Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no nCC   Migalhas
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Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no nCC – Migalhas

 

Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no nCC (estruturas e rupturas em torno do art. 187)

Judith Martins-Costa*

Na insurgência de um novo Código, tão importante quanto prestar atenção à sua letra é observar a sua estrutura: a estrutura “fala” e devemos estar aptos a escutar a sua voz. Exemplo paradigmático dessa eloqüência é o novo modelo da ilicitude civil, comandada pelos arts. 186 e 187.

Se tivermos como ponto de partida a compreensão sistemática e estrutural, perceberemos que o novo Código rompe, radicalmente, com a construção, dogmática e ideológica, que serviu de base para a elaboração da noção de ilicitude civil a partir de sua conseqüência patrimonial – o nascimento do dever de indenizar. Essa ruptura está pontuada por dois traços que, curiosamente, não têm sido enfatizados por quem teima em ver no vigente art. 187 o antigo abuso de direito do art. 160, I, contemporaneamente maquiado. São eles:

a) comparativamente ao art. 159 do Código de 1916, o art. 186 não reproduz a sua verba final (“fica obrigado a reparar o dano”);

b) a obrigação de indenizar ganhou autonomia, sendo tratada em um Título próprio (art. 927 e ss), distinto, na geografia do Código, do tratamento da ilicitude do negócio jurídico.

O que aí está patente, e altissonante, é a desconexão de um elo que, tradicionalmente, soava automático: foi cortada a automaticidade da ligação entre a ilicitude (arts. 186 e 187) e o dever de indenizar (art. 927 e ss), e entre ilicitude civil e dano. Mas não é só uma nova estrutura: aí temos uma ruptura.

Vigendo a “lógica proprietária” (Messinetti) e o patrimônio constituindo a categoria central do direito civil clássico, a doutrina elaborou a Teoria dos Atos Ilícitos em obediência à tradicional distinção entre a responsabilidade contratual e extracontratual: assim se estabeleceu a distinção entre o ilícito contratual, ou relativo, e o ilícito extracontratual (absoluto), sintetizado, este último, na expressão neminem laedere — ambas as noções sendo construídas a partir da noção de dano e de responsabilidade (contratual ou extracontratual) patrimonial. Em outras palavras: para a perspectiva tradicional, a ilicitude era não apenas examinada, mas era verdadeiramente construída, conceitualmente, a partir do seu efeito mais corriqueiro e geral, qual seja, a obrigação de indenizar por dano ao patrimônio.

Ora, as conseqüências dessa conexão, por assim dizer, automática foram grandes: em primeiro lugar, a ilicitude civil era vista, tradicionalmente, de forma amarrada à culpa, ao dano e à conseqüência indenizatória. Não era um conceito que valesse por si, que tivesse um campo operativo próprio, era mera “condição” da responsabilidade. Tanto assim é que, não apenas a letra do art. 159 do Código de 1916 assim dispunha, quanto o exame doutrinário da ilicitude era feito, modo geral, a partir do seu efeito “natural”, qual seja, o nascimento do dever de indenizar. Por esse viés, não apenas confundia-se a ilicitude com o elemento subjetivo (culpa) quanto a própria idéia de ilicitude restava limitada às hipóteses de “ilicitude de fins”, seja na violação aos direitos do parceiro contratual, seja na violação a direitos absolutos, pouco espaço restando para a chamada “ilicitude de meios”. Em segundo lugar, essa concepção não deixava espaço à percepção dos variados casos em que ocorre o nascimento do dever de indenizar independentemente da prática de um ato ilícito.

É justamente essa “lógica” que vem rompida pelo novo Código Civil. Alterou-se, profunda e significativamente, o regime da ilicitude, seja ao estatuir a regra do art. 187, seja ao desconectar, metodologicamente, a conseqüência geral (isto é, o dever de indenizar) da ilicitude, inserindo-a em título próprio (art. 927 e ss). Daí não ser “indispensável”, para os efeitos da tutela conferida pelo art. 187, nem a ocorrência de um evento danoso, nem que o mesmo tenha sido causado por culpa: o art. 187 não é, nem de longe, a “reprodução” do art. 160, inciso I, do Código de 1916 (cuja regra foi apreendida, de resto, no art. 188 do novo Código), não estando, bem assim, limitado à versão subjetiva da Teoria do Abuso, de construção francesa, mas à doutrina do exercício inadmissível de posições jurídicas, que não se limita a operar com a noção de “direito subjetivo”, preferindo a categoria das “situações jurídicas subjetivas”, existenciais e patrimoniais.

Sepultada uma ‘lógica”, devemos perceber qual é a que lhe sucede. Ora, da ruptura como o modelo tradicional surgem as possibilidades de novas construções, notadamente no que diz com os direitos da Personalidade, os direitos difusos e coletivos (principalmente a tutela do meio-ambiente) e as relações contratuais duradouras – campos que ficam por assim dizer “apertados” nos estreitos muros da noção tradicional de direito subjetivo. E ficam apertados porque a noção tradicional de direito subjetivo foi concebida sobre o “paradigma da relação inter-individual do crédito/débito” (Ovídio Baptista da Silva), sobre o modelo do “sujeito narcisista”(Edelman), isto é, como um poder “em si” tendencialmente ilimitado, de tal forma que precisaria sempre da imposição de limites externos, como a lei, para ser cerceado.

Daí que a “lógica” que hoje preside o tratamento da ilicitude civil seja a mesma que preside a noção de situação jurídica subjetiva (existencial ou patrimonial). Por isso é que, para viabilizar uma adequada tutela à pessoa e aos direitos da Personalidade, aos direitos difusos, coletivos e às obrigações duradouras, será importante perceber que o novo Código opera a separação (metodológica) entre ilicitude e dever de indenizar, não aludindo diretamente nem ao elemento subjetivo (culpa), nem ao dano, nem à responsabilidade civil, o que abre ensejo: a) à sua maior inserção no campo do direito da Personalidade, possibilitando visualizar novas formas de tutela, para além da obrigação de indenizar; e, b) à compreensão de que pode haver ilicitude sem dano e dano reparável sem ilicitude.

O mais relevante, porém, é observar que nesse novo modelo a ilicitude não é apenas “ilegalidade” nem “contrariedade culposa a preceito contratual”, pressupondo uma idéia de direito subjetivo que – integrante das complexas situações jurídicas subjetivas, existenciais ou patrimoniais – não é “poder da vontade”, antes situando-se na integração de liberdades coexistentes, como algo que já nasce “conformado” no jogo de ponderações entre os diferentes princípios que se põem como vetores axiológicos fundamentais do ordenamento.

Sem olhos para ver (a letra) e sem ouvidos para ouvir (o espírito) nada diremos ao art. 187, e ele nada nos dirá. E continuaremos, resignadamente, a repetir que nada mudou, porque nada mudamos.

 

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*Professora de Direito Civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutora em Direito na Universidade de São Paulo e sócia do escritório Martins-Costa & Tatsch Advocacia associada do escritório Reale Advogados Associados.

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Atualizado em: 30/4/2003 14:52

Judith Martins Costa

Judith Martins-Costa

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