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Em recente declaração 8/10/24, o ministro da defesa, José Múcio Monteiro Filho, afirmou que o Governo Federal não firmaria contrato com a empresa israelense Elbit Systems “por questões ideológicas” 1, mesmo tendo sido a vencedora do certame. Tal posicionamento despertou a atenção do mundo jurídico, ao levantar dúvidas sobre a aplicação dos princípios da impessoalidade e da isonomia nas licitações.
Referida “questão ideológica” serviu de pano de fundo para que o Ministério da Defesa elaborasse consulta no TCU – Tribunal de Contas da União (Cons. 021.681/2024-4) questionando a possibilidade de restringir ou impedir a participação em licitação de empresa com vínculo com países em situação de conflito armado, “ainda que tal restrição ou vedação acarrete consequências de tamanha monta que comprometam, severamente, o cumprimento das missões institucionais das Forças Armadas brasileiras e coloquem, em grave risco, a defesa nacional”.
Em que pese reconhecer a inexistência de vedação legal, a consulta ressalta três hipóteses que poderiam causar a impossibilidade da contratação: “(i) imposição de embargos comerciais por organismos multilaterais de que o Brasil seja integrante; (ii) ruptura de relações diplomáticas e comerciais com o governo brasileiro; e (iii) decisões de cortes internacionais de justiça cujas deliberações o país tenha se obrigado a observar”.
É certo que o objeto em questão – aquisição de 36 veículos blindados de combate obuseiros ao exército -, cujo valor final apresentado pela empresa israelense se aproxima de R$ 1 bilhão, por se tratar de licitação internacional, é regido pelo art. 52 da lei 14.133/21 2, e, consequentemente, pelas “diretrizes da política monetária e do comércio exterior” (caput).
Porém, ainda nesses casos, o princípio da impessoalidade se faz presente, ao vedar a previsão de “condições de habilitação, classificação e julgamento que constituam barreiras de acesso ao licitante estrangeiro” (art. 52, §6º da lei 14.133/21), bem como ao assegurar que “as propostas de todos os licitantes estarão sujeitas às mesmas regras e condições” (art. 52, §5º da lei 14.133/21).
Além da tradicional lei de licitações, a referida aquisição é regida também pela lei Federal 12.598/12 (que estabelece normas especiais para as compras, as contratações e o desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa); pelo decreto Federal 9.607/18 (que institui a Política Nacional de Exportação e Importação de Produtos de Defesa); e pelo decreto Federal 11.173/22 (que promulga o Tratado sobre o Comércio das Armas).
Nesse contexto, como resultado da consulta, o plenário do TCU lavrou o Acórdão 1918/24 – plenário3 afirmando enfaticamente que “não há restrição relativa a fornecedor que tenha sua sede em país em situação de conflito armado, seja quanto à sua participação em licitação, seja quanto à celebração ou a manutenção de contrato”.
Referida decisão – paradigmática sobre o tema – revela uma necessária (e indiscutível) observância ao princípio da impessoalidade e isonomia entre os participantes, ainda que em situações extremas como o alegado comprometimento das missões institucionais das Forças Armadas brasileiras ou o grave risco para a defesa nacional.
Porém, considerando que o caso concreto não foi levado ao TCU (em razão da vedação prevista no regimento interno do TCU, art. 265 4), surge o questionamento se eventual aquisição de material bélico pela empresa Israelense, posterior ao governo israelense declarar que o presidente da república seria persona non grata, estaria, de fato, pondo em risco a segurança nacional e, consequentemente, todo o Estado brasileiro.
Indo além, é importante ponderar e identificar se a legislação de regência já contempla, ainda que de forma implícita, valores universais como a paz mundial. Além de impactar questões estratégicas, esses valores podem influenciar nas contratações internacionais (art. 52, lei 14.133/21) que, como um castelo de cartas, interferem em diversas relações comerciais no cenário global, afetando a economia nacional e, em última instância, o bem-estar da população brasileira.
A exemplo disso, está a recentíssima 10/11 intimação do Departamento de Justiça Norte Americano à empresa sueca Saab para apurar suposto caso de corrupção na venda de 36 caças do modelo Gripen ao Brasil possui relação e se apresenta como potencial fator externo de intervenção na condução do processo dos obuseiros5.
Ainda, há de se questionar se o Governo Federal, em razão do suposto risco internacional confessado pelo ministro da defesa, poderia revogar todo o certame considerando “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas” inerentes ao cargo, previstas na lei de introdução às normas do direito brasileiro (art. 22, decreto-lei 4.657/42).
Por último, deve-se refletir se mesmo diante de todo o cenário apresentado (risco internacional vs. isonomia entre os participantes), a eventual revogação do certame, com fundamento no parágrafo acima, resultaria na fragilidade irreparável de toda e qualquer licitação internacional futura, uma vez que o risco internacional, a depender do licitante vencedor, seria sobreposto ao próprio resultado do processo licitatório.
Dentre todos os questionamentos – sem respostas, até então – é certo que as contratações públicas, sejam elas quais forem, não devem servir à posicionamentos político-ideológicos de determinado chefe do Executivo, conforme confessado pelo ministro, sob pena de violação aos princípios elencados no art. 37 da CF/88 e no art. 5º da lei 14.133/21.
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1 Declaração foi dada durante a Cerimônia de assinatura do Acordo de Cooperação entre o Ministério da Defesa e a Confederação Nacional de Indústria. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/10/09/mucio-ideologia-governo-compra-armas-defesa.htm. Acessada em 10/10/2024 às 11:19.
2 Art. 52. Nas licitações de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes.
3 https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao completo/*/NUMACORDAO%253A1918%2520ANOACORDAO%253A2024%2520COLEGIADO%253A%2522Plen%25C3%25A1rio%2522/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0
4 Art. 265. O relator ou o Tribunal não conhecerá de consulta que não atenda aos requisitos do artigo anterior ou verse apenas sobre caso concreto, devendo o processo ser arquivado após comunicação ao consulente.
5 https://g1.globo.com/google/amp/economia/noticia/2024/10/10/sueca-saab-diz-ter-sido-intimada-nos-eua-a-fornecer-informacoes-sobre-venda-de-cacas-ao-brasil.ghtml. Acessada em 14/10/2024 às 10:13.
Tiago Miranda Neves Baptista
Advogado. Pós-graduado em Direito Administrativo pelo IDP.
Eduardo Augusto S. S. Silva
Advogado / Assessor Jurídico em matéria de Licitações e Contratos Administrativos. Ex-Presidente da Comissão Permanente de Licitações da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco.