Inversão do ônus da prova e presunção de inocência: Debate necessário   Migalhas
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Inversão do ônus da prova e presunção de inocência: Debate necessário – Migalhas

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A lei 9.613/98, que tipifica o crime de lavagem de dinheiro, introduziu mecanismos para o combate eficaz a este delito e suas complexas ramificações. Em 2012, a lei 12.683 trouxe modificações substanciais, permitindo uma abordagem mais ampla e rigorosa contra atividades de lavagem de dinheiro. Uma das inovações mais debatidas é a inversão do ônus da prova na restituição de bens e valores. Nesse contexto, surge o conflito com o princípio da presunção de inocência, constitucionalmente garantido pelo art. 5º, LVII, da CF/88, o qual estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A redação do art. 4º, § 2º, da lei 9.613/98, com a alteração dada pela lei 12.683/12, estabelece que, uma vez decretada a perda de bens e valores obtidos de forma ilícita, cabe ao acusado a demonstração da origem lícita desses bens para que possam ser restituídos. Tal disposição rompe com a regra tradicional do ônus probatório, transferindo ao investigado a responsabilidade de provar a legalidade de seus recursos, em contraste com o princípio segundo o qual o ônus de provar a ilicitude recai sobre o Estado.

A presunção de inocência é um dos pilares do processo penal democrático. Previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 11, §1) e no Pacto de São José da Costa Rica (art. 8, §2), o princípio estabelece que o acusado deve ser tratado como inocente até que a culpa seja provada. No contexto da lavagem de dinheiro, onde a complexidade e a dificuldade probatória são características marcantes, a inversão do ônus da prova é, por vezes, justificada como necessária para se alcançar uma maior efetividade no combate ao crime. No entanto, há um potencial risco de se ultrapassar limites razoáveis, comprometendo garantias processuais fundamentais.

No Brasil, a inversão do ônus da prova é analisada de forma controversa. Segundo Greco (2019), a medida representa uma necessária ferramenta de combate ao crime organizado, permitindo que o Estado atue de forma mais eficaz na recuperação de ativos. Para ele, a complexidade das operações de lavagem justifica a necessidade de ajustes nos padrões tradicionais de prova.

Em contrapartida, Lopes Júnior (2021) argumenta que a inversão do ônus da prova na restituição de bens subverte a lógica do processo penal, colocando o acusado em uma posição desfavorável, pois impõe-lhe a tarefa de comprovar sua inocência, em desacordo com a presunção de inocência. Em um processo democrático, é o Estado que deve fornecer elementos robustos para demonstrar a ilicitude dos bens.

Na Europa, a análise do direito penal econômico tem gerado contribuições relevantes para esse debate. Ferrajoli (2008) destaca que qualquer exceção ao princípio da presunção de inocência deve ser vista com desconfiança, especialmente em matérias que envolvem direitos patrimoniais, pois a segurança jurídica é um valor central para a estabilidade social.

Na América Latina, Zaffaroni (2015) adverte que a inversão do ônus da prova pode gerar abusos, pois, ao obrigar o réu a provar a licitude de seus bens, o sistema penal impõe uma carga excessiva ao indivíduo, que muitas vezes não possui condições suficientes para cumprir esse encargo. Essa prática, segundo o autor, pode ser utilizada de maneira arbitrária, caracterizando-se como uma presunção de culpa e desrespeitando direitos fundamentais.

A proveniência ilegal, direta ou indireta, dos bens ou valores objeto de “ocultação ou dissimulação” é circunstância do tipo de lavagem. Como elementar do crime, deve ser materialmente comprovada pela acusação, acima de qualquer dúvida razoável. Não são, assim, suficientes meras presunções ou ilações extraídas de um histórico criminoso ou do simples indício da existência de uma infração antecedente, sob pena de transformar o delito de branqueamento em um crime de perigo presumido.

Há um ponto de equilíbrio a ser buscado entre a necessidade de enfrentamento dos crimes de lavagem de dinheiro e a preservação das garantias fundamentais. A aplicação do princípio da proporcionalidade, ao lado do da presunção de inocência, torna-se indispensável para avaliar os casos concretos em que a inversão do ônus da prova é empregada. A legitimidade dessa inversão depende de uma ponderação criteriosa, com a observância de critérios objetivos para que não ocorra uma violação desproporcional aos direitos do acusado.

A inversão do ônus da prova na restituição de bens e valores decorrente de suspeita de lavagem de dinheiro levanta questionamentos sobre a compatibilidade da medida com o princípio da presunção de inocência. O embate entre a necessidade de eficiência no combate à lavagem de dinheiro e o respeito às garantias constitucionais exige cautela e a aplicação rigorosa do princípio da proporcionalidade. A doutrina nacional e internacional revela o risco de abusos, reforçando a necessidade de uma abordagem que busque o equilíbrio entre a efetividade do processo penal econômico e a preservação das garantias fundamentais do acusado.

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1 Ferrajoli, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Madrid: Trotta, 2008.

2 Greco, L. Direito Penal – Parte Geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019.

3 Lopes Júnior, A. Princípios constitucionais do processo penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

4 Zaffaroni, E. R. Derecho Penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 2015.

Fábio Franklin Jr

Fábio Franklin Jr

Advogado Criminalista. Especialista em Direito Penal Econômico – PUC/MG. Especialista em Jurisprudência Penal – CEI. Atuação em Crimes Financeiros e Lavagem de Capitais.

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