Legitimação de decisão judicial do STF pelo Congresso Nacional   Migalhas
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Legitimação de decisão judicial do STF pelo Congresso Nacional – Migalhas

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O STF extrapolou ou não os limites da sua competência de julgar e interpretar a Constituição Federal avançando sobre as atribuições legislativas do Congresso Nacional? Essa pergunta está na pauta diária das conversas, dos grupos sociais e dos meios de comunicação. Existe muita queixa e desconfiança dirigida contra o STF. Esse fenômeno é conflito interno na República e pode ser analisado como efeito de disfunção sistêmica na harmonia da separação entre os três poderes.

O regime constitucional de separação de poderes manifesta-se atualmente disfuncional no ponto específico do controle da criação, modificação ou extinção de normas gerais e abstratas. Essa afirmação tem por base os conflitos que emergem cotidianamente na pauta nacional. A Figura 1 representa a estrutura dos três poderes e as relações de controle mútuo. O que é possível observar?

Figura 1. Poderes da República e controle na criação, modificação e extinção de normas gerais

O presidente da República pode vetar1 projetos de lei por inconstitucionalidade ou quando contrários ao interesse público (CF, art. 66, §1º). O Congresso Nacional pode sustar2 atos normativos do Poder Executivo quando exorbitem os limites do poder regulamentar (decreto) ou limites de delegação legislativa (CF, art. 49, V). Nesses dois pontos, a harmonia entre os poderes Legislativo e Executivo consiste na outorga mútua de poder (direito) para a finalidade de suspender ou impedir a eficácia de ato normativo em razão de vícios apontados nas respectivas normas.

A situação do Judiciário é diferente. O STF tem o monopólio da interpretação da norma. Por meio das ações judiciais próprias detém o poder de definir a amplitude da eficácia ou ineficácia de determinado dispositivo normativo. Nesse ponto específico, o sistema hoje seria mais hierárquico do que propriamente equilibrado.

Esse poder de interpretar a norma, parte integrante da competência para julgar, tem por efeito real integrar ou alterar os atos normativos do Congresso Nacional e do Presidente da República.

Em primeiro momento, o raciocínio usual é simples: interpretar norma é parte da atividade de julgar. Se não houver interpretação, não haverá possibilidade de enquadramento do fato certo e provado à norma incidente. Sim. Esse raciocínio jurídico é perfeito!

Efeito importante pode decorrer dessa interpretação constitucional e que pode ser definido como causa do conflito institucional. Esse efeito pode ser apresentado como questão lógica regida pela não contradição: a decisão judicial produz o efeito de criar, modificar ou extinguir norma geral e abstrata?

A Figura 2 representa a solução lógica do conflito. A resposta é sim ou não. Essa resposta é simples para os mortais e dificílima para o consenso dos advogados e juízes. Fato é que “sim” é uma resposta possível, ainda que acórdão não possa acolher essa declaração de reconhecimento.

Se o conteúdo da decisão judicial tem o efeito jurídico de criar, modificar ou extinguir norma, parece lógico concluir que é possível a interferência na competência do Congresso Nacional ou do presidente da República, de um lado, e extrapolação dos limites da atividade de interpretar as normas, por parte do STF.

Figura 2. Conteúdo da decisão judicial e seu efeito real sobre a estrutura das normas

A etapa seguinte do exame da matéria consiste em definir a potencial e atípica extrapolação dos limites da atividade de interpretar a norma, que é parte da função de julgar.

No plano lógico, a decisão judicial pode criar conduta obrigatória (deve fazer ou não fazer) alterando liberdade existente (pode fazer ou não fazer) ou criar conduta livre (pode fazer ou não fazer) quando norma estabelece conduta obrigatória (deve fazer ou deve não fazer). A Figura 3 representa essas duas alternativas. 

Figura 3. Efeitos possíveis de decisão judicial no plano das condutas

Solução possível para o conflito seria assegurar ao Congresso Nacional em contrapeso e a título de harmonia entre os poderes, o direito (poder) para legitimar ou não a interpretação normativa judicial, quando presente a juízo de um dos poderes ou de ambos alguma dúvida sobre o efeito jurídico capaz de criar, modificar ou extinguir norma.

Algumas ponderações são necessárias.

A palavra legitimação parece apropriada. O significado é acolher a interpretação judicial, o que é compatível com a harmonia e integração necessária entre os poderes da República.

A interpretação da norma pode ser compreendida como processo integrado entre poderes visando a sua eficácia plena, segura e amadurecida. A experiência do STF é muito significativa enquanto Órgão no qual desaguam os conflitos jurídicos mais relevantes do País. Essa ordenação e diálogo entre pautas pode ser muito positiva.

O Congresso Nacional detém a mais relevante parcela da soberania e representação popular. O respeito e certa reverência à essa legitimidade alinha a atividade de julgar e interpretar a norma com a função do legislar, eliminando, no plano institucional, o conflito existente.

O procedimento de legitimação poderia alcançar os atos regulamentares do presidente da República. O Congresso Nacional estaria assim reunindo e integrando a tutela da criação, modificação ou extinção de atos normativos.

Parece lógico reconhecer que se, por um lado, compete ao STF uniformizar a interpretação das normas constitucionais, por outro lado, caberia ao Congresso Nacional unificar a tutela da criação, modificação ou extinção de atos normativos, protegendo, inclusive, o poder regulamentador do Presidente da República.

Os fatos sugerem que o tema da “invasão da competência” está incorporado ao noticiário nacional e à relação entre os poderes Legislativo e Judiciário. Esse fenômeno em certa medida caracteriza a atual fase da história da soberania no Brasil. A manchete do momento é o porte da maconha para uso pessoal.

O destaque do G1, edição de 25/6/24, foi o seguinte: Pacheco diz discordar de posição do STF sobre porte de maconha para uso pessoal e fala em invasão à competência do Congresso. Essa matéria reflete a posição de um dos ministro dos STF: “A fala de Pacheco vai ao encontro da posição do ministro André Mendonça, do STF, que é contrário à descriminalização. Para o magistrado, o Supremo está “passando por cima do legislador” no julgamento sobre o porte de maconha para uso pessoa”. No dia seguinte, o G1 publicou em manchete a opinião de outro ministro: “Gilmar rebate Pacheco e nega que STF tenha invadido competência do Congresso ao decidir sobre maconha”.

Em torno do tema, o ministro Luiz Fux, integrante do STF, chamou a atenção pela lucidez e coerência em manifestação sobre o tema. Reconheceu a tensão interna do Órgão em responder às pautas relevantes que chegam através dos processos, e, de outro lado, a dificuldade de calibrar o limite da interpretação normativa. Em resumo, disse: “Brasil não tem governo de juízes”. Fez questão de relembrar discurso de posse, quando assumiu a presidência do STF: “em um Estado democrático a instância maior é o parlamento”3.

Essa breve memória do noticiário recente sugere que a harmonia entre os poderes prevista na Constituição (CF, artigo 2º) não é apenas retórica normativa. Exige aprimoramento a partir da experiência histórica e institucional.

Outros pontos poderiam ser escritos sobre esse tema, mas preferível adotar a opinião de Montesquieu, quando tratou da divisão dos poderes, no Espírito das leis: “Gostaria de pesquisar, em todos os governos moderados que conhecemos, qual é a distribuição dos três poderes e através disso calcular os graus de liberdade de que cada um pode gozar. Mas nem sempre se deve esgotar tanto um assunto, que nada se deixe para o leitor fazer. Não se trata de fazer ler, e sim de fazer pensar.”

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1 CF, Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará.

§ 1º Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.

2 Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

….

V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;

3 Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/justica/videos/brasil-nao-tem-governo-de-juizes-diz-fux-em-voto-sobre-descriminalizacao-do-porte-de-maconha,8b7569c85d4a017c84fc2d21207aaac303n6buzo.html

Luiz Walter Coelho Filho

Luiz Walter Coelho Filho

Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados. Graduado em Direito pela UFBA, ano de 1985. Exerce a advocacia nas áreas de Direito Administrativo e Imobiliário

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