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A lei 14.133/2021 – Lei de Licitações e Contratos Administrativos (LLCA) representa uma evolução normativa voltada à promoção da eficiência administrativa e à prevenção de condutas que possam comprometer a integridade do processo licitatório. O art. 58, que disciplina a garantia de proposta, ocupa posição central nesse contexto, configurando-se instrumento destinado a assegurar a seriedade dos licitantes e evitar comportamentos que inviabilizem a conclusão exitosa do certame.
O instituto busca atender tanto à lógica do signaling, por parte dos licitantes, quanto do screening, pela Administração, trabalhadas pelos professores Bradson Camelo, Marcos Nóbrega e Ronny Charles1: de um lado, a empresa que se dispõe a prestar a garantia sinaliza sua atuação responsável, demonstrando solidez e compromisso com a execução do objeto; de outro, o Poder Público efetua uma filtragem eficaz, afastando licitantes aventureiros.
A previsão legislativa da garantia de proposta, ao impor responsabilidades aos participantes, reforça a proteção dos interesses da Administração Pública e contribui à efetividade do processo licitatório, reduzindo os riscos de uma licitação frustrada ou de um contrato não assinado.
Sua necessidade e adequação devem ser demonstradas na fase preparatória da licitação, sobretudo como fator que mitigue os riscos que possam recair sobre o sucesso da licitação. É necessário ter em mente que sua utilização encarece a proposta advinda do mercado. Portanto, o instituto não deve ser banalizado, mas utilizado proporcionalmente pela Administração.
Permita-nos transcrever a íntegra de sua previsão legal, pois será necessário revisitá-la ao longo do texto:
Art. 58. Poderá ser exigida, no momento da apresentação da proposta, a comprovação do recolhimento de quantia a título de garantia de proposta, como requisito de pré-habilitação.
§ 1º A garantia de proposta não poderá ser superior a 1% (um por cento) do valor estimado para a contratação.
§ 2º A garantia de proposta será devolvida aos licitantes no prazo de 10 (dez) dias úteis, contado da assinatura do contrato ou da data em que for declarada fracassada a licitação.
§ 3º Implicará execução do valor integral da garantia de proposta a recusa em assinar o contrato ou a não apresentação dos documentos para a contratação.
§ 4º A garantia de proposta poderá ser prestada nas modalidades de que trata o § 1º do art. 96 desta Lei. Grifos nossos
Ao menos, duas questões se apresentam de imediato, decorrentes do dispositivo legal: caso adotada, qual seria o momento de apresentação da garantia de proposta? No início do certame, antes da fase competitiva, ou após esta etapa, depois da apresentação de lances (quando presente o modo de disputa aberto) e eventual negociação entre a Administração e o licitante, no momento da apresentação final da proposta?
Se adotarmos o entendimento de que é no início do certame, ou seja, no momento da apresentação inicial da proposta, ela deverá ser exigida de todos os participantes. Se compreendermos que é após a fase competitiva, ela poderá ser exigida apenas do licitante que teve a proposta classificada em primeiro lugar.
Essas questões não possuem fácil resolução. Demonstração disso é a divergência exposta entre os estudiosos Augusto Nogueira e Murilo Jacoby Fernandes no artigo “O momento correto para apresentação da garantia de proposta nas licitações”, publicado no Observatório da Nova Lei de Licitações2, que os leva a apontar que não há uma única resposta, podendo ser exigida em qualquer desses momentos, havendo relevantes fundamentos para um ou outro entendimento.
Após amadurecermos a visão sobre a temática, neste artigo opinativo, adotamos a posição de que ela deverá ser exigida no início do certame, de todos os licitantes.Não obstante, não se pode desconsiderar que a exigência da garantia de proposta no momento inicial da licitação (sob o rito procedimental comum: análise das propostas e posterior habilitação) pode colocar em risco uma das principais vantagens do formato eletrônico (regra nas licitações da lei 14.133/2021): o anonimato dos participantes, quando estes optarem pela caução em dinheiro.
Em verdade, temos que nos perguntar: a lei garante o sigilo das propostas ou dos participantes? O art. 13 da LLCA parece nos responder, quando impõe a publicidade aos atos do processo como regra, excepcionando-a, in litteris, “quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura”.
A proteção ao sigilo da proposta é tutelada no campo penal, por meio do crime de “violação de sigilo em licitação”. Assim, o art. 337-J do Código Penal tipifica a conduta de “devassar o sigilo de proposta apresentada em processo licitatório ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo”. Veja que não faz parte do tipo qualquer menção aos participantes da licitação.
De outro lado, o Código Penal parece pressupor que os participantes possam ter conhecimento dos concorrentes, prevendo, no art. 337-K, o crime de “afastamento de licitante”, tratando como ilícito penal a conduta de “afastar ou tentar afastar licitante por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo”.
O legislador da lei 14.133/2021, ao prever a possibilidade de se exigir a garantia de proposta, se preocupou com a manutenção do sigilo desta. Como? Quando assegurou que aquela “não poderá ser superior a 1% (um por cento) do valor estimado para a contratação“. Se viabilizasse o estabelecimento de percentual sobre o valor ofertado pelo licitante, devassada estaria a proposta.
Na doutrina, o professor Marçal Justen Filho, por exemplo, sustenta que a garantia de proposta deveria ter como base o valor ofertado pelo licitante e não o valor estimado, para melhor atender aos princípios constitucionais3. Pensamos, no entanto, que o legislador foi sábio ao fixar como marco o valor estimado à contratação e não o valor da proposta. Com isso, mantem-se seu sigilo e a possibilidade de exigir sua garantia no momento inicial da licitação.
Assim, pensamos que o sigilo dos participantes da licitação eletrônica é desejável, mas não é imposto à Administração (como não o é nas licitações presenciais). Desse modo, aqueles licitantes que desejarem se manter no anonimato, terão que fazer uma opção: escolher, dentre as espécies de garantias previstas no art. 96, § 1º, da lei 14.133/2021, qualquer outra que não seja a caução em dinheiro.
Cabe ao licitante optar por uma das espécies de garantia previstas nesse dispositivo, sabendo que, ao optar por essa caução, poderá estar renunciando ao seu anonimato perante a Administração. Dito de outro modo, entendemos que o edital da licitação não poderá restringir a escolha por parte do licitante, cabendo a este, todavia, dentro de seu juízo de convicção, escolher a espécie que melhor atenda seus interesses (dentre eles, manter-se anônimo perante a Administração).
Dito isso, reforçamos que, para nós, o momento adequado de apresentação da garantia de proposta é o inicial (antes da fase competitiva, no rito comum, e no momento inicial da habilitação, quando houver a inversão de fases), justamente pelo propósito de sua existência legal. Ela não se confunde com a garantia contratual, disciplinada nos arts. 96 a 102 da Lei 14.133/2021, a qual tem limites percentuais diferentes e somente pode ser exigida do vencedor do certame (para a assinatura do contrato). Enquanto a primeira é requisito à participação do certame e atinge a todos, tendo por objetivo mitigar a participação de licitantes despreparados ou mal-intencionados, a segunda é destinada ao contratado que, por meio do instrumento em questão, busca indicar que executará o objeto contratual adequadamente.
A exigência da garantia de proposta já na fase inicial da licitação constitui medida legal para coibir práticas abusivas, como as que serão expostas na sequência. Ao impor desde cedo um ônus financeiro, a Administração induz o licitante a refletir sobre sua oferta, reduzindo os riscos de propostas inexequíveis e, por conseguinte, os custos associados às desistências tardias.
Assim, se a garantia for exigida apenas ao final da fase competitiva, haverá enorme risco de que se torne instrumento inócuo, diante do abandono do certame por parte daquele que não encarar a licitação com seriedade. Ao ser convocado para apresentá-la, simplesmente abandonará a licitação. Enfrentada a difícil discussão sobre o momento de sua exigência, resta adentrarmos em outro debate: os fatores que ensejam sua execução.
A execução da garantia, em casos de recusa do licitante em assinar o contrato ou não apresentar os documentos necessários à contratação demonstra a intencionalidade legislativa de coibir práticas abusivas na licitação, como é o caso das propostas fictícias ou de cobertura, da tática do coelho ou do mergulhador. Entender esses exemplos nos permitirá analisar teleologicamente o instituto.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), propostas fictícias ou de cobertura são a forma mais comum de fraudes à licitação, dando aparente caráter de competitividade ao certame, afastando, com isso, os indícios fraudulentos, e, dessa forma, camuflando-se das linhas de defesa4. As propostas podem manipular preços ou não atender propositalmente os requisitos de habilitação constantes no edital5.
Já, a tática do coelho consiste, de forma simplificada, em apresentar uma proposta artificialmente baixa – para “sair na frente” ou “assustar” a concorrência, fazendo com que outros participantes pensem que não conseguirão oferecer preços competitivos. Assim, os concorrentes tendem a desistir ou a recuar dos lances, acreditando que não vale a pena continuar reduzindo seu preço.
Porém, o lance mais baixo (do coelho) é insustentável e esse licitante (em conluio com o segundo colocado), posteriormente, não atende aos requisitos de habilitação ou se recusa a assinar o contrato, dando lugar a esse outro licitante, com um valor maior do que o esperado, pois se aproveitou do efeito psicológico gerado pelo coelho nos demais competidores (a desistência em competir, por pensarem que o certame já estava perdido).6
Por sua vez, ainda há aquele licitante mergulhador, que ingressa na licitação desconhecendo o mercado e suas condições. Em razão disso, “mergulha” na licitação, principalmente naquelas com modo de disputa aberto (lances), ofertando valor extremamente baixo (só percebendo sua inexequibilidade posteriormente). Quando constata a realidade, verificando que venceu a disputa com um preço impraticável, não atende aos requisitos de habilitação ou simplesmente não firma o contrato.
Embora haja a possibilidade de aplicação de sanção administrativa, com fundamento no art. 155, incisos IV, V ou VI, da LLCA, essa previsão sancionadora não é suficiente para resolver o problema em si, uma vez que licitantes nas condições exemplificadas acima dificilmente superam a fase de habilitação.
Até serem inabilitadas, entretanto, já abalaram a competitividade e a igualdade entre os participantes, ao distorcer o resultado do certame, ferindo a isonomia e gerando desincentivo à participação daqueles licitantes sérios em licitações futuras, que se veem em desvantagem diante de preços artificialmente baixos. Isso não só compromete a efetividade, mas a credibilidade nos processos licitatórios.
De forma semelhante, realizar a execução da garantia de proposta somente por ocasião da assinatura do contrato ou da não entrega dos documentos no momento da contratação não parece resolver a questão. Por conseguinte, faz-se necessário interpretar teleologicamente o art. 58, § 3º, da lei 14.133/2021, como faremos a seguir.
A interpretação teleológica, que visa identificar a finalidade precípua de normas jurídicas para orientar sua aplicação, é amplamente utilizada em diferentes matérias do direito público, para garantir que as normas atendam ao interesse público. Não só o administrador e o Poder Judiciário lançam mão do método, mas também o Tribunal de Contas da União (TCU).7
Essa metodologia interpretativa tem sido aplicada para assegurar maior coerência e efetividade aos dispositivos legais. Ao que nos parece, quando o legislador deslocou a garantia de proposta da habilitação econômico-financeira (na revogada Lei nº 8.666/1993) para um requisito de pré-habilitação (lei 14.133/2021), buscou desestimular a participação de licitantes de cobertura, coelhos ou mergulhadores. Precisamos então interpretar os parâmetros de aplicação, de forma a manter a efetividade do instituto.
A interpretação teleológica do art. 58 da lei 14.133/2021 permite compreender que a execução da garantia de proposta não deve se limitar à hipótese de recusa do licitante em assinar o contrato ou não apresentação dos documentos necessários para a contratação somente em momento posterior ao término da licitação.
Embora possa se compreender que a mera inabilitação ou desclassificação na licitação não autoriza a execução da garantia de proposta8, a ratio legis em torno do § 3º do art. 58 é justamente prevenir comportamentos que frustrem a conclusão válida do certame, impondo, assim, salvaguarda à Administração quando há intenção ou omissão do licitante que inviabilize a efetivação do contrato.
Ao vincular a execução da garantia à “recusa em assinar o contrato ou à não apresentação dos documentos para a contratação”, o dispositivo abrange todo o conjunto de requisitos essenciais à formalização do vínculo, de modo que o descumprimento de qualquer deles – seja a recusa expressa ou a omissão em entregar a documentação exigida à habilitação – configura situação equiparável para efeito de execução integral da garantia.
Compreendemos, destarte, que o propósito da norma é assegurar que somente participem da licitação proponentes comprometidos com a assinatura efetiva do contrato (o que pressupõe a proposta compatível com o objeto e a entrega dos documentos de habilitação conforme estipulado no edital). Nesse sentido, a não entrega da documentação exigida para o certame, caso inviabilize a efetiva contratação, também deve ser considerada hipótese apta a ensejar a execução da garantia de proposta.
Assim é que defendemos que a não apresentação dos documentos necessários à contratação não pode ser restringida apenas ao momento da assinatura do contrato, em si, mas também compreendida como a não apresentação daqueles documentos que são a razão de ser da própria habilitação (verificar se a licitante está apta, do ponto de vista jurídico, técnico e econômico-financeiro, bem como fiscal, social e trabalhista, a firmar contrato com a Administração).
Diante de todo o exposto, em sede conclusiva, embora se trate de tema extremamente controverso e que enseje diferentes interpretações, finalizamos este texto opinativo, afirmando que, sob nosso entender, o momento adequado de apresentação da garantia da proposta é o momento inicial da licitação (antes da fase competitiva), por todos os licitantes. Compreendemos, também, que a não apresentação da documentação exigida como requisito de habilitação está compreendida na “não apresentação dos documentos para a contratação”, prevista no § 3º do art. 58 da lei 14.133/2021.
__________
1 “O screening deve ser diferenciado da sinalização, para efeitos didáticos, mas na prática ambos são ferramentas para o mesmo fim e, por vezes, podem se confundir.” CAMELO, Bradson; NÓBREGA, Marcos; TORRES, Ronny Charles L. de. Análise econômica das licitações e contratos: de acordo com a lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações). Belo Horizonte: Fórum, 2022. 240 p.
2 Artigo disponível em: https://www.novaleilicitacao.com.br/2024/04/30/o-momento-correto-para-apresentacao-da-garantia-de-proposta-nas-licitacoes. Acesso em 23 dez. 2024.
3 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo, SP: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 698-701.
4 SANTOS, Franklin Brasil. Como combater a corrupção em licitações: detecção e prevenção de fraudes. 3. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 135.
5 Ibidem, p. 136.
6 “Configura comportamento fraudulento conhecido como coelho, ensejando declaração de inidoneidade para participar de licitação da Administração Pública Federal, a apresentação por licitante de proposta excessivamente baixa em pregão para induzir outras empresas a desistirem de competir, em conluio com uma segunda licitante que oferece o segundo melhor lance e que, com a desclassificação intencional da primeira, acaba sendo contratada por um valor superior àquele que poderia ser obtido em ambiente de ampla concorrência, sem a influência do coelho.” Acórdão 754/2015-Plenário | Relator: Ana Arraes. Grifos nossos
7 Vide, exemplificativamente, os Acórdãos 5847/2018-Primeira Câmara, 3440/2015-Primeira Câmara, 3785/2014-Primeira Câmara, 1078/2013-Plenário, todos do Tribunal de Contas da União.
8 NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 805.
Felipe Dalenogare Alves
Pós-Doutor pela Università di Bologna. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Professor de Direito Administrativo, Constitucional e Militar. Autor e Palestrante.
Jader Esteves da Silva
Mestre e Especialista em Direito. Bacharel em Direito e em Ciências Navais. Professor de Direito aplicado às Licitações e Contratos Administrativos. Autor e Palestrante. Instagram: @jader.esteves