A EXTENSÃO DA PROTEÇÃO CONFERIDA
À MARCA DE ALTO RENOME NO DIREITO EUROPEU –
A DECISÃO “DAVIDOFF II” ··
Luís Felipe Balieiro Lima*
I – Introdução; II – O Caso; III – Breve Comentário; IV – Conclusão – Brasil.
O intuito do presente texto é de apresentar resumidamente a recente decisão “Davidoff II”, tomada pela Corte de Justiça das Comunidades Européias (CJCE) no início do corrente ano.
Paralelamente, pretendemos colocar o tema em debate, por entender que a legislação brasileira o trata de maneira vaga, superficial, deixando inúmeras questões em aberto.
Não tendo a pretensão de esgotar o assunto, apenas pequenos comentários foram inseridos a partir dos pontos que, no nosso entender, esclarecem o posicionamento adotado pela Corte.
I – Introdução
O sistema europeu para a proteção da propriedade industrial no que se refere à marca prevê a harmonização das legislações nacionais1, em nome da segurança jurídica no interior da Comunidade Européia. Ele se baseia no respeito ao desempenho das duas funções primordiais desta – garantir a distintividade de um produto ou serviço em relação aos seus concorrentes; e, principalmente, garantir ao público em geral uma referência precisa quanto à origem do produto ou serviço marcado.
Ocorre que a fria letra da lei, quando de sua aplicação direta ao caso concreto, freqüentemente dá margem a interpretações distintas, conflitantes entre si, muitas vezes diametralmente opostas.
No caso europeu, vários fatores podem ser abordados para explicar este fenômeno, sendo certo que o mais visível é, sem dúvida, a influência das diferenças na evolução histórica e cultural dos países que formam a Comunidade Européia2, refletida nos diferentes sistemas jurídicos nacionais.
Esta, em verdade, é bem a situação com a qual nos deparamos quando do estudo do sistema de proteção à marca de alto renome – em francês, “marque renommée”3 – adotado pelo Direito Europeu.
A intenção de dispensar atenção especial ao assunto é indiscutível. Já na sua Exposição de Motivos, “Considerandos” nº (9) e (10), a Diretiva CE 89/104 (vide nota nº 2) dedica atenção especial a esta categoria, deixando sob a faculdade dos Países-Membros a possibilidade de introduzir em suas legislações nacionais uma proteção mais extensa às marcas que tenham adquirido um alto renome.
Dentro do texto legal propriamente dito, o assunto é tratado nos artigos 4, parágrafo 4, alínea “a” e 5, parágrafo 2.
Na primeira norma, a marca de alto renome é colocada como uma exceção à regra da especialidade, na medida em que o texto autoriza um País-Membro a recusar o registro de uma marca, ou se marca já registrada, a declarar sua nulidade, nas seguintes hipóteses: i) se ela for idêntica ou similar a uma marca REGISTRADA ANTERIORMENTE, e ii) se destinada a identificar produtos ou serviços que NÃO SEJAM IDÊNTICOS ou SIMILARES àqueles pelos quais a marca anterior é registrada. A condição é de que essa última goze de alto renome dentro do território de tal País-Membro.
O parágrafo 2º do artigo subseqüente que trata dos direitos conferidos pela marca ao seu titular, afirma que este está habilitado a PROIBIR qualquer terceiro de utilizar, sem o seu consentimento, um signo que seja IDÊNTICO ou SIMILAR à sua marca, para produtos ou serviços que NÃO SEJAM IDÊNTICOS ou SIMILARES àqueles pelos quais ela é registrada, se esta mesma gozar de alto renome dentro do território de tal País-Membro, e se o uso do signo sem justo motivo tirar proveito indevido do caráter distintivo ou do renome da marca ou a ela traga prejuízo.
Fica nítido, em uma leitura preliminar dos dois dispositivos, que ambos se aplicam às marcas de alto renome, em casos em que os produtos e/ou serviços NÃO sejam idênticos ou similares.
A questão que se coloca é justamente de como proceder quando se apresenta uma situação em que a marca de alto renome é ameaçada por uma outra que designe produtos e/ou serviços IDÊNTICOS ou SIMILARES. Em outros termos, saber qual o nível de proteção que pode gozar uma marca de alto renome, quando confrontada num caso semelhante, silente o texto da Diretiva.
Essa situação, que pode ser à primeira vista considerada banal, gerou um conflito de interesses na Alemanha entre Davidoff & Cie. SA e Zino Davidoff SA de um lado, – empresas suíças que utilizam a renomada marca DAVIDOFF para, entre outros, cigarros, charutos e cigarrilhas -, e de outro lado, Gofkid Ltd. – empresa sediada em Hong Kong, que se utiliza da marca DURFFEE, para produtos em metal precioso, entre outros, cinzeiros, porta cigarros e porta-charutos.
Trata-se, na evidência, de caso que envolve produtos similares, na exata acepção do termo4, pelo caráter concorrente e complementar existente entre eles.
II – O Caso
As sociedades Davidoff procuraram a Justiça Alemã para requerer que esta determine a cessação da utilização da marca DURFFEE pela sociedade Gofkid (sob pena de condenação pecuniária diária) e a declaração de nulidade da marca em questão.
A alegação principal é a de que a marca DURFFEE contrafaz a marca DAVIDOFF, na medida em que se utiliza do mesmo estilo de caracteres na sua escrita, além do destaque que dá ao “D” e aos “FF”, de modo que a apresentação destes – e da marca marca das Autoras que fica nítido o abuso, bem como a como um todo – acaba por se assemelhar de tal maneira à possibilidade de prejuízo para estas e o risco de confusão entre os ditos signos.
Não tendo obtido sucesso em Primeira e Segunda Instância – por não terem provado o risco de confusão (a ser abordado mais adiante) – recorreram as sociedades suíças ao Bundesgerichtshof, que por sua vez, entendendo haver uma questão prejudicial, recorreu a CJCE5, para formular as seguintes questões:
Quanto à primeira questão, dentro das Observações apresentadas à Corte, Davidoff, o Governo Português e a Comissão das Comunidades Européias estimam que a resposta deve ser AFIRMATIVA, na medida em que, se a razão é expressamente de aplicação do texto aos produtos e/ou serviços não-similares, motivos mais fortes levam a crer na extensão aos produtos idênticos ou similares6.
Por sua vez, Gofkid, como esperado, e o Reino Unido entendem que a resposta deva ser NEGATIVA. Dentro de um posicionamento definido por uma interpretação mais literal do texto, ambos acreditam que a expressão dos limites da vontade do legislador foi colocada de maneira clara, não dando espaço para interpretações mais extensivas.
A seguir, foi o processo julgado pela 6ª Câmara da CJCE. A decisão apresentada foi assim fundamentada:
“24. (…) de inicio, convém relembrar que o artigo 5, parágrafo 2, da Diretiva não deve ser interpretado exclusivamente em relação ao seu texto, mas igualmente em consideração da economia geral e dos objetivos do sistema no qual ele se insere.
25. Ora, em consideração desses últimos elementos, não se poderia dar a este artigo uma interpretação que tivesse por conseqüência uma proteção das marcas de alto renome MENOR em caso de uso de um signo protegido por produtos ou serviços idênticos ou similares que em caso de uso de um signo protegido por produtos ou serviços não-similares.(…)
30. Dentro dessas condições, convém responder à primeira questão que os artigos 4, parágrafo 4, alínea “a” e 5, parágrafo 2, da Diretiva devem ser interpretados no sentido de autorizar aos Países-Membros o poder de prever uma proteção específica a uma marca registrada que tenha um renome quando a marca ou signo posterior, idêntico ou similar a esta marca registrada, seja destinado a ser utilizado ou é utilizado para produtos ou serviços idênticos ou similares àqueles cobertos por esta.”7
Quanto à segunda questão, não houve análise, tendo sido ela considerada prejudicada pela resposta dada à primeira.
III – Breve Comentário
No nosso entender, a decisão foi acertada, na medida em que o posicionamento adotado é fundado na letra da lei, sem deixar de levar em consideração o seu espírito, o intuito do legislador.
A interpretação fornecida pela Ré e pelo Reino Unido nas suas considerações é, ao nosso ver, extremamente limitada, não podendo corresponder à realidade dos fatos e muito menos ao posicionamento do legislador europeu, quando da concepção do texto.
O modo literal de interpretação do texto legal é, em geral, extremamente falível, na medida em que adota exclusivamente uma única forma de análise, em detrimento de uma visão mais ampla, abrangente, da intenção, momento político e econômico, e outros fatores que influenciam o legislador na redação e adoção do texto.
Desse modo, se tomássemos como certa a interpretação literal do texto legal europeu com relação à proteção das marcas de alto renome, ter-se-ia de conviver com uma posição no mínimo contraditória, pela qual a proteção conferida à marca de alto renome seria MAIS FORTE quando em conflito com marcas idênticas ou semelhantes, mas que representassem PRODUTOS NÃO SIMILARES, em detrimento de uma repressão mais eficiente à situação inversa – quando se tratasse de produtos idênticos ou similares – a qual, claramente, reclama uma melhor acolhida da lei.
Esta afirmação tem como fundamento o fato de que, em não se podendo reclamar o manto dos artigos supra analisados, remanesceria como única possibilidade de proteção invocar os artigos 4, parágrafo 1, alínea “b” ou 5, parágrafo 1, alínea “b”, da mesma Diretiva.
Ambos os artigos ora citados lidam com a exata situação em que exista colidência de marcas (não necessariamente de alto renome), em que os produtos e/ou serviços distinguidos sejam IDÊNTICOS ou SIMILARES entre marca anterior e posterior.
Nenhum problema seria posto, se não fosse o fato de que, para a correta aplicação de ambos os artigos, deverá estar nítido e demonstrado um RISCO DE CONFUSÃO8 entre ambas as marcas, em relação ao público ao qual elas concernem.
Ora, isso significa dizer, que, na ausência de risco de confusão, ou em situações em que ele não possa ser provado nitidamente, a marca de alto renome não poderia encontrar guarida nestes artigos.
Assim, se assumíssemos que ela não pudesse ser protegida nem pelo emprego desses artigos, nem pelo emprego dos artigos 4, parágrafo 4, alínea “a” e 5, parágrafo 2 – “reservados” a casos de produtos/serviços não similares -, ver-se-ia o titular de uma marca de alto renome, com todo o seu investimento para criar e manter o valor distintivo, atrativo e econômico do seu patrimônio (bem móvel que a marca é), desprotegido, sem guarida na legislação marcária.
Não nos parece que esta tenha sido a vontade do legislador europeu: nos “Considerandos” 9 e 10 apresentados na Diretiva (mencionados na decisão em estudo), ele coloca expressamente que a proteção às marcas visa facilitar a livre circulação de produtos e serviços (princípio básico do Tratado de Roma, que cria a União Européia), e igualmente visa assegurar o objetivo principal do direito marcário – a garantia da função de origem da marca. E nesse intuito, como já afirmado, ele dedica atenção especial expressa às marcas de alto renome.
Ademais, seria incoerente a lei se concedesse uma proteção mais eficiente e vantajosa à marca de alto renome em caso de não-idetidade/não similitude entre produtos ou serviços, do que no caso inverso, como bem notaram Davidoff, Governo Português e Comissão das Comunidades Européias. Felizmente, a posição assumida na solução adotada pela Corte consagra a interpretação destes.
IV – Conclusão – Brasil
Portanto, a Decisão dada ao caso, conhecida como “Davidoff II”, já tratada como um “leading case”, apesar de extremamente recente, mais do que preencher uma lacuna da lei nos apresenta elementos que nos levam a verificar o quão vasta é a área de abrangência da proteção legal destinada à marca de alto renome no Direito Europeu. Tal decisão consagra a sua importância para a economia (valor distintivo, atrativo e econômico), e para a sociedade (proteção ao consumidor, em relação à origem do produto/serviço).
Ela pode – e deve – servir de ilustração ao sistema brasileiro, na medida em que colabora para a segurança jurídica, admitindo expressamente a possibilidade de proteção da marca de alto renome para todas as categorias de produtos ou serviços, sem que tenha de ser necessariamente demonstrado o risco de confusão ou associação com outra marca posterior mesmo nos casos de similitude/identidade de produtos ou serviços.
No Direito Brasileiro, comando inserido no artigo 125 da LPI determina que, para as marcas de alto renome, “proteção especial” será destinada em todas as classes de produtos e serviços. Esta é justamente a regra que consagra a exceção ao regime da especialidade para este tipo de signo.
Porém, questões importantes são deixadas em aberto pelo texto: qual a extensão desta “proteção especial”? Seria ela “especial” apenas por abrir-se a todas as classes de produtos e serviços? Que regra utilizar para marcas de alto renome em que exista identidade, semelhança ou afinidade entre produtos e/ou serviços?
Relembremos que, para casos em que exista identidade, semelhança ou afinidade entre produtos e/ou serviços, a LPI nos remete ao artigo 124, incisos XIX e XXIII. Estes não se opõem necessariamente ao artigo 125, acima referido, e com ele podem agir em conjunto.
Ocorre que em ambos os incisos está expressa a necessidade de demonstração de “risco de confusão”. Como no caso Europeu, trata-se de elemento de prova extremamente subjetivo, vago, não claramente definido.
Não entendemos que seja o intuito da legislação pátria deixar questões como esta em aberto, ou ainda, facilitar a ação de eventuais aproveitadores de maneira indireta, pela dificuldade na aplicação ao caso prático dos instrumentos de proteção por ela concedidos ao titular da marca.
Apresentamos uma resposta que entendemos coerente. O amplo debate na comunidade jurídica brasileira levará, certamente, à melhor solução.
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1 – A Diretiva CE nº 89/104, de 21 de dezembro de 1988 harmoniza as legislações nacionais sobre marcas dentro da Comunidade Européia. Em si própria, uma Diretiva não tem poder de lei, sendo a sua adoção, contudo, obrigatória pelas legislações nacionais de cada País-Membro.
2 – A aplicação da lei ao caso concreto é de competência dos Tribunais Nacionais de cada País-Membro.
3 – Entende-se por marca de alto renome aquele sinal distintivo que, em virtude de sua alta reputação e alto grau de conhecimento pelo público ao qual o produto ou serviço que ele distingue se destina, poderá se beneficiar de uma extensão de proteção válida não apenas em relação a produtos ou serviços idênticos ou similares (Princípio da Especialidade), mas igualmente perante todo e qualquer produto ou serviço, qualquer que seja o ramo de atividade. “(…) pour bénéficier d’une protection élargie à des produits ou à des services non similaires, une marque enregistrée doit être connue d’une partie significative du public concerné par les produits ou services couverts par elle.(…)” Code de la Propriété Intellectuelle, nota 4 ao artigo 5 da Diretiva CE nº 89/104, pág. 1093, Dalloz, 2002. Adotamos a denominação “marca de alto renome” em Português em função da nomenclatura adotada pela Lei de Propriedade Industrial Brasileira (LPI), em seu artigo 125.
4 – “La similitude entre les produits ou les services s’apprécie en tenant compte de tous les facteurs pertinents qui caractérisent le rapport entre les produits ou les services, en particulier, leur nature, leur destination, leur utilisation ainsi que leur caractère concurrent ou complémentaire.” Conceito dado na Decisão CANON, da Corte de Justiça das Comunidades Européias (CJCE), 29/09/1998, Propriété Industrielle. Bulletin Documentaire (PIBD) 1999, III, p. 28, caso Canon-Kabushiki-Kaisha vs. Metro-Goldwyn-Mayer, Inc.
5 – Os Tribunais nacionais recorrem à CJCE em caso de dúvidas quanto à interpretação de determinado texto legal Europeu.
6 – A decisão menciona “(…) au motif que la protection spécifique accordée (…) à l’égard des produits non similaires doit s’appliquer à plus forte raison à des produits identiques ou similaires.”
7 – Parágrafos 24, 25 e 30 da decisão. Destaque nosso. Os textos originais estabelecem:
“24. À cet égard, il convient de relever d’emblée que l’article 5, paragraphe 2, de la directive ne doit pas être interpreté exclusivement au regard de son libellé, mais également en considération de l’économie générale et des objectifs du système dans lequel il s’insère.
25. Or, en considération de ces derniers éléments, il ne saurait être donné dudit article une interpretation qui aurait pour conséquence une protection des marques renommées moindre en cas d’usage d’un signe pour des produits ou des services identiques ou similaires qu’en cas d’usage d’un signe pour des produits ou des services non similaires.
30. Dans ces conditions, il convient de répondre à la première question que les articles 4, paragraphe 4, sous a), et 5, paragraphe 2, de la directive doivent être interpretés en ce sens qu’ils laissent aux États membres le pouvoir de prévoir une protection spécifique au profit d’une marque enregistrée qui jouit d’une renommée lorsque la marque ou le signe postérieur, identique ou similaire à cette marque enregistrée, est destiné à être utilisé ou est utilisé pour des produits ou des services identiques ou similaires à ceux couverts par celle-ci.”
8 – Como a análise e conceituação de “risco de confusão” fugiria do intuito deste texto, nos limitamos a colocar que para que ele se apresente, inúmeros fatores de caráter extremamente subjetivo (como similitude visual, sonora) são necessários para a sua caracterização, o que tornaria mais difícil ainda a tarefa do titular que queira ver a sua marca eficientemente protegida. Para uma conceituação precisa, vide Decisão CANON, da Corte de Justiça das Comunidades Européias (CJCE), 29/09/1998, PIBD 1999, III, p. 28, caso Canon-Kabushiki-Kaisha vs. Metro-Goldwyn-Mayer, Inc.
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* do escritório Bottallo e Gennari Advogados, é profissional em Propriedade Intelectual, Marcas, Patentes e Direito Autoral pela ABAPI, está atualmente em Strasbourg, França, cursando mestrado em Propriedade Intelectual pela Faculdade de Direito da Universidade Robert Schuman (Formado em 1995 pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; pós-graduado, em Finanças Corporativas (Sociedades Anônimas), pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo – EAESP-FGV)
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Atualizado em: 1/4/2003 11:49