Julgamento pode chancelar alteração da súmula 343 do STF   Migalhas
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Julgamento pode chancelar alteração da súmula 343 do STF – Migalhas

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1. A lógica por trás do enunciado 343 da súmula do STF 

De acordo com o enunciado 343 da súmula do STF, “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

O STJ, contudo, recentemente inovou na interpretação da referida súmula, ao restringi-la para não admitir ação rescisória quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais superiores. Caberá à 1ª turma do STF, no julgamento da reclamação 59.056/RJ, manter o novo entendimento dado pelo STJ, ou preservar a sua interpretação consolidada ao longo dos anos.

A ação rescisória, se utilizada de modo indiscriminado, pode representar grave risco à coisa julgada e à segurança jurídica, direitos assegurados pelo art. 5º, XXXVI, da CF/88. Não é por outra razão que o art. 966 do CPC elenca as hipóteses, taxativas, em que é cabível o ajuizamento de ação rescisória. Dentre elas, cabe destacar, especificamente, aquela prevista no inciso V do art. 966 do CPC, segundo o qual pode ser rescindida a decisão de mérito transitada em julgado que “violar manifestamente norma jurídica”. 

A redação abrangente do referido inciso V deixou espaço para diversas problemáticas na doutrina e na jurisprudência acerca do seu alcance1. Afinal, o que exatamente pode se entender como manifesta violação à norma jurídica? Tratando-se de norma de interpretação controvertida nos tribunais, como deve ser feita a análise do cabimento da ação rescisória?

No afã de solucionar essas questões, o STF editou o enunciado sumular 343, quando ainda vigorava o CPC de 1973, de acordo com o qual “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

Em outras palavras, consolidou-se o entendimento de que não caberá ação rescisória quando, à época em que foi prolatada a decisão que se busca rescindir, havia diferentes interpretações acerca do tema nos tribunais, mesmo que, posteriormente, a controvérsia venha a ser superada, optando-se por uma das correntes da doutrina e da jurisprudência. 

A concepção adotada pelo STF visa, justamente, a preservar os institutos da coisa julgada e da segurança jurídica, conforme explicou o eminente ministro Teori Zavascki no julgamento do recurso extraordinário 590.809/RS, com repercussão geral, verbis: “se há nos tribunais divergência de entendimento a respeito de um mesmo preceito normativo é porque ele comporta mais de uma interpretação, a significar que não se pode qualificar qualquer uma dessas interpretações, mesmo a que não seja a melhor, como ofensiva ao teor literal da norma interpretada” (destacou-se). Portanto, “deve-se “prestigiar a coisa julgada se, quando formada, o teor da solução do litígio dividia a interpretação dos Tribunais pátrios” (RE 590.809/RS, Tribunal Pleno, Min. Rel. Marco Aurélio, DJe de 24.11.14).

Abram-se parênteses para ressaltar que o entendimento da jurisprudência e da doutrina é pacífico no sentido de que, “para que a ação rescisória fundada no art. 485, V, do CPC/73 [atual art. 966, V, do CPC/15], seja acolhida, é necessário que a interpretação dada pelo decisum rescindendo seja de tal modo teratológica que viole o dispositivo legal em sua literalidade” (REsp 1.032.814/RS, 1ª turma, Min. Rel. Luiz Fux, DJe de 06.11.09). Do contrário, se estaria transformando o instituto da ação rescisória em um verdadeiro recurso ordinário com prazo dilatado2. 

Portanto, a lógica por trás do enunciado 343 da súmula do STF pode ser explicada da seguinte forma: se determinada norma jurídica comporta, ou já comportou, diferentes interpretações no ordenamento jurídico, não há como se considerar que a decisão que optou por uma dessas interpretações cometeu manifesta violação a dispositivo de lei e deve ser rescindida3. 

2. A (dúbia) interpretação conferida pelo STJ ao enunciado 343 da súmula do STF

Em recente julgado, o STJ conferiu preocupante interpretação ao enunciado 343 da súmula do STF. Trata-se do julgamento do REsp 1.395.440/RJ.

Na origem, foi ajuizada ação rescisória com o intuito de rescindir acórdão,  proferido em 21.11.02, no âmbito de ação de repetição de indébito, que adotara uma das correntes da jurisprudência controvertida à época e reconhecera a legalidade das portarias 38, de 27.2.86, e 45, de 04.3.86, editadas pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, por meio das quais o DNAEE promoveu o reajuste das tarifas de energia elétrica de determinada classe consumidora.

Segundo a autora da rescisória, ao assim decidir, o acórdão rescindendo teria cometido violação a literais dispositivos de lei, quais sejam, os arts. 36 do decreto-lei 2.283/68 e 35 do decreto-lei 2.284/96, que estabeleceram o regime de congelamento de preços relativo ao plano cruzado.  

O Órgão Especial do TJ/RJ proferiu acórdão negando seguimento à rescisória, com fundamento na súmula 343 do STF, uma vez que, à época em que foi prolatado o acórdão rescindendo, era farta a jurisprudência a respeito da legalidade das portarias 38/86 e 45/86 do DNAEE4. 

Contra o referido acórdão, a parte autora interpôs recurso especial, ao qual foi dado provimento, pela 1ª turma do STJ, para afastar a súmula 343/STF e determinar o prosseguimento da ação rescisória. De acordo com a fundamentação do acórdão, quando foi prolatado o acórdão rescindendo, a 1ª seção do STJ já havia proferido julgados concluindo pela ilegalidade das referidas portarias do DNAEE. Assim, concluiu que, embora tivessem julgados dos tribunais do país entendendo de forma diversa, uma vez estando a matéria pacificada no âmbito da 1ª turma do STJ à época, deve ser afastada a incidência do enunciado 343 da aludida súmula5. 

A interpretação conferida pelo STJ à súmula 343 do STF, com todas as vênias, vai de encontro com a própria redação do verbete.  

A expressão “texto legal de interpretação controvertida nos tribunais” disposta no referido enunciado, de modo abrangente, não deixa dúvida de que o STF não restringiu o cabimento da ação rescisória apenas quando houver interpretação controvertida acerca do tema no âmbito do STJ ou dos tribunais superiores. De acordo com a Suprema Corte, caso a matéria julgada pela decisão rescindenda seja, à época de sua prolação, controvertida nos tribunais do país, inclusive em segunda instância, e o magistrado tiver optado por uma das correntes da jurisprudência, não há que se falar em manifesta violação à norma jurídica e, portanto, no cabimento de ação rescisória. 

Não se trata de defender o não cabimento da ação rescisória em razão da existência de um outro julgado com interpretação divergente, pois, nessa hipótese, não se está diante de interpretação controvertida de norma jurídica, mas, sim, de mero entendimento isolado. Nesses casos, a jurisprudência entende que, “se o acórdão rescindendo foi o único a acolher a tese defendida pela corrente, sendo-lhe contrários todos os que se lhe seguiram, não tem aplicação a súmula 343 do STF” (REsp 10.644-0, 2ª turma, Min. Rel. Pádua Ribeiro, DJe de 17.5.93). 

Todavia, se há relevante número de julgados dos tribunais conferindo interpretações diversas sobre o tema à época em que foi prolatada a decisão rescindenda, é evidente que se está diante de norma da qual há (ou houve) relevante controvérsia jurídica. Afinal, a uniformização da jurisprudência só ocorre quando é proferida decisão com caráter vinculante acerca do tema, nos moldes do art. 103-A da CF/886 e dos arts. 927 e 928 do CPC. Dessa forma, pouco importa se havia entendimento consolidado no âmbito de uma turma julgadora específica, seja do STJ ou de qualquer outro tribunal, pois, se inexistia qualquer precedente vinculante sobre a matéria, mas existiam diversos julgados com interpretações divergentes nos tribunais do país, não havia como se considerar que a matéria estava pacificada e, portanto, que a decisão que optou por uma dessas correntes cometeu manifesta violação à norma jurídica. 

Entender de forma diversa, como fez o STJ, para restringir a aplicação da súmula 343 do STF, além de contrariar a própria lógica do enunciado, permite o uso indevido e indiscriminado da via rescisória, preterindo-se o intuito da coisa julgada e o princípio da segurança jurídica, essenciais para a manutenção de um sistema processual unificado e estável. 

Victor Nunes Leal, eterno ministro do STF, notoriamente reconhecido como o “Pai” das súmulas, já dizia ser impossível interpretar os enunciados sumulares, pois seria fazer interpretação de interpretação, voltando à insegurança que a súmula quis remediar. Para ele, se o verbete “for passível de várias interpretações, ela falhará, como método de trabalho, à sua finalidade. Quando algum enunciado for imperfeito, devemos modificá-lo, substituí-lo por outro mais correto, para que ele não seja, contrariamente à sua finalidade, uma fonte de controvérsia7”.

Nesse contexto, por certo, nos termos do art. 102 do RISTF, caberá ao STF, no julgamento da reclamação 59.056/RJ, resgatar o sentido por trás de sua própria súmula, a fim de reforçar que a existência de controvérsia jurídica não deve ser analisada através dos julgados proferidos apenas pelos tribunais superiores, mas, sim, de todos os tribunais do país, como determina a sua própria redação, de modo a prestigiar a coisa julgada e a segurança jurídica.

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1 Com o intuito de exemplificar a controvérsia, confira-se a indagação feita pelo saudoso Ministro Teori Albino Zavascki em um de seus textos jurídicos: “A Súmula n. 343 tem relação íntima com a hipótese de rescisão da sentença que ‘violar literal disposição de lei’ (CPC, art. 485, V). O conteúdo aberto dessa locução normativa torna polêmica a definição do seu sentido. O que significa ‘violar literal disposição de lei’?” (ZAVASCKI, Teori Albino. Ação Rescisória: a Súmula n. 343-STF e as funções institucionais do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/dout20anos/article/download/3418/3542. Acessado em: 28.10.24, às 14h32)

2 Sobre o tema, convém citar as lições do saudoso Ministro Romildo Bueno de Souza: “A ação rescisória não pode ser concebida como mero instrumento voltado, eminentemente, a cercear interpretações construtivas da norma legal, pela jurisprudência, ao argumento de que tais interpretações sempre configurariam violação à disposição literal, como se a ordem jurídica brasileira estivesse formalmente comprometida com a tendência formalista ou mecanicista de revelação do direito concreto” (REsp 40, 4ª Turma, Min. Rel. Romildo Bueno de Souza, DJe de 03.2.92, p. 462)

3 Confira-se relevante citação doutrinária sobre o tema: “No que se refere especificamente à Súmula n. 343-STF, essa doutrina enuncia o seguinte: para privilegiar a segurança jurídica representada pela estabilidade da coisa julgada, justifica-se a manutenção das sentenças que tenham dado interpretação razoável aos preceitos normativos, ainda que não a melhor. Dito de outra forma: em nome da segurança jurídica, toleram-se interpretações equivocadas, desde que não se trate de equívoco aberrante. E se a respeito de certa norma os tribunais divergem, a adoção, pela sentença, de uma das correntes divergentes, ainda que equivocada, não pode ser considerada aberrante. Em casos tais, nega-se acesso à ação rescisória.” (ZAVASCKI, Teori Albino. Ação Rescisória: a Súmula n. 343-STF e as funções institucionais do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/dout20anos/article/download/3418/3542. Acessado em: 28.10.24, às 14h32)

4 Veja-se trecho do acórdão: “Observa-se que as interpretações existentes neste Tribunal de Justiça, à época do julgamento da Apelação Cível e dos Embargos Infringentes, a respeito das Portarias n° 38186 e no 40186 do Departamento de Águas e Energia Elétrica – DNAEE eram plausíveis: uma, no sentido de que o art. 36 do Decreto-Lei n° 2.283/86 e o art 35, § 2 0, do Decreto-Lei no 2.284186, que decretaram o Plano Cruzado, autorizavam a revisão dos preços de caráter setorial pelos órgãos competentes, sendo, por isso, legítimo o aumento tarifário realizado por meio das Portarias no 38/86 e no 40186 do DNAEE; outra, pela ilegalidade das citadas portarias que majoraram a tarifa de energia elétrica, desrespeitando o congelamento de preços instituído pelo Plano Cruzado. (…) Aplicável, assim, o verbete sumular n 11343 do STF, do seguinte teor. ‘Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais’.” (TJRJ, Ação Rescisória 0002731-81.2011.8.19.0000, Órgão Especial, Des. relatora Leila Mariano, j. em 09.4.12)

5 A fim de facilitar a compreensão da controvérsia, confiram-se outros julgados do STJ no mesmo sentido: EDcl no AgInt no REsp 1.531.387/PR, 1ª Turma, Min. Rel. Sérgio Kukina, DJe de 27.5.21; EDcl nos EDcl no AgInt no AREsp 1.157.476/RS, 4ª Turma, Rel. Desembargador Convocado Lázaro Guimarães, DJe de 22.5.18.

6 Veja-se o seguinte precedente nesse sentido: “2. O fato é que a presente ação rescisória está sendo ajuizada perante este STJ e no âmbito deste STJ a questão não restava pacificada ao tempo do julgamento do acórdão rescindendo, a ensejar a incidência da Súmula n. 343/STF, posto que o STF, muito embora tenha julgados contemporâneos em controle difuso favoráveis à tese da autora agravante, não se manifestou sobre o tema de forma vinculante para este STJ em sede de controle concentrado de constitucionalidade. A existência de tal vinculação se faz necessária diante da evidente diferença de competências para o exame do recurso especial e do recurso extraordinário, que podem abordar uma mesma questão sob enfoques distintos (infraconstitucional X constitucional). Tal o conteúdo dos precedentes citados do STF no RE 590.809 / RS (Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 22.10.2014) e na AR 1.415 AgR-segundo / RS (Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 09.04.2015), que prestigiam a segurança jurídica e a coisa julgada.” (AgInt no AgRg na AR 5.151/DF, 1ª Seção, Min. Rel. Mauro Campbell Marques, DJe de 19.6.20 – destacou-se)

7 https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/servlet/INPDFViewer?jornal=515&pagina=186&data=10/02/2020&captchafield=firstAccess

Art. 102. A jurisprudência assentada pelo Tribunal será compendiada na Súmula do Supremo Tribunal Federal.

§ 1º A inclusão de enunciados na Súmula, bem como a sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em Plenário, por maioria absoluta. 

§ 2º Os verbetes cancelados ou alterados guardarão a respectiva numeração com a nota correspondente, tomando novos números os que forem modificados.

§ 3º Os adendos e emendas à Súmula, datados e numerados em séries separadas e sucessivas, serão publicados três vezes consecutivas no Diário da Justiça.

§ 4º A citação da Súmula, pelo número correspondente, dispensará, perante o Tribunal, a referência a outros julgados no mesmo sentido.

Pamela Subirana

Pamela Subirana

Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Pesquisadora do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento e Científico e Tecnológico.

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