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Dentre as condutas unilaterais que interferem negativamente no ambiente concorrencial, destacam-se: fixação de preço de revenda; descontos de fidelidade; recusa de contratar; abuso no exercício de direito de propriedade intelectual; potenciais cláusulas restritivas à concorrência; e o sham litigation, que é o foco dos nossos apontamentos.
O sham litigation ou litigância predatória tem relação direta com o abuso no exercício de direitos subjetivos fundamentais e de gênese democrática, protegidos pela Constituição Federal, especificamente os direitos de acesso ao Poder Judiciário (princípio do acesso à Justiça ou inafastabilidade da jurisdição) e de petição.
É consabido, no entanto, que a aplicação de tais princípios e garantias constitucionais não pode se dar de maneira absoluta, dissociada de juízos de avaliação quanto à observância das regras infraconstitucionais (materiais e processuais) e aos mandamentos de ordem constitucional.
O abuso de direito encontra previsão no Código Civil (art. 187), que estabelece como ato ilícito “o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
A prática abusiva do direito de ação ou petição gera distorções no ambiente competitivo, interferindo no direito da contraparte de atuar com liberdade econômica (postulado da livre iniciativa – art. 170, da CF). Sob essa perspectiva, cabe ao intérprete buscar a harmonização entre os princípios de acesso à justiça e da livre concorrência.
Princípios e regras no contexto do Sham Litigation
Importante destacar que os princípios não se aplicam a comportamentos concretos individualizados, diferentemente das regras. Daí decorre a generalidade e a linguagem vaga e indeterminada dos princípios.
O conflito entre regras se resolve por meio de uma regra de exceção, a menos que uma delas seja considerada inválida. No caso de conflito entre princípios, a resolução depende do peso relativo de cada um, o que não ocorre de modo exato. Ainda, deve-se observar a precedência de um princípio sobre o outro conforme as circunstâncias do caso concreto.
Neste “jogo de princípios”, ao invés de um afastar a aplicação do outro, ambos se influenciam reciprocamente, buscando a harmonização. Um princípio reduz a rigidez do outro, permitindo a aplicação simultânea de princípios aparentemente contraditórios entre si.
Cumpre ao estado, no papel de agente regulador, intervir para reconhecer e afastar práticas nocivas que, sob o manto de um pretenso direito absoluto de ação e petição, visam prejudicar concorrentes. Exemplos incluem afastar o acesso de novas empresas ao mercado, denegrir a reputação de concorrentes e, em casos extremos, aniquilar empresas rivais.
A existência de recursos financeiros abundantes permite ao detentor de poder econômico ajuizar múltiplas ações infundadas, tanto nas esferas administrativa quanto judicial, com o intuito de prejudicar concorrentes.
Sham Litigation: Testes e Análise
O sham litigation pode configurar infração à ordem econômica (art. 36, lei 12.529/11) ou concorrência desleal (arts. 195 e 209, lei de propriedade industrial). No direito comparado, em especial no direito americano, surgem as bases dessa prática.
O CADE – Conselho administrativo de defesa econômica tem aplicado alguns critérios para identificar o sham litigation, como os seguintes testes:
1) Teste PRE: Ocorre quando a parte ajuíza expedientes objetivamente sem fundamento, com intuito anticompetitivo. Por exemplo:
– Quando há clara carência das condições da ação ou omissões relevantes, criando confusão no Judiciário.
– Quando a parte ajuíza ação manifestamente improcedente para causar dano colateral, elevando os custos do concorrente.
2) Teste POSCO: Consiste no ajuizamento de uma série de ações com baixa probabilidade de sucesso, mas com efeitos danosos aos concorrentes, como retirada temporária do mercado.
3) Litigância fraudulenta: Aqui, há expectativa de dano direto por meio de provimento estatal, baseado em falsidade.
4) Acordos judiciais: Acordos que criam monopólios ou elevação de poder de mercado também podem ser considerados práticas ilícitas, dependendo do contexto1.
A análise do caso concreto, conforme a regra da razão, é essencial para ponderar a licitude da conduta analisada. As hipóteses acima constituem um guia inicial para a análise de condutas abusivas com efeitos anticompetitivos.
Combate ao Sham Litigation
Por que o sham litigation deve ser combatido? Além de interferir na livre concorrência, gera insegurança jurídica. A multiplicidade de ações predatórias é dirigida tanto ao Judiciário quanto a órgãos administrativos, como agências reguladoras e instituições de autorregulação. Isso impõe a essas entidades o risco de decisões contraditórias.
A prática de sham litigation afeta a estabilidade das instituições democráticas, as quais são guiadas pelos princípios da eficiência e celeridade. O abuso desses princípios pode resultar em descrédito nas instituições e insegurança jurídica.
Além disso, temas debatidos nesses processos são, em muitos casos, técnicos e especializados, cuja análise deveria ser competência originária das agências reguladoras.
Propostas de Mecanismos de Combate
Lege ferenda, penso que deveriam existir mecanismos para, não apenas normatizar os “testes” que o CADE atualmente aplica ao analisar o sham litigation (teste pre, teste posco etc.), mas também visando a interrupção e punição da prática, de maneira assertiva e tempestiva.
A litigância predatória, que ultrapassa os critérios de razoabilidade e boa-fé, exige uma análise individualizada, o que pode levar tempo indesejado. Esse atraso pode causar danos irreversíveis ao concorrente, muitas vezes levando à inviabilidade de suas atividades ou até a sua extinção, que é o objetivo dissimulado do litigante predatório.
Uma proposta interessante é a criação de um banco de dados interligado entre o Judiciário e órgãos administrativos, facilitando a identificação de maus litigantes. A existência de indícios do sham litigation deveria acarretar, de imediato, a suspensão da tramitação dos processos envolvidos.
Em seminário realizado pelo COPEDEM em 2022, a conselheira Lenise Prado sugeriu a aplicação da súmula CARF 1, segundo a qual, ao optar pela via judicial, o processo administrativo seria suspenso, cabendo exclusivamente ao Judiciário decidir o conflito.
Esta proposta pode ser aplicada também às agências reguladoras e ao CADE, estabelecendo uma “sequência” de instruções probatórias, com a análise inicial pelas agências especializadas, antes de o caso chegar ao Judiciário.
Conclusão
A verdadeira justiça vai além da simples acessibilidade; ela deve proteger contra abusos de poder. No ambiente competitivo, é crucial combater a litigância predatória para manter a integridade do mercado e garantir uma concorrência justa.
Quando o direito é usado para silenciar concorrentes em vez de promover equidade, ele falha em seu propósito fundamental.
Para enfrentar esse desafio, é essencial implementar mecanismos regulatórios eficazes, como a criação de um banco de dados interligado e a suspensão imediata de processos suspeitos. Um sistema jurídico eficaz deve identificar rapidamente aqueles que distorcem as regras para obter vantagens indevidas.
Defender a concorrência leal é assegurar que o futuro seja moldado pela inovação e pelo mérito, não pelo abuso de poder.
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1 Vide Nota Técnica SG nº 241/2014 – SEI 0009246, constante do Processo Administrativo 08012.011508/2007-91 (Representante: Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos – Pró Genéricos; Representados: Eli Lilly do Brasil Ltda. e Eli Lilly and Company). Disponível em https://jurisprudencia.cade.gov.br/pesquisa. Consultado em 16.09.24.