STF e defesa das instituições: Análise da suspensão da plataforma   Migalhas
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STF e defesa das instituições: Análise da suspensão da plataforma – Migalhas

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No atual campo jurídico nacional, a relação entre o direito e a rede mundial de computadores entrou em conflito, fato que se mostrou complexo devido à importância das plataformas digitais na sociedade. A decisão, controversa para alguns, foi fundamentada juridicamente pelo ministro Alexandre de Moraes, que, ao suspender a operação de uma plataforma digital no Brasil, levantou questões significativas sobre os limites da liberdade de expressão e, consequentemente, refletiu sobre o direito à proteção da dignidade humana, o que é competência dos três poderes, principalmente do STF, conhecido como guardião da ordem constitucional. Silva nos diz que em diversas jurisprudências do STF é pacífico o voto do tribunal negando direitos absolutos, vejamos: “Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto MS23452(1999)” ou “Na contemporaneidade, não se reconhece a presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais previstos no art. 5º, da Constituição” HC93250 (2008)1. Este artigo visa analisar os fundamentos constitucionais e infraconstitucionais que embasam tal decisão. A análise se baseia no espectro legal que garante a legitimidade e a necessidade de intervenções judiciais quando plataformas digitais ferem direitos fundamentais.

I. A dignidade da pessoa humana como fundamento da República

A dignidade da pessoa humana é um dos alicerces do Estado Democrático de Direito, estando consagrada na Constituição Federal em seu art. 1º, III, garantindo a segurança jurídica. Este princípio protege os direitos fundamentais dos cidadãos, inclusive nos ambientes digitais. Portanto, a disseminação de desinformação e, principalmente, o que ficou conhecido como discurso de ódio, pode configurar uma violação direta à dignidade da pessoa humana. Diante do exposto, é justificável a adoção de medidas restritivas pelo Judiciário.

RE 1010606 / RJ – RIO DE JANEIRO-RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Relator(a): min. DIAS TOFFOLI – Julgamento: 11/2/21-Publicação: 20/5/21- Órgão julgador: Tribunal Pleno

Ementa

RE com repercussão geral. Caso Aída Curi. Direito ao esquecimento. Incompatibilidade com a ordem constitucional. Recurso extraordinário não provido. 1. Recurso extraordinário interposto em face de acórdão por meio do qual a 15ª Câmara Cível do TJ/RJ negou provimento a apelação em ação indenizatória que objetivava a compensação pecuniária e a reparação material em razão do uso não autorizado da imagem da falecida irmã dos autores, Aída Curi, no programa Linha Direta: Justiça. 2.

Os precedentes mais longínquos apontados no debate sobre o chamado direito ao esquecimento passaram ao largo do direito autônomo ao esmaecimento de fatos, dados ou notícias pela passagem do tempo, tendo os julgadores se valido essencialmente de institutos jurídicos hoje bastante consolidados. A utilização de expressões que remetem a alguma modalidade de direito a reclusão ou recolhimento, como droit a l’oubli ou right to be let alone, foi aplicada de forma discreta e muito pontual, com significativa menção, ademais, nas razões de decidir, a direitos da personalidade/privacidade. Já na contemporaneidade, campo mais fértil ao trato do tema pelo advento da sociedade digital, o nominado direito ao esquecimento adquiriu roupagem diversa, sobretudo após o julgamento do chamado Caso González pelo Tribunal de Justiça Europeia, associando-se o problema do esquecimento ao tratamento e à conservação de informações pessoais na internet.

Indexação

– CONSTITUCIONALIDADE, EXIGÊNCIA, ORDEM JUDICIAL, RETIRADA, ILÍCITO, INTERNET, RESPONSABILIZAÇÃO, PROVEDOR DE ACESSO À INTERNET. DIREITO DA PERSONALIDADE, PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE. CRIME, PRECONCEITO DE RAÇA, PUBLICAÇÃO, VENDA, DISTRIBUIÇÃO, CONTRARIEDADE, JUDEU, AFASTAMENTO, LIBERDADE DE EXPRESSÃO, PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, PRINCÍPIO DA ISONOMIA.2

A lei brasileira e internacional protege o ser humano e sua dignidade, assim como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem de qualquer pessoa, conforme consta no art. 5º, X, da Constituição Federal. Esses direitos correm sérios riscos de ameaça quando são expostas informações falsas e difamatórias em um espaço aberto e sem controle. Nesse contexto, a atuação do STF é legítima, resguardando os direitos dos cidadãos.

II. A liberdade de expressão e o parâmetro constitucional

Ao analisarmos os arts. 5º, IV, V, IX e XIV da Constituição Federal, temos clareza de que a liberdade de expressão, o livre pensamento e a segurança das informações, desde que utilizados com a observância estrita no âmbito dos direitos fundamentais, são princípios inerentes às democracias modernas, assim como no Brasil. Chauí entende a liberdade com o olhar do estagirita, como se vê no trecho a seguir: “Aristóteles também distingue entre o contingente e o possível: o primeiro é o puro acaso, mas o segundo é o que pode acontecer desde que um ser humano delibere e decida realizar uma ação”3. A filósofa aponta para questões simples como o contingente, acontecimentos que ocorrem sem questionamentos, isto é, sem qualquer evento ligado à liberdade, e que podem estar condicionados ao acaso, como sair sem destino e encontrar amigos em qualquer lugar ou acessar a internet em qualquer chat de amizades e encontrar colegas de longa data com quem não se falava há muito tempo. Por outro lado, o possível é o ato deliberado, ou seja, a liberdade como manifestação humana premeditada, resultando em realizações críveis feitas a partir do desejo, da vontade. Dentro desse contexto, devemos analisar que a liberdade no direito e a ação livre do agente não pode estar fora do campo da responsabilidade. Afinal, a liberdade e o possível aristotélico nos remetem às decisões humanas e que, portanto, devem prezar pelos atos que garantam dignidade e justiça. Diante do exposto, apesar dessa liberdade, há limites que devem ser guardados diante de outros direitos fundamentais, como a dignidade humana, a privacidade e a ordem pública. Vejamos o que diz o ministro Gilmar Mendes na ADPF 130 com relatoria do min. Carlos Britto:

Como demonstrado, a Constituição brasileira, tal como a Constituição alemã, conferiu significado especial aos direitos da personalidade, consagrando o princípio da dignidade humana como postulado essencial da ordem constitucional, estabelecendo a inviolabilidade do direito à honra e à privacidade e fixando que a liberdade de expressão e de informação haveria de observar o disposto na Constituição, especialmente o estabelecido no art. 5.º, X.4

A Constituição Brasileira é cristalina em favor da liberdade de expressão, porém, não coaduna com a prática de atos ilícitos, principalmente quando estes são difundidos para a incitação à violência, à disseminação de discurso de ódio e desinformação.

É fato que, no Brasil, a manifestação do pensamento é um direito, conforme dispõe o art. 220 da Constituição Federal. Entretanto, devemos respeitar outros direitos constitucionais contra apologia ao crime, defesa de grupos extremistas e racismo. Nesse contexto, a suspensão do exercício profissional ou a liberdade de produção de conteúdo digital contrários aos dispositivos legais brasileiros deve ser contida, o que demonstra zelo diante da disseminação de conteúdos ilícitos, preservando assim o direito à integridade do ambiente de comunicação da sociedade.

III. Acesso à justiça e preservação da ordem constitucional

A lei não pode excluir ninguém da apreciação do poder judiciário, conforme art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. No caso em estudo, o STF deve exercer seu poder de guardião da Constituição. A suspensão de uma rede social é algo extremamente sério e pode ser vista por alguns como criminosa. Porém, em determinadas circunstâncias, também é possível analisá-la como uma ação preventiva, pois pode evitar danos à sociedade, impedindo um espaço em que ações criminosas sejam livremente cometidas e a impunidade prevaleça. Se ações como essas afrontam diretamente o ordenamento jurídico, o STF é competente para salvaguardar todo o exercício jurídico, especialmente em situações de crise, nas quais se gera um ambiente de instabilidade constitucional.

IV. Marco Civil da internet

Cumpre ressaltar que a lei 12.965/14, conhecida como Marco Civil da Internet, regula o uso da internet no país. Nela, está expressamente previsto que, se a plataforma não remover conteúdo contrário à lei e for notificada por ordem judicial específica, ela será responsabilizada, conforme art. 19. Nesse sentido, oportuna é a transcrição do art. 3º, que estabelece a liberdade de expressão, manifestação de pensamento, e a proteção à privacidade, entre outros direitos, sem se esquecer de responsabilizar os agentes de acordo com suas responsabilidades, conforme art. 3º, inciso VI. Diante do exposto, se a plataforma falhar em suas obrigações, é preciso que o Estado, por meio do Judiciário, intervenha. Afinal, apesar da harmonia entre os poderes, existe uma independência que compete ao representante legal dos três poderes nesse contexto, conforme art. 2º da Constituição Federal.

V. A aplicação da LGPD

Com o advento das redes sociais, o Brasil precisava de regras com maior transparência relacionadas à internet. À vista do exposto, temos a criação da lei 13.709/18, a LGPD, com princípios legais que protegem os dados pessoais e garantem a privacidade das informações dos usuários. O art. 6º da LGPD apresenta atividades de tratamento de dados e, além disso, tem um rol de princípios que amparam o usuário, exigindo a boa-fé no tratamento dos dados dos usuários, além de proporcionar princípios como: finalidade, necessidade, livre acesso, integralidade, adequação e transparência.

Diante disso, a simples falência da confiança entre usuário e plataforma, decorrente de uma falha na proteção de dados, é suficiente para que se justifique a intervenção do Estado, com a observação e o dever de proteger esses direitos. O art. 52 apresenta sanções sobre infrações cometidas, como: VII – suspensão parcial do funcionamento do banco de dados a que se refere a infração; VIII – suspensão do exercício da atividade de tratamento dos dados pessoais; IX – proibição parcial ou total do exercício de atividades relacionadas ao tratamento de dados. “A eficácia de uma norma, por sua vez, indica que ela tem a possibilidade de ser aplicada, de exercer seus efeitos, porque se cumpriram as condições para isto exigidas”3. A referência usada por Maria Helena Diniz diz respeito ao direito de greve, mas não há dúvida de que serve para qualquer direito, inclusive a LGPD. Por fim, constata-se a justificativa para a suspensão temporária da plataforma, para que possam ser implementadas novas medidas de segurança e transparência que se adequem à lei nacional.

Conclusão

Apesar das divergências no campo jurídico, político ou social, que, em certo sentido, foram as causas que levaram à decisão do ministro Alexandre de Moraes sobre a suspensão de uma plataforma digital, observa-se que a lei nacional tem resguardado o Judiciário brasileiro, principalmente por estar alicerçada nos princípios constitucionais e nas leis infraconstitucionais. Portanto, essa medida pode ser compreendida como uma resposta aos infortúnios que as redes sociais têm causado à segurança jurídica. Além disso, a atuação do ministro pode ser considerada proporcional e necessária diante de uma situação de grave ameaça à ordem constitucional e aos direitos fundamentais. Por fim, podemos citar o pensamento de Kant: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. O que tem preço pode ser substituído por algo equivalente; o que, ao contrário, é superior a todo preço, e, portanto, não permite equivalente, é a dignidade”5. A filosofia kantiana nos leva à reflexão da dignidade como essencial no ser humano, visto como algo insubstituível, e, por isso, deve ser tratada com os valores da moralidade, dignidade e urbanidade, a fim de garantir o desenvolvimento sadio da humanidade. O STF, ao atuar como guardião da Constituição, exerce um papel vital na preservação dos valores fundamentais da sociedade brasileira, garantindo que a liberdade de expressão, embora amplamente protegida, não se torne um instrumento para a violação de outros direitos igualmente importantes. A priori, a suspensão de plataformas digitais em casos excepcionais deve ser vista não como uma ameaça à liberdade, e sim, como um recurso para a manutenção de uma sociedade justa e coesa.

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1 SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. 1ª ed., 2. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021. – (Acadêmica: 107) p. 117.

2 RE 1010606 / RJ – RIO DE JANEIRO-RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI.

3 CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2012, p. 415 e 416.

4 ADPF 130 Voto do Ministro Gilmar Mendes, com relatoria do Min. Carlos Britto.

5 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2003.

Marco Aurélio de Brito

Marco Aurélio de Brito

Advogado e Professor com Pós-Graduação em Linguagem Jurídica pela UFMG, Teologia pela UMESP com doutorado em Ciências da Religião e Graduado em Filosofia e Pós em Filosofia da Educação.

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