulsas, produtos de actos de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si. O Direito é ordenamento ou conjunto significativo e não conjunção resultante de vigência simultânea; é coerência ou, talvez mais rigorosamente, consistência; é unidade de sentido, é valor incorporado em regra. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor projecta-se ou traduz-se em princípios, logicamente anteriores aos preceitos”8.

Ora, se, com relação à Consulente fosse prevalecer, por força da aplicação literal de isolado preceito de lei, a pesada penalidade resultante da não emissão de cento e trinta notas fiscais (tantas unidades fiscais por nota não emitida), estar-se-ia frente a uma potencialização de sanções que repugna o sistema jurídico em vigor. Vale recordar que ela já indenizou, integralmente, o Município “B” pelo não recolhimento do ISS e, mais, satisfez a multa e os juros resultantes deste não pagamento. Não se justifica que, em acréscimo, venha a ser novamente punida por atos que foram absorvidos pela infração maior já integralmente reparada.

Esta situação colide, de frente, com o já consagrado princípio da proporcionalidade (razoabilidade) ou da proibição do excesso, que conduz, inclusive, ao reconhecimento de inconstitucionalidade, seja de leis, seja, como é o caso presente, de atos resultantes de sua aplicação.

Como bem assinala Gilmar Ferreira Mendes,

“O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de ressaltar a importância do princípio da proporcionalidade no controle das Leis restritivas, tal como se depreende da seguinte passagem, de voto proferido pelo Ministro Rodrigues Alckimin, na Rp. Nº 930:

‘Ainda no tocante a essas condições de capacidade, não as pode estabelecer o legislador ordinário, em seu poder de polícia das profissões, sem atender ao critério da razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário apreciar se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse público, para julga-las legítimas ou não’.

Embora a questão em apreço se restringisse à liberdade de exercício profissional, parece certo que o juízo desenvolvido mostra-se aplicável a qualquer providência legislativa destinada a restringir direitos. O reconhecimento da competência do Poder Judiciário para ‘apreciar se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse público’ demonstra a necessidade de, muitas vezes, proceder-se, no controle de normas, ao confronto da ‘lei consigo mesma’, tendo em vista os fins constitucionalmente perseguidos. Por outro lado, deve-se acentuar que a argumentação desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal não deixa dúvida de que, na espécie, a legitimidade dessas medidas restritivas há de ser aferida no contexto de uma relação meio-fim (Zweck-Mittel Zusammenhang), devendo ser pronunciada a inconstitucionalidade da lei que contenha limitações inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais (não razoáveis). Trata-se, à evidência, de aplicação do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso no juízo da constitucionalidade”9.

Tão convincentes razões servem como coroamento a confirmar, cabalmente, que o auto de infração lavrado contra a Consulente por falta de emissão de notas fiscais, é, sob todos os aspectos, desproporcional à falta cometida, ou dos efeitos dela decorrentes que – não é demais repetir e enfatizar – foram inteiramente sanados e reparados pelo pagamento integral das exigências objeto do auto de infração que teve por objeto o não pagamento do ISS devido ao Município “B”.

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1 Direito Penal Tributário, Ed. Resenha Tributária, São Paulo, 1974, p. 137.

2 Código Penal: “Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentadas, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

3 Constituição Federal, arts. 145, § 1º, e 150, IV.

4 Código Tributário Nacional: “Art. 113. (…) § 1º – A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente”. Grifamos.

5 Revista Trimestral de Jurisprudência,vol. 82, p. 84.

6 CF, Art. 5º, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito”.

7 Direito Tributário Brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 11ª edição, 1999, p. 683.

8 Manual de Direito Constitucional, 2ª ed., Coimbra Editora, 1981, tomo II, pág. 197.

9 Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, São Paulo, Celso Bastos Editor, 1998, pp. 38/39. Os destaques constam da transcrição.

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* Escritório Bottallo e Gennari Advogados, Mestre e Doutor em Direito Tributário – Professor na área de Direito Público das Faculdades de Direito da USP e de São Bernardo do Campo.

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Atualizado em: 1/4/2003 11:49

Eduardo Domingos Bottallo

Eduardo Domingos Bottallo

Sócio do escritório Eduardo Bottallo & Associados Advogados.

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