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O avanço da medicina e as melhores condições de saúde e alimentação mundial proporcionaram um significativo aumento do tempo de vida. Muito bom, muito bem-vindo, porém, há outro lado nem tão feliz assim. Quem de nós já não sofreu (ou sofre) as agruras ao ver um ente querido sobreviver sem vida? Ou seja, com o que chamamos de “vida vegetativa”, aquela na qual, nas palavras recentes de Drauzio Varella em sua coluna na Folha de São Paulo, “(…) a cognição já foi pro espaço e o corpo se tornou um fardo insuportável?”.
O escritor e compositor Antonio Cícero optou por recorrer a um procedimento de morte assistida na Suíça e o tema tem sido constantemente debatido na imprensa e redes sociais. Sim, todos queremos viver muito e desejamos isso nas comemorações de aniversários, mas a qualquer preço? Essa é uma escolha pessoal, talvez a mais solitária e atormentada de nossas vidas, entretanto necessária para alguns e não seria justo que não possamos fazê-la. Ou pior: jogarmos a responsabilidade sobre nossa família ou nosso médico.
O Conselho Federal de Medicina desde o ano de 2012, através da resolução 1995/12, consolidou o testamento vital como um instrumento para assegurar a autonomia do paciente em decisões sobre tratamentos médicos, especialmente em situações de saúde extremas e irreversíveis. Aliada à resolução CFM 1805/06, que regulamenta a ortotanásia, e à resolução 2.232/19, reforça o respeito à dignidade e à vontade do paciente, evitando intervenções que apenas prolonguem o sofrimento.
O limite entre a ortotanásia, que é um procedimento que encurta a vida pela limitação de esforço terapêutico (ou seja, o médico deixa de usar medicamentos e aparelhos que prolongam a vida), e a eutanásia voluntária, que é um processo que antecipa a morte por ingestão de medicamentos, é cada vez mais tênue. Decorre da sofisticação de fármacos e aparelhos que são usados pela medicina e neste sentido a intenção de ortotanásia e eutanásia são similares, visto que ambas buscam o cuidado e não o abandono.
Assim, a questão situa-se neste campo nebuloso, ao passo em que questionamos até onde a limitação ou retirada de tratamentos ou, ao contrário, a ministração, significa abreviar a vida. Noutro norte, o poder de escolha do indivíduo sobre como ser tratado no infortúnio de uma situação extrema nos parece cada vez mais legítima, por isso ouso sugerir possibilidade mais incisiva: a expressão desse desejo por escritura pública de declaração antecipada de vida, também conhecida como testamento vital, cuja minuta transcrevo abaixo:
Pela presente escritura de declaração de vontade antecipada o(a) declarante comunica que através deste ato, busca preservar a sua dignidade como previsto pela Constituição Federal, artigos 1º, inciso III, e 5º, inciso III, e ainda segundo as normas do Código de Ética Médica aprovado pela Resolução CFM 1931, de 24 de setembro de 2009 e ainda pela Resolução CFM 1995, de 9 de agosto de 2012, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.
E assim declara que este documento contém a declaração de sua vontade a respeito dos direitos do corpo, da personalidade na eventualidade de moléstia grave ou acidente que o impeça de expressar a sua vontade. E assim deseja orientar os profissionais médicos e sua família sobre as suas escolhas relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, bem como, para as situações clínicas irreversíveis e terminais, determinar aos médicos que evitem a realização de procedimentos terapêuticos desnecessários e propicie ao declarante todos os cuidados paliativos apropriados, evitando a dor e o sofrimento físico, moral e espiritual (Código de Ética Médica, dos Princípios Fundamentais, incisos XXI e XXII)
O(A) declarante autoriza e consente aos médicos que, segundo os ditames deste instrumento e respeitados os limites impostos, promovam todos os procedimentos diagnósticos e terapêuticos necessários ao seu tratamento.
Caso sofra algum acidente ou moléstia grave que impeça o(a) declarante de expressar sua vontade a respeito do tratamento e de providências médicas ou legais atinentes à sua saúde e vida, como por exemplo, ficar em estado de coma, e sendo declarado(a) por junta médica o quadro irreversível de melhora ou que resulte em sequelas, e ainda, esgotadas todas as possibilidades de vida sem a ajuda de aparelhos, o(a) declarante deseja e autoriza sejam desligados os equipamentos que o(a) mantém vivo.
O(A) declarante entende que sua vida termina quando, face a um diagnóstico médico seguro, não terá mais a possibilidade de se manifestar. Viver estado de saúde com moléstia irreversível, sem a perspectiva de cura e com dor ou dependente de aparelhos ou no denominado “estado vegetativo” significaria, para ele(a), a negação de sua vida, de sua dignidade, de sua honra, da imagem que deseja ter em vida e na posteridade. Ou seja, caso não reconheça mais ninguém inclusive sua família, tenha perdido o controle dos esfíncteres, esteja passando os dias sem se comunicar verbalmente, visualmente, ou por outra forma, sem nenhuma expressão ou reação pelos olhos e ainda precisar de sonda gástrica para não morrer de inanição, NÃO deseja que:
1) a sua vida seja mantida por qualquer aparelho prolongador de vida;
2) sejam realizadas cirurgias que prolonguem a sua vida, mas lhe subtraiam a possibilidade de manter uma vida estritamente normal;
3) sofra amputação de qualquer de seus membros;
4) a sua vida se prolongue graças ao uso de equipamentos ou medicamentos como, por exemplo, bolsas de colostomia, uso de oxigênio, medicamentos que atuem no sistema circulatório.
Declarou ainda que, se nas condições acima expressas ele(a) esteja padecendo de sofrimento irremediável e insuportável e que não haja solução médica para o tratamento. E suas perspectivas de vida sejam, praticamente nulas e haja consenso de ao menos três médicos e da sua família e:
1) A lei brasileira venha expressamente permitir.
2) A lei de outro país permita e seja razoável transladar-lhe a este país.
Que, sua vida seja abreviada mediante eutanásia ativa por procedimento médico, o(a) conduzindo à morte desejada e expressa por este documento. E que neste caso, considera este procedimento piedoso ou por compaixão e assim espera ser tratado.
Disse ainda que, foi alertado por este tabelião, que parte deste seu desejo atualmente pode ser considerado formalmente ilegal e, portanto, inexequível.
Disse ainda que se estiver impossibilitado de manifestar a sua vontade, elege (fulano(s) para decidir(em) tudo o que seja relativo ao seu tratamento médico, às disposições relativas de sua saúde e vida. Este(s) mandatário(s) deverá(ão) agir nos estritos termos deste ato, ou quando haja omissão, segundo os seus próprios critérios, podendo autorizar o desligamento de aparelhos ou a suspensão e interrupção de tratamentos degradantes ou inúteis, o que será apurado segundo decisão de seu mandatário. Este mandato deve sobrepor-se ou, mesmo, excluir o rol previsto no Código Civil, art. 12, parágrafo único, quando colidentes.
Este é um daqueles documentos que fazemos torcendo para que nunca sejam usados e certamente muitos preferirão não o fazer, pois como mencionado acima, trata-se de decisão de foro estritamente pessoal. Não cabe a nós notários, advogados ou médicos fazer juízo moral, mas sim oferecer meios legais de garantir a livre manifestação de vontade sobre algo tão fundamental.
Angelo Volpi Neto
Tabelião em Curitiba, escritor, professor de Pós Graduação da PUC-Pr., Autor dos livros Direito Eletrônico Comécio e Segurança e A vida em Bits. Ex presidente Colegio Notarial do Brasil