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É usual falar-se da necessidade de universalização dos serviços de saneamento básico, porém, pouco se destaca que a universalização não depende apenas da extensão das redes de abastecimento, mas, especialmente, da possibilidade de pagamento pelos consumidores. A exorbitância do preço ou a forma de cobrança cada vez mais se tornam excludentes do acesso, prejudicando a universalização dos serviços de saneamento básico.
A revisão da tese repetitiva 414 pelo STJ, longe de esclarecer a matéria, trouxe maior desalento aos consumidores, chegando a situações desesperadoras. Até julho de 2024, a interpretação do STJ, consagrada no Tema 414, tratava da ilegalidade da cobrança da tarifa mínima multiplicada pelo número de economias, desconsiderando o consumo efetivo registrado no hidrômetro no caso dos condomínios. A forma de cobrança determinada pelo Tribunal da Cidadania passou a ser tratada como cobrança pelo consumo efetivo, banindo a cobrança pelo consumo estimado.
Desde o decreto 553/76, do Rio de Janeiro, no século passado, as empresas fornecedoras de água tratada já buscavam cobrar mais do que entregam. A interpretação redentora do STJ, em 2010, estava completamente afinada com o princípio da vulnerabilidade do consumidor, que emerge do art. 5º, XXXII, da CF/88, e é consagrado no CDC.
A interpretação traduzida na tese 414 afirmava que o contrato de fornecimento de água e coleta de esgoto, sendo um contrato de consumo, não admite ao fornecedor cobrar por uma quantidade maior do que a entregue aos consumidores. Isso parecia a redenção do contrato de fornecimento de serviços essenciais como água potável e esgoto. Contudo, as concessionárias dos serviços trataram de burlar a tese do STJ, criando uma tarifa dentro de outra tarifa, com os chamados serviços básicos, que o TJRS denominou de regime de economias. Como os serviços básicos para o fornecimento podem ser cobrados fora da tarifa convencionada? Não se tratava de uma tarifa dentro de outra, pois era compulsória, e no caso dos condomínios, sem possibilidade de não cobrar quando a unidade econômica não estava em uso. Respeitado juízo diverso, entendo que era uma taxa além da tarifa pela água consumida, sem lei que a tenha estabelecido.
Outras entidades fornecedoras passaram a cobrar dos condomínios como se fossem compostos por apenas uma economia, aplicando tarifas progressivas que ultrapassavam o quádruplo do valor cobrado de unidades não integrantes de condomínios. Esta forma de cobrança gerou valores astronômicos, e o assunto voltou ao STJ como tema repetitivo, com a máxima vênia, um tema repetitivo que não tinha vínculo direto com o tema repetitivo 414. Porém, a decisão do Tribunal foi de revisar a tese 414.
Ainda que se perceba a intenção saudável de admitir a tarifa híbrida, como consta da decisão do Recurso Especial representativo da controvérsia, foi esquecida a voracidade de cobrança que é histórica entre as empresas de saneamento básico, que sabem da essencialidade dos seus serviços e da inexistência de concorrência direta. A tarifa híbrida ou mista é composta de uma parcela fixa e uma parcela variável, que pelo critério estabelecido na revisão, a parte fixa deve ser uma espécie de franquia e deduzida na parcela variável, é o retorno da tarifa mínima.
Ocorre que não há parâmetros para estabelecer a tal tarifa mínima ou parcela fixa. Existem fornecedoras que já estabeleceram que a tarifa mínima é de valor equivalente a 20.000 litros/mês, ou 20 m³ por mês, como é o caso do Rio de Janeiro, conforme informação publicada na Revista Eletrônica SINDICONET. Não há o mínimo de razoabilidade em fixar como tarifa mínima mais que o dobro do consumo de uma família média, e até dez vezes o que consome um escritório, instalado em uma sala (economia).
É fundamental destacar que a Organização Mundial da Saúde, órgão da ONU, tem como consumo ideal 50 litros por dia por pessoa. Assim, uma família de quatro pessoas tem por consumo ideal 6 m³/mês. No caso citado, a tarifa mínima é um atrativo ao desperdício da água, que cada vez mais é um elemento escasso.
Maior surpresa decorre da modulação da tese 414 revisada. Dentro do dever do Estado de defesa do consumidor, art. 5º XXXII, da CF, poderia a tese estabelecer um parâmetro para a parcela fixa ou tarifa mínima, até que o legislativo regulasse a matéria, mas não o fez. Ficou estabelecido na modulação que as fornecedoras de serviços de água e esgoto podem ressarcir o que cobraram a maior dos consumidores através de compensação com faturas vincendas, ou seja, quem foi cobrado ilegalmente terá de ser financiador dos lucros de quem lhe cobrou ilegalmente.
Não há razoabilidade que as companhias estabeleçam como tarifa mínima mais de um quarto da média de consumo por economia na área de abrangência da prestadora de serviço de água e esgoto.
Parece-me que o propósito de diminuir o número de processos com o julgamento de recursos repetitivos, neste caso, não terá efetividade. A flagrante abusividade que já toma proporções assustadoras nos primeiros seis meses de revisão da tese 414 aponta para que a judicialização das tarifas de saneamento básico volte com força.
Mario Luiz Fernandes Medeiros
Advogado formado UCPEL, especialista em Direito Processual, Dirigi Banca com 9 advogados.