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No último dia 10/09, o Migalhas realizou mais um evento de estudos e discussões sobre a Reforma do Código Civil, desta vez um debate temático, sob a minha coordenação, com foco nas inter-relações do Código Civil com a economia. Exatamente por isso, os temas escolhidos foram aqueles ligados às relações contratuais, à responsabilidade civil e ao direito civil digital. Foram convidados três destacados integrantes da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal e responsável pela elaboração do Anteprojeto, respectivamente, os professores Carlos Eduardo Pianovski, Nelson Rosenvald e Laura Porto, dos quais tivemos a oportunidade de ouvir, cada um tratando de seu campo específico de atuação, sobre algumas das propostas que produzirão impacto positivo na economia, com repercussão na redução do custo Brasil, além de respostas a avaliações injustas e desproporcionais, endereçadas ao texto projetado por algumas pessoas e instituições, notadamente aquelas relacionadas ao suposto incremento da sensação de insegurança jurídica com impacto negativo no ambiente de negócios e nos investimentos estrangeiros.
O que chama a atenção nessas críticas, além da velha estratégia de recurso ao argumento ad terrorem, é a ausência total e absoluta de quaisquer sugestões de aprimoramento, senão a amputação dos dispositivos ou o próprio arquivamento de todo o Anteprojeto.
Na seara do Direito das Obrigações e dos Contratos, tema da exposição do professor Pianovski, consigna-se, entre outras objeções, que as propostas de alteração causariam comprometimento da segurança jurídica e aumento da litigiosidade; que a oposição entre contratos paritários e não paritários não é pacificada em doutrina; que haverá ampliação de hipóteses em que se poderá alegar nulidade do contrato por violação da ordem pública; além de se criticar, como se de inovação se tratasse, a inclusão da função social como causa de nulidade contratual.
Ora, a sugestão legislativa, na matéria contratual, como bem expôs Carlos Pianovski, é a de ampliação da autonomia privada, em prestígio à liberdade contratual e aos princípios da intervenção mínima e da “excepcionalidade da revisão contratual, reforçando as balizas trazidas, em 2019, pela Lei da Liberdade Econômica, especialmente nos contratos paritários, ou seja, aqueles que não são contratos de adesão, diferenciação que foi detalhada no Anteprojeto, em uma tomada de posição da Comissão de Juristas em favor de um dos possíveis critérios distintivos.
Prestigiar a liberdade contratual, assegurando o respeito ao conteúdo dos contratos ditos paritários (e simétricos), ao mesmo tempo em que se permite um tratamento diferenciado, e mais restritivo, aos contratos de adesão, distinção, a propósito, que existe na maioria dos sistemas jurídicos, inclusive naqueles filiados à Common Law, muito longe de proporcionar insegurança ou aumento de litigiosidade, contribuirá para a previsibilidade dos ajustes e das soluções para os litígios deles emergentes. Cabe lembrar que o princípio da segurança jurídica também é pautado pela previsibilidade da concretização de direitos e liberdades fundamentais e que qualquer manifestação de segurança jurídica deve estar baseada num mínimo de justiça, sendo a segurança, em si mesma, uma forma de realização de justiça. O direito positivo injusto deve ceder diante da justiça.1
Sobre a sugestão de incorporar a expressão “ou norma de ordem pública”, no inciso VI do art. 166, como causa de nulidade, acusada de fonte potencial de insegurança jurídica, esquecem os críticos de mencionar que a violação a norma de ordem pública, como causa de invalidade, já se encontra prevista no CC/2002, no parágrafo único do art. 2.0352, sem que nunca se tenha dito que aquela redação gerava insegurança, nem se tenha jamais proposto a sua revogação. Vale, aqui, reproduzir afirmação do professor Miguel Reale, quando, no passado, respondeu à crítica semelhante: “Velho estratagema esse o da invocação da ‘incerteza jurídica’ para se impedir a realização concreta do direito! Pois bem, se há algo que prevalece nos horizontes da Ciência Jurídica contemporânea, e é bom que o saibam certos pregadores de ‘modernidade’, é o reconhecimento de que, sem a participação criadora do juiz, não se realiza direito de cunho efetivamente social”3.
Finalmente, quanto à inclusão da função social como causa de nulidade contratual, não existe novidade alguma, desconhecendo-se o móvel dos ataques, no mínimo extemporâneos. Isso porque a redação atual do art. 421-A, a impor que a liberdade contratual será exercida “nos limites da função social do contrato”, em combinação com o inciso VII do art. 166, que considera nulo o ato sempre que a lei “proibir-lhe a prática, sem cominar sanção” já permite, desde de 11 de janeiro de 2003, a invocação de violação à função social como hipótese de nulidade do contrato. Sem falar no que dispõe o citado parágrafo único do art. 2.035, sobre a função social como preceito de ordem pública, cuja contrariedade poderá implicar a nulidade do contrato. Aliás, após a finalização do anteprojeto elaborado pela Comissão Reale, o tema da função social do contrato foi objeto de crítica contundente de Caio Mário da Silva Pereira e que foi respondida por Miguel Reale com igual contundência: “Não pode haver interpretação mais tendenciosa a falha. O exercício da liberdade de contratar em razão da função social do contrato não é senão uma consequência lógica e natural do princípio constitucional que proclama ‘a função social da propriedade’. Que vale tecer ditirambos em prol da humanização do direito, se, depois, no momento concreto da ação, se admite que a autonomia da vontade possa dar nascimento a contratos em conflito com a função social dos contratos? É absurdo, portanto, dizer, só pelo prazer de contestar, que o preceito do art. 421 servirá apenas para ‘invalidar as avenças, e de um fundamento a mais para a manifestação de recursos’. Quando se passa a raciocinar de forma tão inconsistente não há como responder. Trata-se, ao contrário, de norma que tem como destinatário principal o juiz, servindo de base a uma efetiva e concreta apreciação dos fatos, a fim de que as tão decantadas diretrizes sobre imprevisão, onerosidade excessiva, lesão enorme, abuso de direito etc…, não figurem apenas como uma ‘capa florida de direitos sociais’, a ocultar empedernido e superado apego à soberana vontade individual, mas em benefício dos mais fortes ou mais ousados”4.
No capítulo da responsabilidade civil, ataca-se, principalmente, a previsão da sanção pecuniária punitiva, de caráter pedagógico5, afirmando alguns que o Anteprojeto caminharia na contramão de todos os ordenamentos que adotam o sistema da civil law, ao incorporar a função punitiva da responsabilidade civil, e que foi referida pela Comissão de Juristas como ” função pedagógica.
Nesse aspecto, a exposição do professor Nelson Rosenvald foi precisa, primeiro quando abordou as funções da responsabilidade civil e a insuficiência da tradicional função reparatória ou compensatória, diante do reconhecimento progressivo de novos valores merecedores de tutela do Estado, dando ensejo a novos danos, muitas vezes transcendentes do indivíduo afetado, atingindo interesses coletivos e a própria tessitura social. Por isso, a importância da multifuncionalidade da responsabilidade civil, que torne o instituto apto a responder prontamente às demandas de uma sociedade em incessante transformação. Em segundo lugar, Rosenvald demonstrou que as chamadas indenizações punitivas ou punitive damages, conquanto próprias do Common Law, têm sido frequentemente aplicadas na jurisprudência brasileira, inclusive pelo STJ6, como critério de quantificação do dano moral, apesar da falta de amparo legal e, por vezes, a confundir punição e compensação.
O texto apresentado ao Senado pela Subcomissão de Responsabilidade Civil7 tem o mérito de trazer ao debate essa temática fundamental, incluindo a tormentosa questão da destinação das indenizações punitivas, propondo a sua sistematização. No relatório geral que acompanha o Anteprojeto, consta expressa fundamentação para o propósito de “evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela função compensatória, consideramos a necessidade de adequar a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido. Assim, para além de uma contenção de danos, há a necessidade de uma contenção de comportamentos antijurídicos, mediante a introdução das funções preventiva (art. 927-A) e pedagógica (§3º, art. 944-A) com seguros parâmetros de aplicação para a moderação de poderes judiciais, contrabalançados por uma função promocional aos agentes econômicos que investirem em governança e accountability”.
Até se poderia cogitar que a redação de um ou outro artigo comportaria algum aperfeiçoamento, o que deverá ocorrer, com toda certeza, durante a tramitação legislativa, sem que nada justifique uma abolição acrítica das proposições, no afã de abater, na origem, qualquer possibilidade de confronto de ideias no seio do Parlamento. Infelizmente, o ponto em comum constatado na maioria das objeções até hoje formuladas diz respeito à não apresentação de nenhum tipo de emenda, sequer uma ideia do que se considere minimamente adequado para solucionar o gravíssimo problema do baixo valor das indenizações por dano moral no Brasil.
Por fim, o novo Livro do Direito Civil Digital foi o assunto tratado pela professora Laura Porto, que respondeu à afirmação, repetida (e ultrapassada), de que temas relacionados às novas tecnologias não estariam maduros para serem incorporados em um Código. Lembro que essa foi uma das diretrizes adotadas pela Comissão Reale, na elaboração do “código setentista” de 2002, época em que se afirmava que “a natureza específica de uma codificação não pode abranger as contínuas inovações sociais, mas tão somente as dotadas de certa maturação e da devida ‘massa crítica’, ou já tenham sido objeto de lei. A experiência jurídica, como tudo que surge e se desenvolve no mundo histórico, está sujeita a imprevistas alterações que exigem desde logo a atenção do legislador, mas não no sistema de um código, mas sim graças a leis especiais”8.
Laura Porto certamente nos convenceu da ultrapassagem dessas avaliações depreciativas, pela evolução permanente das tecnologias e pela digitalização de praticamente todas as esferas da vida civil, de forma que a proposta de atualização do Código Civil não poderia deixar de tratar dessas questões sob pena de tornar-se obsoleta frente ao digital. Daí a premência de, ao lado de regras particulares pertinentes a cada livro, agregarem-se, em uma espécie de glossário normativo, prescrições gerais sobre os direitos das pessoas, naturais ou jurídicas, no ambiente digital; a situação jurídica digital; o direito a um ambiente digital seguro e confiável; o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo econômico e que compõem o patrimônio digital; a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital; o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial , a serem limitados pelo respeito aos direitos de personalidade da pessoa humana; não se podendo descurar dos atos e negócios jurídicos celebrados em ambiente digital e da necessidade de uma moldura normativa única e estável para as assinaturas eletrônicas.
O evento foi um sucesso e contribuiu para desmistificar muitas dessas críticas de ocasião as quais, a par de desmerecer e desqualificar o trabalho da Comissão de Juristas, apresentam o único intento de combater a própria ideia da reforma, tentando, quiçá, obstar a propositura do projeto, coibindo toda discussão na origem, para manter o Código Civil de 2002 tal como está, com todas as suas assincronias, defasagens e incompletudes, denunciadas desde a sua aprovação.
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1 RADBRUCH. Introducción a la filosofia del Derecho. México/Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1955, p. 44. Nas palavras do próprio autor, “donde la injusticia del Derecho positivo alcance tales proporciones que la seguridad jurídica garantizada por el Derecho positivo no represente ya nada en comparación con aquel grado de injusticia, no cabe duda possível de que el Derecho positivo injusto deberá ceder el paso a la justicia”.
2 Art. 2.035 (…) Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
3 REALE, Miguel. Em defesa do anteprojeto do código civil. Brasília: Câmara dos Deputados. Coordenação de Arquivo. Centro de Doc. e Inf., s/d.
4 REALE, Miguel. Em defesa do anteprojeto do código civil. Brasília: Câmara dos Deputados. Coordenação de Arquivo. Centro de Doc. e Inf., s/d.
5 Art. 944-A (…) § 3º Ao estabelecer a indenização por danos extrapatrimoniais em favor da vítima, o juiz poderá incluir uma sanção pecuniária de caráter pedagógico, em casos de especial gravidade, havendo dolo ou culpa grave do agente causador do dano ou em hipóteses de reiteração de condutas danosas.§ 4º O acréscimo a que se refere o § 3º será proporcional à gravidade da falta e poderá ser agravado até o quádruplo dos danos fixados com base nos critérios do §§ 1º e 2º, considerando-se a condição econômica do ofensor e a reiteração da conduta ou atividade danosa, a ser demonstrada nos autos do processo.§ 5º Na fixação do montante a que se refere o § 3º, o juiz levará em consideração eventual condenação anterior do ofensor pelo mesmo fato, ou imposição definitiva de multas administrativas pela mesma conduta.§ 6º Respeitadas as exigências processuais e o devido processo legal, o juiz poderá reverter parte da sanção mencionada no § 3º em favor de fundos públicos destinados à proteção de interesses coletivos ou de estabelecimento idôneo de beneficência, no local em que o dano ocorreu.
6 “A indenização por danos morais possui tríplice função, a compensatória, para mitigar os danos sofridos pela vítima; a punitiva, para condenar o autor da prática do ato ilícito lesivo, e a preventiva, para dissuadir o cometimento de novos atos ilícitos” (STJ, REsp 1.440.721/GO, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 11.10.2016).
7 Grupo de trabalho composto pelo Procurador de Justiça de Minas Gerais, Nelson Rosenvald, pela Ministra do STJ Isabel Gallotti e pela juíza do Tribunal de Justiça de Goiás Patrícia Carrijo.
8 Cf. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação, recodificação do direito civil brasileiro. 1. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 411.
Mário Luiz Delgado
Advogado fundador do escritório MLD – Mário Luiz Delgado Sociedade de Advogados. Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado. Presidente da Comissão de Direito de Família e das Sucessões do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.