Os clubes desportivos e o novo Código Civil
Carlos Miguel Castex Aidar*
Tendo completado um ano de vigência do novo Código Civil brasileiro, permanecem algumas dúvidas sobre seu raio de abrangência, em especial sobre os clubes desportivos, constituídos sob a forma de associações (sociedades civis sem ou com fins econômicos). Em outras palavras: deveriam as entidades esportivas adaptar seus documentos societários ao novo regramento até o último 11 de janeiro?
Definitivamente, a resposta é não. O questionamento refere-se ao teor dos artigos 59, 2.031 e 2.033 do novo código. A indagação que se faz é se esses dispositivos, conquanto imperativos legais, são válidos ou não para as associações desportivas de modo geral. As entidades desportivas têm regime organizativo e funcional especial, como determina a Constituição Federal (artigo 217, inciso I).
O artigo 59 do Código Civil, aplicável a todas as associações como norma geral, reza: “Compete privativamente à assembléia geral: I – eleger os administradores; II – destituir os administradores; III – aprovar as contas; IV – alterar o estatuto. Parágrafo único: Para as deliberações a que se referem os incisos II e IV é exigido o voto concorde de dois terços dos presentes à assembléia especialmente convocada para esse fim, não podendo ela deliberar, em primeira convocação, sem a maioria absoluta dos associados, ou com menos de um terço nas convocações seguintes.”
Já o artigo 2.031 prescreve: “As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, terão o prazo de um ano para se adaptarem às disposições deste Código, a partir de sua vigência; igual prazo é concedido aos empresários.” E o artigo 2.033 determina: “Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no artigo 44, bem como a sua transformação, incorporação, cisão ou fusão, regem-se desde logo por este código.”
No meu entender, os três artigos do Código Civil não se aplicam às entidades de prática desportiva, que gozam de autonomia peculiar conferida pela Constituição Federal, para definir suas organizações e funcionamento. Vejamos o que afirma o artigo 217, inciso I da Constituição: “É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados: I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento.”
“Organização” e “funcionamento”, sabem todos que participaram, como nós, da inserção constitucional do esporte, são expressões que somente podem ser entendidas como organização e funcionamento internos e especiais, exigindo norma peculiar, e jamais sua nivelação à organização e funcionamento de todas as demais entidades não esportivas. Aliás, a expressão “internos” existia no texto constitucional antes da revisão da comissão de sistematização que a suprimiu, pois, por óbvio, seria uma redundância falar em “sua” e “interno” ao mesmo tempo. É, portanto, absolutamente inquestionável que a autonomia de organização e funcionamento das associações desportivas diz respeito a algo diferente daquela autonomia própria das associações em geral. Não é por outra razão que as entidades esportivas têm, em seus estatutos, a previsão de que seus associados elegem seus conselhos e, estes, elegem seus dirigentes, reformam os estatutos e aprovam as contas. É importante destacar que a Constituição Federal está em nível hierárquico superior ao Código Civil, não importando se ela é datada de 5 de outubro de 1988 e o Código Civil é de 10 de janeiro de 2002. E a norma especial para as associações desportivas, constante do artigo 217 da Constituição, não pode ser revogada por norma geral.
A matéria, conquanto ainda de forma inicial, já foi apreciada no Agravo de Instrumento nº 293.980-4/0, de relatoria do desembargador J. Roberto Bedran, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP): “O artigo 59 do novo Código Civil não leva à convicção certa e induvidosa de que a eleição dos dirigentes de associações e clubes desportivos, em assembléia geral, respeitados os princípios constitucionais da autonomia de organização e funcionamento (artigo 217, inciso I da Constituição Federal) e da liberdade de associação (artigo 5º, inciso XVII da Constituição Federal), só possa ser a direta, pelos próprios sócios, e não a indireta, em dois ou mais pleitos.”
Outra prova de que este entendimento está correto foi a eleição, recentemente, para a presidência do Santos Futebol Clube, precedida de reforma em seus estatutos sem observância do quanto disposto no artigo 59 do Código Civil, o que foi objeto de questionamento judicial, porém repelido duas vezes pelo desembargador Morato de Andrade, seja no Agravo de Instrumento nº 322.990-4/1, seja na Ação Cautelar Inominada, de caráter incidental, nº 333.006-4/6, e uma vez pelo desembargador Theodoro Guimarães no Agravo de Instrumento nº 329.611-4/2.
No Brasil, a prática desportiva e sua respectiva organização, ao contrário de outros países, tem uma autonomia muito maior, principalmente no que se refere à prática profissional. Embora no passado tenha existido um sistema com um órgão que enfeixava poderes quase que absolutos na seara desportiva, o extinto Conselho Nacional de Desportos, a atual Constituição Federal mudou significativamente a estrutura jurídico-desportiva nacional, abolindo velhos conceitos intervencionistas. Portanto, a visualização do desporto deve partir destas premissas constitucionais. E as agremiações devem continuar sendo regidas pelo disposto no artigo 217 de nossa Constituição.
Esse é o nosso entendimento, que vem sendo agasalhado pelo Poder Judiciário e pelos doutrinadores, como os eminentes professores Miguel Reale e Ives Gandra da Silva Martins.
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*Advogado do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar – Advogados e Consultores Legais, especialista em direito desportivo e ex-presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).
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Atualizado em: 14/1/2004 07:50