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Infelizmente, é muito comum isso nos tribunais: primeiro decido, depois fundamento. É o triste vale-tudo! Decido como acho. É o “achismo”. O subjetivismo. Os causídicos e as partes ficam à deriva das peculiaridades do poder.
Ou seja, primeiro é analisada a questão. Após, decide-se. Depois, corre atrás da “fundamentação”.
Pode isso, excelências?!
Pois é. Ninguém provoca o Poder Judiciário para receber a opinião pessoal do juiz sobre seu caso concreto ou saber qual o time que o magistrado torce, não é?
Por sinal, o Direito não é o que Judiciário diz que é. Isso é o realismo jurídico que, aliás, força a barra reescrevendo nova norma a qual acha melhor. Realismo rima com ativismo…
De um modo simples: Para o realismo jurídico o direito é o que os tribunais dizem que é. Será?
A propósito, vale sempre lembrar que, uma resposta adequada ao Direito tem que ter sempre o DNA da Constituição e das leis.
É impressionante, em regra, a omissão da doutrina com tudo isso! Porém, pela relevância, temos que sempre colocar o tema na ordem do dia. Mas vale a pena aprofundar. A questão é inerente ao Estado Democrático de Direito.
Afinal, por que motivo os tribunais recusam aquilo que é exigido pela lei e constituição? A propósito, o juiz não jurou cumprir as leis e a constituição?!
Isso tem nome: Arbítrio judicial!
A obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais
Como qualquer outra ciência o Direito Processual tem princípios. Um deles é o princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais. Fundamentar uma decisão envolve explicar por a + b, o porquê. O que seriam questões relevantes do processo? Quais as questões que não são relevantes?
A fundamentação é a justificação jurídica-política que mostra como o magistrado chegou àquela conclusão. Está diretamente ligada à necessidade da legitimação do poder.
Trata-se, pois, de uma garantia ligada à ideia de um processo justo. De acesso à ordem jurídica justa, na feliz visão do professor Kazuo Watanabe.
Como se sabe, consoante o inciso IX do artigo 93 da Constituição da República, “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.
No mesmo sentido, o Novo Código de Processo Civil (NCPC), no art. 11, repete essa premissa constitucional:
“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.
Por sinal, estabelece o artigo 489, § 1º, IV, do NCPC, de forma cirúrgica, que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
“não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.
Alguma dúvida?
A propósito, se o inciso IX do artigo 93, da CF, o art. 11 do NCPC e o art. 489, § 1º, IV, do NCPC e o art. 926 do NCPC fossem cumpridos, sim, iria diminuir a quantidade de recursos, não é?
Por outras palavras, decisões bem fundamentadas, por óbvio, tendem a diminuir a quantidade de recursos. Simples assim.
Jurisprudências equivocadas do STJ no tema
O STJ, no julgamento do Agravo em Recurso Especial 2.184.064 – RJ, decidiu:
“Ademais, a bem da verdade, cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento, não estando obrigado a rebater, um a um, os argumentos apresentados pela parte quando já encontrou fundamento suficiente para decidir a controvérsia (EDcl no AgRg no AREsp 195.246/BA, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 4/2/2014).”
No mesmo sentido, vejamos a ementa do acordão pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do AgInt. no REsp 1.701.981:
“Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. Nesse sentido: REsp 927.216/RS, 2ª Turma, relatora ministra Eliana Calmon.”
Tristes decisões. Incrível: a Constituição e a lei dizem X e o STJ diz Y.
Pior: É o Tribunal da Cidadania que está descumprindo o inciso IX do art. 93, da CF, e os arts. 11 e 489 § 1º, IV, do NCPC.
E agora, José? E a prestação jurisdicional?
A prestação jurisdicional vai mal. Exemplos como esses do STJ é que não faltam. Juízes e tribunais “fundamentam” de acordo com suas opiniões. Não enfrentam todos os argumentos das partes. Vale o “decisionismo”, o “achismo” e o “ementismo”.
Que feio!
Não há dialeticidade. Não há contraditório substancial. Infelizmente, essas decisões não-fundamentadas, vão se multiplicando, no mundo forense, com um simples copiar e colar; o que, robustece o arbítrio judicial.
É faz-de-conta de que as decisões são fundamentadas!
Quem tem experiência nos tribunais já viu e vê toda hora decisões não-fundamentadas que falam: decreto a prisão preventiva nos termos do artigo 312 do CPP, indefiro a tutela de urgência, pois não estão presentes os requisitos do artigo 300 Novo CPC, indefiro por falta de amparo legal.
Os exemplos são muitos. Não é um ponto fora da curva.
Daí a observação do grande processualista e desembargador Alexandre Freitas Câmara¹
“O juiz que se limita a repetir fórmulas e textos legais, achando que assim fundamenta suas decisões, e um mau juiz, que com toda certeza proferiu decisão com parcialidade, sendo tal decisão flagrantemente inconstitucional.”
O fantasma do livre convencimento
Voltando as decisões do STJ. Sempre com toda a cordialidade de sempre: inicialmente, chama à atenção especial o voto condutor, no agravo em recurso especial 2.184.064/RJ “cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento”.
Livre convencimento? Como assim? Pode uma decisão ser “fundamentada” no livre convencimento? Procurei no NCPC. Não encontrei nada. No art. 371 do NCPC não existe a palavra livre.
Será que o STJ está aplicando o art. 131 do CPC/73?
Por isso, que acredito em assombração jurídica. Até parece que estamos no CPC de 1973. Decidir de acordo com o livre convencimento não é decidir conforme a constituição e a lei.
Em nome da ficção do livre convencimento milhares de pessoas estão perdendo direitos!
O órgão julgador é, sim, obrigado a rebater, uma a um, todos os argumentos das partes
Prosseguimos. A ementa supracitada do STJ aduz que “Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram”.
Misericórdia! Pois então, é o Direito das Leis que obriga a fundamentação das decisões judiciais, vale dizer, que impõe ao órgão julgador o dever de examinar todos os argumentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente.
Vejamos o que ensina, com brilhantismo, o mestre e desembargador Alexandre Freitas Câmara²
“Ora, se a parte apresenta diversos argumentos, e um deles é acolhido, sendo suficiente para justificar uma decisão que a favoreça, evidentemente não há para o órgão jurisdicional qualquer dever de examinar os demais argumentos, que se limitariam a confirmar a decisão proferida. Pois é neste, e apenas neste sentido, que se pode examinar como correta a afirmação de que o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos da parte se já encontrou um que sustenta a sua conclusão. (.) De outro lado, porém, se a parte deduz vários argumentos e um deles é rejeitado impõe-se o ao órgão julgador o dever de examinar os demais fundamentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente. É que só é legitimo decidir contrariamente ao interesse de uma das partes se todos os seus argumentos forem rejeitados.”
Pois então. Quem recorre, é evidente, quer que o julgador enfrente todos os argumentos deduzidos no processo. É o que fala o art. 489, §1º, IV, NCPC. Logo, não há espaço para discricionariedade e subjetividade; pois toda atividade estatal está submetida à lei e ao Direito.
É o entendimento de um dos juristas mais influentes do Direito, Lenio Streck ³:
“Não é possível realizarmos leitura do art. 489, parágrafo 1º, IV, do novo CPC, atribuindo a ele a conclusão de que o juiz não tem o dever e examinar todos os argumentos das partes. Somente, é claro, com o atendimento ao art. 489, parágrafo 1º, IV (e todos os seus demais incisos) teremos a demonstração de que todas as opções decisórias foram submetidas ao filtro do contraditório e que o raciocínio decisório levou em conta o conglomerado de argumentações das partes, relevantes para o julgamento da causa”.
Conclusão
Uma palavra final: Os argumentos dos ministros do STJ, desembargadores e juízes alegando de que “o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos das partes” refletem, sim, o autoritarismo e arbítrio judicial, que coloca em risco à democracia.
Pois é. Está dificílima a vida dos advogados e das partes. Tem que haver uma conscientização: a comunidade jurídica e a OAB têm que se indignarem! Não se pode omitir!
Senhor, livrai-nos do arbítrio judicial
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1.CÂMARA, Alexandre Freitas, Lições de Direito Processual Civil, Vol., 6ª edição, 2ª tiragem, 2002, p.51, LUMEN JURISDIDIER, Fredie ;
2.CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2ª edição, p.69, Gen/Atlas, 2023;
3.STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014
Renato Otávio da Gama Ferraz
Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras