CompartilharComentarSiga-nos no A A
A 3ª turma do STJ, no último dia 12/11/24, decidiu afetar à Corte Especial o julgamento de um recurso especial, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, interposto pela Fundação Banrisul de seguridade social, para decidir se, à luz do art. 505, I, do CPC, há alteração no Estado de Direito decorrente de tese fixada em recurso especial repetitivo (REsp 2.166.724/RS), a fim de autorizar a revisão da coisa julgada.
Como regra, nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, exceto se estiver diante de uma relação de trato continuado, em que houve alteração no estado de fato ou de direito, hipótese em que se admite a revisão da coisa julgada. Esse é o exato teor do mencionado art. 505, I, do CPC.
Nenhuma novidade até aí. Inclusive, essa possibilidade de alteração da coisa julgada neste tipo de situação já era prevista no CPC de 1973, no art. 471, I1, uma vez que a sentença que regula relações jurídicas de trato sucessivo contém, implicitamente, uma cláusula rebus sic stantibus, em que, havendo a posterior alteração no estado de fato ou de direito, o magistrado pode revisar o decidido.
Entretanto, no CPC de 1973 ainda não existia, tal como hoje existe, o sistema de precedentes vinculantes materializado pelo CPC de 2015, segundo o qual as decisões proferidas pelos órgãos de cúpula do Poder Judiciário devem necessariamente ser observadas pelas instâncias ordinárias.
Nesse contexto, os entendimentos adotados pelo STF e pelo STJ acerca de determinado dispositivo constitucional ou legal, conforme o caso, devem ser interpretados como “modificação no Estado de Direito” apta a ensejar a revisão da coisa julgada.
Em outras palavras, é de se afirmar que as decisões proferidas pelo STF e pelo STJ em caráter vinculante, no atual sistema de precedentes estabelecido pelo CPC de 2015, possuem natureza de norma jurídica.
Assim, se interpretadas teleológica e sistematicamente a lei processual e o sistema de precedentes atualmente nela estabelecido, o debate a ser enfrentado pela Corte Especial aparenta ser de solução e conclusão únicas: as teses fixadas em recurso especial repetitivo, independentemente de revisarem entendimento anterior, mas especialmente nessa situação, implicam alteração no estado de direito apto a ensejar a revisão da coisa julgada.
O caso concreto envolve um pedido revisional da coisa julgada formulado por uma Entidade Fechada de Previdência Complementar em decorrência da alteração no Estado de Direito ocorrida com a edição das teses fixadas pelo STJ nos Temas 540 e 736. A partir da edição de tais precedentes, com eficácia vinculante e efeitos normativos, não seriam mais devidas, respectivamente, as verbas “auxílio cesta-alimentação” e “abono de dedicação integral” pagas, mensalmente, no benefício previdenciário complementar, por força de decisão judicial anterior.
A Fundação Banrisul de seguridade social pretende desonerar o plano de benefícios que administra do pagamento mensal de tais verbas e, com isso, o patrimônio previdenciário do conjunto dos demais participantes e assistidos, considerando o mutualismo e solidariedade próprios dessa relação jurídica, com efeitos prospectivos (ex nunc), ou seja, a partir da citação na ação revisional.
Não se objetiva, com isso, reformar o passado, o que desafiaria ação rescisória, se presentes as suas hipóteses de cabimento. O pedido tem como objetivo, portanto, conferir novo tratamento à relação jurídica continuada, a partir da alteração do estado de direito ocorrida com a fixação, pelo STJ, das teses contidas nos recursos especiais repetitivos 1.207.071/RJ (Tema 540) e 1.425.326/RS (Tema 736), cessando os efeitos da coisa julgada da citação em diante.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, de onde a demanda afetada é proveniente, se encontra, atualmente, dividido em relação a tal pedido de revisão da coisa julgada. Duas Câmaras Cíveis decidem essa matéria no âmbito da Corte gaúcha, com entendimentos diametralmente opostos. Vejamos:
A 5ª Câmara Cível decide, contrariamente ao pleito revisional, por entender, em síntese, que “… muito embora se esteja diante de uma relação jurídica de trato continuado (pagamentos mensais de complementação afeta ao auxílio cesta-alimentação e ADIn), não sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, mas tão somente alteração da interpretação jurisprudencial dada à matéria debatida na ação primeva, o que, com a vênia de entendimento diverso, não dá lastro à ação de revisão, sob pena de ofensa à coisa julgada que repousa sobre a relação2”.
Já a 6ª Câmara Cível acolhe o pedido de revisão da coisa julgada, por entender que “… sempre que os fundamentos de fato ou de direito que serviram de suporte para a manutenção da sentença sofrerem alguma modificação, e tratando-se de parcelas de trato sucessivo, é possível a sua revisão para adequar ao novo entendimento jurisprudencial”3.
No âmbito do STF já tem se admitido a revisão da coisa julgada, nas ações que envolvem obrigações de trato sucessivo, com fundamento em entendimentos vinculantes, ou seja, proferidos em controle concentrado de constitucionalidade ou em controle difuso (recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida), conforme se verifica, por exemplo, nos Temas 881 e 885.
As decisões proferidas nos referidos Temas partem da ratio que é inerente à relação Estado-contribuinte o trato continuado na imposição e cobrança de tributos, entendimento que se aplica perfeitamente a qualquer outra relação de trato sucessivo, como, por exemplo, aquela existente entre a Entidade Fechada de Previdência Complementar e seus participantes e assistidos no pagamento mensal de complementações de aposentadoria. Vejamos, por exemplo, a tese fixada no Tema 885:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”. – Grifamos4
Como se verifica no mencionado precedente, o STF faz clara distinção entre as alterações jurisprudenciais ocorridas quando não havia ainda a sistemática da repercussão geral, hipótese em que tais decisões não detinham natureza objetiva e nem força vinculante (item 1 da tese); das que ocorrem dentro do sistema de precedentes, que interrompem automaticamente os efeitos temporais da coisa julgada nas relações de trato continuado (item 2 da tese).
Nesse mesmo sentido tem se inclinado a jurisprudência do STJ, em linha com o racional adotado nos Temas 881 e 885 do STF, o que se verifica, por exemplo, no julgamento da AR 6.015, pela 1° seção:
“8. A tese jurídica prevalecente na Corte Excelsa, mormente no Tema 885, é a de que os julgados proferidos sob o rito da repercussão geral, em razão de sua força vinculante, têm o condão de alterar o quadro jurídico estabelecido anteriormente, situação que autoriza a flexibilização da coisa julgada de acordo com a cláusula rebus sic stantibus, aplicável às relações de trato sucessivo, sendo certo que, nesse contexto, a modificação do status quo tem efeitos imediatos e automáticos, tornando despicienda a propositura de ação rescisória ou de ação revisional (art. 505, I, do CPC).”5
E também no AgInt no REsp 1.477.477/CE, de relatoria do ministro Teodoro Silva Santos, julgado em 20/5/24, que não se refere a matéria tributária, mas envolve o pagamento de proventos de aposentadoria, em que a União se insurgiu contra a utilização de entendimento firmado em recurso especial repetitivo (REsp 1.244.632/CE – Tema 477) como fundamento para a rescisão do julgado, tendo o STJ, então, em conformidade com o racional do Tema 885 do STF, afastado a aplicação da súmula 343 do STF6, por entender que o entendimento com força vinculante tem o condão de acionar a cláusula rebus sic stantibus, imediata e automaticamente, nas relações de trato continuado.
Não há dúvida de que as decisões proferidas em recursos especiais repetitivos, igualmente às decisões proferidas em repercussão geral, integram o sistema de precedentes constante do CPC (art. 927 7), possuindo efeito vinculante e passando a orientar as instâncias ordinárias, não sendo, portanto, meras alterações jurisprudenciais, mas efetiva alteração no Estado de Direito, motivo pelo qual autorizam a revisão da coisa julgada, em demandas que envolvam relações jurídicas permanentes ou de trato sucessivo, como é o caso da previdência complementar fechada, diante da cláusula rebus sic stantibus presente nas sentenças proferidas nesta hipótese.
Importante observar ainda que, no caso a ser julgado pela Corte Especial (REsp 2.166.724/RS), ainda sem data para ocorrer, a revisão da coisa julgada é medida que garantirá a isonomia entre os participantes e assistidos de um mesmo plano de benefícios, tendo em vista que, de um lado, existem os que já foram beneficiados com o pagamento dessas verbas e, de outro, os que jamais farão jus a elas diante do entendimento firmado nas teses 540 e 736.
Assim, se observadas as questões processuais aqui abordadas, o julgamento a ser realizado pelo STJ, protegerá, com efeitos ex nunc, o patrimônio previdenciário do conjunto dos participantes e assistidos dos planos de benefícios, que ainda é indevidamente onerado com o pagamento das verbas “auxílio cesta-alimentação” e “abono de dedicação integral” decorrentes dessas sentenças proferidas com base em entendimento jurisprudencial não vinculante e anterior às teses firmadas nos Temas 540 e 736.
____________
1 Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:
I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
[…]”
2 Apelação Cível, Nº 50807954020238210001, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel Dias Almeida, Julgado em: 25-10-2023, Publicação: 25-10-2023.
3 Apelação Cível, Nº 52303039420228210001, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eliziana da Silveira Perez, Julgado em: 28-09-2023, Publicação: 02-10-2023.
4 RE 955227, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n DIVULG 28-04-2023 PUBLIC 02-05-2023
5 AR n. 6.015/SC, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 8/2/2023, DJe de 9/5/2023.
6 Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.
7 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
[…]” – Grifamos
Lara Corrêa Sabino Bresciani
Advogada do escritório Tôrres e Corrêa Advocacia.