Hiperformalismo licitatório e LC 123   Migalhas
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Hiperformalismo licitatório e LC 123 – Migalhas

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Pergunta formulada por um respeitado chefe das licitações que inspirou o presente texto:

“É possível exigir a documentação de habilitação da ME/EP apenas para a assinatura de contrato sem a necessidade de apresentação provisória prevista no art. 43 da LCP 123/06?”

A pergunta tem em mira, na verdade, a aparente “dupla exigência” da LC 123/06 em seus arts. 42 e 43 e o art. 13, III da lei 14.133/21 que sepultou o hiperformalismo licitatório.

Assim, prevê o art. 42 da mencionada LC:

“Art. 42. Nas licitações públicas, a comprovação de regularidade fiscal e trabalhista das microempresas e das empresas de pequeno porte somente será exigida para efeito de assinatura do contrato.”

No entanto, prevê o art. 43 da mencionada LC:

“Art. 43. As microempresas e as empresas de pequeno porte, por ocasião da participação em certames licitatórios, deverão apresentar toda a documentação exigida para efeito de comprovação de regularidade fiscal e trabalhista, mesmo que esta apresente alguma restrição” (grifos nossos)

A interpretação que tem sido dada por alguns entes públicos é o de que; não havendo regularidade fiscal da ME/EPP, deverá haver apresentação dupla: das certidões positivas, aceitas provisoriamente e, nova apresentação de certidões negativas para assinatura do contrato.

Isonomia substancial

Tal interpretação, porém, fere de morte a regra constitucional do art. 146 da Carta Federal que prevê tratamento diferenciado para as MEs/EPPs. Assim:

“Art. 146. Cabe à lei complementar:

(…)

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

(…)

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte….”

A interpretação de obrigatoriedade de dupla apresentação de regularidade fiscal subverteria toda a finalidade da LC 123/06. Aquilo que deveria ser um “Código de Defesa da ME/EPP” transformar-se-ia num “Código de opressão às MEs/EPPs”

O princípio estruturante da criação da LC 123/06 seria sepultado de morte, bem como o princípio da isonomia substancial, cláusula pétrea da Carta Federal de 1988.

Criar-se-ia uma “via crucis” para MEs/EPPs sem nenhuma utilidade no mundo real.

Inversão axiológica

Tal hermenêutica equivaleria a interpretar o CDC para prejudicar o consumidor, a CLT para prejudicar o trabalhador, ou, ainda, o Estatuto da Pessoa com Deficiência para amesquinhar direitos de portadores de deficiência.

Não tem o menor sentido a hermenêutica da dupla exigência que transformaria a LC 123/06 numa espécie de “suicídio do propósito legislativo”.

O princípio da própria existência da mencionada LC restaria fulminado, numa “inversão axiológica” não admitida em nosso sistema jurídico.

Dessacralização formal

A tendência das normas e princípios licitatórios é da “dessacralização” das formas e afastamento do hiperformalismo licitatório. Desta forma somente formalidades essenciais para a manutenção do arcabouço jurídico são exigidas na licitação contemporânea.

Nesse sentido, é formalidade essencial, por exemplo, a planilha de custos e o cronograma físico-financeiro na prova de exequibilidade pois é o parâmetro matemático e objetivo para manutenção da mesma equação financeira e do mesmo objeto licitado. Também é formalidade essencial a declaração de não visita técnica pois sendo um documento onde o licitante abre mão do seu direito de vistoria e conhecimento do objeto só pode ser feita de forma explicita.

Por outro lado, conforme já escrevemos, o atestado de capacidade técnica sequer precisa ser da pessoa jurídica licitante podendo ser até mesmo de uma pessoa física, já que essa interpretação prestigia o princípio da competitividade.

A apresentação da documentação de habilitação pela ME/EPP com certidões positivas e posteriormente complementadas com certidões negativas (art. 43) ou simplesmente as certidões negativas (art. 42) são regras mutuamente complementares. Assim devem ser interpretadas: são prerrogativas para facilitar as MEs/EPPs e não instrumento de sacralização da burocracia em detrimento da competitividade. O hiperformalismo foi abolido de nosso sistema jurídico licitatório.

Trata-se de mera formalidade em que a lei, claramente, afasta a relevância temporal conferindo dupla opção à ME/EPP. Opção da ME/EPP, repita-se.

Nesse sentido é o princípio inserido na lei 14.133/21, de acentuado conteúdo axiológico estabelecendo o “princípio da dessacralização formal”:

“Art. 12. No processo licitatório, observar-se-á o seguinte:

(…)

III – o desatendimento de exigências meramente formais que não comprometam a aferição da qualificação do licitante ou a compreensão do conteúdo de sua proposta não importará seu afastamento da licitação ou a invalidação do processo;” (grifos nossos)

Também no mesmo sentido é a jurisprudência do E.TJ/SP:

“Ementa: MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. Inabilitação da Recorrida em certame licitatório por apresentar certidão negativa vencida. Recorrida que é empresa de pequeno porte – EPP, o que lhe confere direito ao prazo de 05 dias para regularização da certidão e possibilidade de apresentar a documentação somente na assinatura do contrato, conforme previsão dos arts. 42 e 43, § 1º da LC 123/06. Precedentes. Reexame necessário improvido”

(Remessa necessária 1049824-31.2020.8.26.0576, relator: Carlos Augusto Pedrassi, Comarca: São José do Rio Preto, 2ª Câmara de Direito Público, data de julgamento e publicação: 28/0902021 -grifos nossos).

E ainda:   “Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO – Mandado de segurança – Pedido de nulidade de ato administrativo que excluiu a impetrante de certame licitatório do município de Mogi-Guaçu – Decisão que indeferiu a tutela antecipada de urgência – Irresignação da parte autora – O art. 42 da LC 123/06 determina que a comprovação de regularidade fiscal e trabalhista das MEs e das EPPs somente seja exigida para efeito de assinatura do contrato – A exigência do ente público, de que a licitante apresentasse documentação no curso do procedimento licitatório, a qual somente seria analisada caso ela fosse considerada vencedora do certame, implicou em estabelecer requisito que não encontra fundamento legal – Precedentes desta Corte – Argumento de ilegitimidade passiva da municipalidade que não subsiste, uma vez que a licitação foi por ela deflagrada e a decisão impugnada foi proferida pelo prefeito municipal – Reforma da decisão para que seja deferido o pedido de tutela antecipada – Provimento do recurso interposto” (AI 2244181-68.2023.8.26.0000, Relator: Marcos P. Tamassia, Mogi-Guaçu, 1ª Câmara de Direito Público, publicação e julgamento: 9/10/23 grifos nossos).

Conclusão

Aquilo que já era uma tendência da visionária Corte Bandeirante passou a ser princípio licitatório inscrito no inciso III do art. 12 da lei 14.133/21. Há uma “soma” das regras do art. 42 (que confere prerrogativa de “somente” apresentar documentos antes de assinatura do contrato) com a regra do art. 43 que confere prazo suplementar na hipótese de documentação insuficiente. Nada impede, por exemplo, que a ME/EPP entregue de regularidade fiscal e trabalhista, em ordem, apenas no momento que antecede a assinatura do contrato.

Laércio José Loureiro dos Santos

Laércio José Loureiro dos Santos

Mestre em Direito pela PUCSP, Procurador Municipal e autor do Livro, “Inovações da Lei de Licitações e polêmicas licitatórias”, 3ª Ed. Dialética, 2.024, versão em português e inglês.

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