Dívida Pública Federal
Salvaguardas aos detentores de títulos da dívida mobiliária interna
Lior Pinsky
1. – A dívida pública brasileira, que corresponde atualmente a mais de 60% do Produto Interno Bruto – PIB, vem sendo sem dúvida uma das maiores preocupações do mercado financeiro em 2002. Isso foi especialmente verificado durante o processo eleitoral realizado neste ano, em que tal tema foi recorrentemente discutido, em particular sua interrelação com o respeito a contratos e a austeridade fiscal.
2. – A conclusão das eleições de certa forma acalmou os ânimos do mercado, que, não obstante diversas declarações públicas da cúpula do partido do Presidente recém-eleito no sentido de manutenção da disciplina fiscal, ainda espera algumas definições: por exemplo, ainda persiste a dúvida sobre as ações que poderão ser tomadas a partir de janeiro de 2003 relativas à dívida pública mobiliária federal interna. Esse cenário de relativa insegurança verifica-se possivelmente pelo fato de se tratar do primeiro Presidente eleito, após um longo período, oriundo de uma vertente esquerdista e de oposição ideológica ao atual Governo.
3. – As principais preocupações do mercado detentor de títulos públicos federais referem-se à possibilidade de: (i) emissão indiscriminada de novos títulos; (ii) criação de novos títulos com preferência sobre os existentes; e (iii) resgate antecipado dos títulos, unilateralmente, pela União.
4. – Cabe então a pergunta: existem na legislação brasileira regras de proteção aos atuais detentores de títulos da dívida mobiliária federal? Tais regras são suficientes para proteger os detentores dos títulos? Neste trabalho pretendemos analisar de forma sucinta algumas das principais normas constitucionais, legais e regulamentares aplicáveis à emissão, negociação e administração da dívida pública mobiliária federal interna, de modo a demonstrar que os investidores e detentores de tais títulos contam com importantes salvaguardas jurídicas que impediriam qualquer Presidente eleito de, independentemente de sua orientação política, tomar, unilateralmente e a seu livre critério, medidas descabidas e imprevisíveis em prejuízo dos credores.
(i) Competência e Limites de Emissão
5. – A primeira preocupação dos investidores aqui tratada é a possibilidade de emissão indiscriminada de novos títulos, com conseqüente aumento do risco de crédito. Quanto a isso, é fundamental ter claro desde logo que incumbe privativamente ao Senado (sem necessidade de sanção presidencial) fixar através de resolução os limites globais para o montante da dívida pública consolidada da União, Estados e Municípios, e para operações de crédito interno (e externo) da União (art. 52, VI e VII da (Constituição Federal (“CF”), e art. 30, I da Lei Complementar 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal (“LRF”)). Tais limites serão expressos em percentual da receita corrente líquida para cada esfera de governo, e aplicados igualmente a todos os entes da federação que a integrem. Observe-se que estes limites podem ser alterados pelo Senado Federal, mediante solicitação do Presidente da República, verificadas alterações nos fundamentos que os embasam, ou em razão de instabilidade econômica ou alterações nas políticas monetária ou cambial.
6. – Nesse sentido, a contratação de operações de crédito dependerá de verificação do cumprimento de limites por parte do Ministério da Fazenda1. Ademais, o refinanciamento do principal da dívida mobiliária não poderá exceder, ao término de cada exercício financeiro, o montante do final do exercício anterior, somado ao das operações de crédito autorizadas no orçamento para este efeito e efetivamente realizadas, acrescido de atualização monetária (LRF, arts. 32 e 29, § 4º).
7. – Relativamente à margem de atuação, ou melhor, legislação, pelo novo Presidente da República sobre aspectos da dívida mobiliária federal interna, é preciso ter em mente que a competência para legislar sobre operações de crédito, dívida pública e seu montante cabe ao Congresso Nacional (CF, art. 48, II e XIV), com posterior sanção do Presidente da República.
8. – Já o Presidente da República, além de expedir decretos para a fiel execução das leis, poderá, em caráter de relevância e urgência, editar medidas provisórias (“MP”) com força de lei ordinária sobre matéria de dívida pública, desde que não contemple, entre outras, matéria reservada a lei complementar e matéria relativa a orçamento (art. 62 da CF). Nesse contexto, deve ser ressaltado que apesar de já ter havido MP tratando de matéria da dívida pública (como a MP 2.096-89/2001, que trata da emissão dos títulos do Tesouro Nacional, hoje convertida na Lei 10.179/2001), o artigo 163 da CF prevê que lei complementar disporá sobre “dívida pública externa e interna”, bem como “emissão e resgate de títulos da dívida pública”. Desta forma, há bons argumentos para defender ser inconstitucional a edição de MP que tenha por escopo regular a dívida pública ou a emissão e resgate de títulos da dívida pública. Lembre-se que, mesmo que não fosse declarada a inconstitucionalidade de referida MP, pelos novos dispositivos constitucionais aplicáveis qualquer MP editada pelo Presidente, caso não convertida em lei em no máximo 120 dias pelo Congresso, perderá a eficácia desde sua edição, o que desestimula a utilização de MP para tratar de matéria relativa a dívida pública.
9. – Portanto, dadas a fixação de limites de dívida pelo Senado Federal e pela LRF e a restrita competência legislativa do Presidente em matéria de dívida pública, conclui-se que há sólida proteção legal a impedir a emissão indiscriminada de novos títulos por um novo Governo, como o do recém-eleito Presidente.
(ii) Novos Títulos Garantidos
10. – No tocante a possíveis garantias de novos títulos públicos a serem emitidos, o Código Civil Brasileiro atualmente em vigor estabelece não ser possível ao Poder Público prestar garantia a terceiros. Isto porque os bens públicos não são alienáveis (art. 67), e somente bens alienáveis podem ser utilizados para prestação de garantia (art. 756).
11. – A partir de 11.01.2003, com a entrada em vigor do Novo Código Civil (Lei 10.406/2002), os bens dominicais, ou seja, aqueles que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público (mesmo que estas tenham estrutura de direito privado) poderão ser alienados (arts. 98 e 101). Tendo em vista que em princípio os bens alienáveis podem ser dados em garantia, teoricamente é possível construir a tese de que o Poder Público poderá, a partir da entrada em vigor do Novo Código Civil, utilizar bens dominicais para constituição de garantias reais em seus títulos de dívidas públicas.
12. – Todavia, é preciso levar em conta que pagamentos a serem feitos aos credores nos processos de execução contra a Fazenda Pública devem seguir a ordem de apresentação do precatório e a conta do respectivo crédito (Código de Processo Civil, art. 730). Os precatórios são cartas de sentença remetidas pelo juiz da causa ao Presidente do Tribunal para que este requisite ao Poder Público, mediante previsão na lei orçamentária, o pagamento de quantia certa para satisfazer obrigação decorrente de condenação das pessoas políticas, suas autarquias e fundações. Em conseqüência, ainda que se aceite a validade da utilização de bens dominicais para a constituição de garantias (em princípio possível a partir do próximo ano), entendemos que tal garantia seria ineficaz por ter de obedecer ao procedimento de execução contra a Fazenda Pública previsto em lei.
(iii) Resgate Antecipado (call)
13. – Outra preocupação dos detentores de títulos da dívida mobiliária federal interna diz respeito à possibilidade de resgate antecipado dos mesmos pelo Ministério da Fazenda (através da Secretaria do Tesouro Nacional). Em geral, títulos resgatáveis unilateralmente são atraentes para o emissor que, em caso de queda nas taxas de juros, poderá através do simultâneo resgate e nova emissão, manter o mesmo nível de endividamento a um custo mais baixo. Por outro lado, tal característica reduz o potencial de ganho dos detentores dos títulos. Por este motivo, títulos resgatáveis costumam ter remuneração maior que títulos similares sem essa característica. Daí a preocupação dos detentores de títulos da dívida mobiliária federal interna.
14. – A possibilidade de resgate dos títulos é prevista de forma genérica na Lei 10.179/2001 e na Portaria 214/2000 do Ministério da Fazenda. Entretanto, o Decreto 3.859/2001, que estabelece as características gerais de cada um dos títulos da dívida pública mobiliária federal interna (LTN, LFT-A, LFT-B, NTN-A1, NTNs das séries A3 a A10, NTNs das séries B a F, NTN-H, NTN-I, NTN-M, NTN-P, NTN-R2, CFTs das séries A a H e das subséries 1 a 5, CTN, e CDP/INSS) não prevê a possibilidade específica de um ou outro título da dívida pública federal interna ser objeto de resgate antecipado.
15. – Desse modo, o melhor entendimento impõe que a faculdade genérica de resgate antecipado pelo Tesouro daqueles títulos do Decreto 3.859/2001 apenas terá validade, ou melhor, poderá ser exercida, se e quando prevista expressamente na respectiva portaria descrevendo as condições da série de título emitida. Assim, caso a portaria autorizando a emissão de determinado título nada mencione relativamente à possibilidade de seu resgate antecipado pelo Tesouro, deve-se entender que o resgate antecipado não será possível, sob pena de estar-se violando o direito adquirido dos compradores dos títulos (direito de manter seu título até seu vencimento, evitando o resgate unilateral e antecipado com prejuízo dos juros e demais condições pactuados), em flagrante desrespeito ao primado da segurança jurídica. Seria, portanto, absolutamente inadmissível tomar-se a previsão do art. 3o, §1o da Lei 10.179/2001 como uma licença ampla, indiscriminada e atemporal ao Governo para, a qualquer momento, resgatar antecipadamente títulos emitidos sem que tal possibilidade (e as condições para tanto) houvessem sido estipuladas ao tempo do lançamento dos referidos títulos e conhecidas (portanto aceitas) pelos adquirentes dos títulos quando de sua aquisição.
16. – Reforça ainda nosso entendimento o fato de os títulos da dívida pública federal se assemelharem a títulos de crédito, dado que possuem várias características em comum com aqueles, tais como, literalidade, autonomia e formalismo (Novo Código Civil, art. 887 e seguintes; Decretos 57.663/1966 e 2.044/1908), não obstante se tratar de títulos emitidos pelo Governo e se lhes aplicarem, conseqüentemente, normativos particulares. Sendo esses títulos públicos equivalentes a títulos de crédito, percebe-se com facilidade que o princípio da literalidade impede a alegação da existência de um direito não previsto no título em si ou na lei ou regulamento que os defina. Examinando-se esse princípio vis-à-vis os títulos da dívida pública e as normas acima mencionadas, conclui-se que a ausência de previsão expressa no regulamento que descreve os títulos (Decreto 3.589/2000) autorizando o resgate antecipado, somada à ausência de sua previsão pela portaria específica de emissão de determinado título, obsta seu resgate antecipado2.
17. – No entanto, fique claro que isso não impede a recompra pelo Tesouro, no mercado (e portanto com total anuência dos titulares vendedores), dos títulos emitidos. Essas operações de recompra são em verdade efetuadas regularmente, podendo o Tesouro, inclusive, substituir os títulos por outros (Portaria 214/2000 do Ministério da Fazenda).
(iv) Conclusão
18. – Conforme visto acima, o Brasil possui um arcabouço constitucional e legal com importantes salvaguardas aos detentores de dívida pública mobiliária federal interna. Tais salvaguardas limitam a possibilidade de o Poder Executivo, unilateralmente (i) emitir indiscriminadamente novos títulos; (ii) criar novos títulos com preferência sobre os títulos de dívida interna existentes; e (iii) resgatar antecipadamente os títulos existentes (exceto se existir essa previsão no momento da emissão).
19. – Qualquer novo Governo, caso resolva mudar a política relacionada à dívida pública, poderá eventualmente fazê-lo através de MP. Entretanto, existem bons argumentos para defender que um tal ato seja declarado inconstitucional, e mesmo que não o seja, terá o chefe do Poder Executivo suas ações limitadas pelo disposto em diversas leis, inclusive a LRF e resoluções do Senado Federal. Ainda, com a nova sistemática constitucional aplicável às MP, seria temerário que matérias relativas a dívida pública sejam tratadas por MP sem que o Presidente tenha maioria parlamentar assegurada.
20. – Conseqüentemente, sem o apoio maciço do Congresso para alterar a Constituição e a LRF, ou pelo menos sem o apoio majoritário do Congresso para transformar suas MP em lei, a margem de ação de um novo Presidente será reduzida no que diz respeito à mudança na política da dívida pública mobiliária federal interna.
21. – Portanto, percebe-se harmonia entre as regras legais e institucionais aplicáveis à dívida pública e o discurso de austeridade fiscal e respeito aos contratos dos membros do novo Governo Federal. Caso tal discurso seja efetivamente confirmado pelas medidas a serem tomadas, certamente os mercados poderão operar em um clima de maior tranqüilidade, tranqüilidade esta amparada pelo arcabouço jurídico existente.
__________
1. O papel do Banco Central limita-se (a) à sua atuação como agente do Tesouro Nacional para a operacionalização da emissão dos títulos em mercado, e (b) à possibilidade de comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional com objetivos de política monetária (regular a oferta de moeda ou da taxa de juros). Desde 04.5.2002, o Banco Central não está mais autorizado a emitir títulos de dívida próprios. É à Secretaria do Tesouro Nacional que incumbe (por delegação do Ministro da Fazenda) autorizar a emissão, o resgate antecipado, e a realização de operações de substituição dos títulos da dívida pública de responsabilidade do Tesouro Nacional. Assim, o processo de emissão de títulos federais internos inicia-se através de portaria da Secretaria do Tesouro Nacional, a qual conterá as condições específicas (tipo, quantidade, prazo, juros, etc.) de cada leilão de títulos.
2. As debêntures, por exemplo, outro valor mobiliário comumente considerado como espécie de título de crédito, têm consagradas na lei a faculdade de a companhia emissora efetuar seu resgate antecipado, sendo, todavia, pacífico que tal direito apenas pode ser exercido na hipótese de expressa previsão de tal resgate na escritura de emissão das debêntures (Lei 6.404/76, art. 55). E interpretação diversa para os títulos públicos da dívida federal interna não nos pareceria de modo algum justificável.
_______________
*associados de Pinheiro Neto Advogados, coordenados por Alexandre Bertoldi, integrantes da Área Empresarial.
________________
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
Ó 2002. Direitos Autorais reservados a Pinheiro Neto Advogados.
___________________________________
Atualizado em: 1/4/2003 11:49
Lior Pinsky
Advogado e sócio do escritório Veirano Advogados.