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Por que a advocacia não pode ser terceirizada
A advocacia ocupa um lugar singular na sociedade. Reconhecida pela CF/88 como essencial à Administração da Justiça (Brasil, 1988), essa profissão transcende o simples fornecimento de serviços, carregando consigo uma responsabilidade ética e social de defender direitos, preservar a legalidade e garantir a justiça. Nesse contexto, a terceirização, tão comum em outras áreas, encontra barreiras insuperáveis quando se trata do exercício da advocacia.
Francesco Carnelutti, renomado jurista italiano, descreve a advocacia como uma atividade “de alma, antes de ser de inteligência”. Para ele, “o advogado não defende apenas uma causa; defende uma pessoa” (CARNELUTTI, 1987). Essa visão reforça a importância do vínculo pessoal e ético entre o advogado e o cliente, incompatível com a lógica impessoal da terceirização.
A natureza personalíssima da advocacia
O primeiro e mais evidente motivo que impede a terceirização da advocacia é sua natureza personalíssima. Um advogado não é apenas um prestador de serviços; ele é um profissional que representa interesses jurídicos de terceiros com autonomia e responsabilidade técnica. Essa atuação exige preparo intelectual, sensibilidade para compreender situações complexas e, sobretudo, um compromisso ético inabalável.
Na relação advogado-cliente, a confiança mútua é fundamental. O cliente confia não apenas na competência do profissional, mas também em sua dedicação exclusiva ao caso e na confidencialidade que garante a proteção de informações sensíveis. Transferir essa relação para um sistema de terceirização comprometeria a personalização e a qualidade do atendimento.
Além disso, a lei 8.906/94, em seu art. 2º, § 1º, enfatiza: “No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.” A terceirização comprometeria essa função social ao diluir a responsabilidade ética e a autonomia técnica que são pilares da profissão.
Regulamentação específica e sigilo profissional
A advocacia é regulada por normas que não apenas disciplinam o exercício da profissão, mas também protegem os direitos do cliente. O Estatuto da Advocacia, por exemplo, destaca, no art. 7º, XIX, que é direito do advogado “ter respeitada a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática”. Isso é indispensável para assegurar o sigilo profissional, um dos pilares da advocacia.
Francesco Carnelutti também alerta que “o segredo profissional é a fortaleza que protege o cliente”. Ao terceirizar serviços jurídicos, essa fortaleza seria enfraquecida, expondo informações sensíveis a riscos de vazamento e uso indevido.
Função social e constitucional da advocacia
A advocacia não é uma atividade meramente econômica. Sua função social vai além do interesse privado, pois está diretamente relacionada à defesa da democracia, dos Direitos Humanos e da justiça social. Como Carnelutti escreveu, “não há justiça sem advocacia”.
Permitir a terceirização dessa atividade seria transformar o advogado em um mero componente de uma cadeia de produção, o que é incompatível com a dignidade da profissão e seu papel essencial na sociedade. O art. 31 da lei 8.906/94 reitera que “o advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da advocacia”. Isso inclui a independência técnica, um princípio essencial para preservar a justiça.
Um risco para a qualidade e ética
A lógica da terceirização prioriza, em muitos casos, a redução de custos em detrimento da qualidade. Isso seria desastroso para a advocacia, onde cada caso exige atenção personalizada, análise detalhada e um profundo entendimento das leis e circunstâncias específicas. A ética, que é um pilar da profissão, poderia ser comprometida em um cenário de terceirização, já que o foco passaria a ser o volume de casos tratados e não a excelência no atendimento.
A terceirização também poderia gerar conflitos de interesse e comprometer a autonomia técnica do advogado, como bem aponta o art. 18 do Estatuto da Advocacia, que veda expressamente que advogados aceitem causas que possam afetar sua independência ou configurar impedimentos éticos.
Conclusão
A advocacia não é uma profissão como qualquer outra. Ela está intrinsecamente ligada à defesa da legalidade, à proteção dos direitos e à promoção da justiça. Esses valores não podem ser terceirizados, pois dependem de uma relação direta, ética e personalíssima entre o advogado e seu cliente.
Como Carnelutti conclui, “ser advogado não é um trabalho; é uma missão”. Permitir a terceirização da advocacia seria um retrocesso, colocando em risco não apenas a qualidade dos serviços prestados, mas também a própria essência da profissão. A regulamentação específica, os princípios éticos e a função social da advocacia são barreiras intransponíveis para essa prática, garantindo que a profissão continue sendo um pilar fundamental para a sociedade e para o Estado Democrático de Direito.
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1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 nov. 2024.
2 BRASIL. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 10.417, 5 jul. 1994. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm. Acesso em: 26 nov. 2024.
3 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987.
Bruna Secreto Rocha de Sousa
Advogada. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Católica de Brasília. Pós-graduada em Direito Público pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI).