O perfil neoliberal do pacote de corte de gastos do governo Lula   Migalhas
Categories:

O perfil neoliberal do pacote de corte de gastos do governo Lula – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

Tem sido divulgado nas mídias escritas e faladas o famigerado pacote de corte de gastos governamentais do atual governo, que abrange restrições ao BPC, ao Bolsa Família, ao salário mínimo, ao abono salarial etc. Ele, que já foi aprovado no Congresso (notadamente os PL 461424 e PL 2102024, pendentes de sanção ou veto do presidente da república), foi recebido com certo desagrado e ceticismo por parte de alguns setores da direita a extrema direita, do mercado financeiro e da própria esquerda. Para outros, notadamente os partidários do governo Lula, tal pacote representa um grande avanço para a estabilidade fiscal do país. Os de esquerda mais radical, como os socialistas, defendem que ele, dito pacote, consiste num profundo e nefasto acordo entre o governo e as elites econômicas dominantes, sacrificando enormemente a população mais pobre e a classe trabalhadora. Não se pode perder de vista que, segundo cálculos do governo, os cortes nesses  gastos públicos resultarão numa economia de mais de 300 bilhões até 2030 para os cofres públicos.

Pois bem. A pretexto de impedir fraudes e corrigir distorções no BPC (benefício constitucional que protege os mais miseráveis, vale dizer, pessoas com deficiência física e maiores de 65 anos), o governo enviou ao Congresso Nacional um pacote que, efetivamente, implicará no sacrifício de aproximadamente 1,2 milhões de beneficiários. Se é certo que fraudes e distorções existem no BPC não menos verdadeira é a afirmação de que não se pode criminalizar os benefícios sociais, como pretendem o governo e os congressistas. É só lembrar que o próprio PT, por ocasião dos cortes no BPC levados a cabo, sob o mesmo pretexto, pelo governo de Bolsonaro, criticava tal postura e afirmava que não se poderia criminalizar esse benefício social. Hoje ele mesmo, o PT, incorre no mesmo erro, utilizando o argumento falacioso de que o principal é coibir as fraudes e corrigir distorções nesse benefício social. Essa postura mascarada do governo serve para ceder aos apelos e anseios do mercado financeiro, que não hesitará , brevemente, em exigir mais cortes ainda, até o infinito. O mercado aceitou, por hora, esses cortes, não se podendo olvidar que ele queria muito mais, como a derrubada dos pisos constitucionais da saúde e da educação, só para ficar por aí. O mercado, vale registrar, no seu afã de aumentar ilimitadamente o capital, vai até onde não encontra limites intransponíveis, inclusive malferindo direitos fundamentais

De outro lado, o governo , nos projetos de lei que enviou ao Congresso, também visa reduzir o ganho real do salário mínimo. Com efeito, embora mantenha a política de ganho real, que foi desprezada no governo Bolsonaro, em detrimento da classe trabalhadora, o governo limita o reajuste a 2, 5 %, enquadrando-o no novo teto de gastos ou arcabouço fiscal, que prevê despesas públicas no limite 0,6 % a 2,5 %, bem assim de 70% do que for arrecadado. Isso implicará na imensa redução, nos próximos anos, do poder de compra da classe trabalhadora e dos beneficiários da previdência e da seguridade social, cujos rendimentos estão atrelados, ainda e para a sorte da população, ao salário mínimo.

Demais disso, o governo, para escamotear e suavizar essa sua deletéria postura, sinalizou para cortes na previdência dos militares, tal como acontece com a chamada “morte ficta”, bem assim aumento do teto de isenção do IR para R$ 5 mil e tributação progressiva de quem ganha a partir de R$ 50 mil. Também limitou as despesas com emendas parlamentares nos moldes do arcabouço fiscal. Ocorre que tais medidas ficarão, pasmem, para o ano que vem, quando, por ser ano eleitoral, não se sabe o que, realmente, acontecerá. Os prejuízos imediatos, assim, a partir desse ano, já recairão sobre os menos favorecidos e a classe trabalhadora. Nesse diapasão, é preciso lembrar, ainda, o seguinte: foi estabelecido o regime de urgência para esses projetos de lei, para que fossem aprovados – como o foram, a gosto do governo, da direita e do mercado – a “toque de caixa”, no apagar das luzes, até o fim desse ano que passou; eles foram, pasmem, desidratados, inclusive no que toca às restrições ao BPC, pela oposição, que quer pousar de boazinha, afirmando, o que não é, por óbvio, do seu feitio, que não se deve sacrificar os mais pobres.  

A questão relativa a suavização ou eliminação do déficit primário imposta pelos governos e pelo mercado, notadamente nos países em desenvolvimento, não deveria merecer, ao menos no Brasil, tanto relevo assim. É sabido que economias desenvolvidas também, necessariamente, fazem déficit primário. É que os investimentos estatais que o geram levam a economia a se movimentar e o PIB a crescer. Ele, o déficit primário, na contramão do que apregoa o mercado, é importante sim para o crescimento econômico e para o aumento do IDH dos países. No Brasil em especial, ao contrário das teses do mercado, ele não existe ou pelo menos não deveria existir, como adiante demonstrado.

Consoante, ensina o professor doutor Ladislau Dowbor – que valiosas contribuições, inclusive em debates levados a cabo em audiências públicas no Congresso Nacional, tem prestado à análise do problema da dívida pública e do déficit fiscal -, que não deveria haver déficit público no Brasil se fossem eliminados 4 drenos: a) o Governo Federal gasta exorbitantes valores com os juros da dívida pública (no ano passado, aproximadamente oitocentos bilhões de reais), que vêm sofrendo aumentos nunca antes visto nas economias de outros países (e não são considerados no recente arcabouço ou teto de gastos do governo Lula), seja para conter a “suposta” inflação de demanda”(que não existe, pois, como sabido, a inflação em nosso país é de custo da produção), seja porque o governo, ao fazer gastos e investimentos, inclusive com infraestrutura, saúde, educação etc, “desvalorizaria” os títulos da dívida pública, á vista da sensação hipotética e psicológica de que o Estado não honraria os seus compromissos; b) é enorme o número de incentivos fiscais e isenções de tributos proporcionados às empresas pelo Governo Federal, inclusive a desoneração da folha de pagamento; c) a existência de paraísos fiscais, em que as empresas colocam a sua contabilidade em países em que a tributação é inexistente ou mínima; d) deveria, ao contrário da que foi aprovada no parlamento, ser feita uma reforma tributária em que a tributação seja progressiva, cobrando mais dos que ganham mais, o que inclui grandes fortunas, lucros e dividendos, IR etc.

Desse modo, vê-se que, suprimidos esses drenos, não haveria déficit fiscal no país, ou o teria de forma razoável, sendo certo que, segundo o citado professor, a renda média do brasileiro, em hipóteses tais, poderia chegar a R$ 11 mil. Ocorre que, desde o governo FHC, passando pelos governos do PT, tal iniciativa não pôde ser adotada devido às fortes pressões do mercado, dos governos dele lacaios e do Congresso Nacional.  

O que não se pode admitir é que, a pretexto de combater esse fantasioso déficit fiscal, se sacrifiquem os mais pobres e a classe média, cujo percentual de gastos é mínimo em relação àqueles outros acima mencionados. É o que ocorre com o corte de despesas com o BPC, salário mínimo etc.

Ainda nesse diapasão, não se pode perder de vista as despesas com emendas parlamentares, cujos valores chegam a cinquenta bilhões de reais, em meio a essas sórdidas negociatas entre o Governo Federal e o Congresso Nacional, no chamado, não menos sórdido, presidencialismo de coalisão, expressão cunhada pelo cientista político Sergio Abranches. Primeiramente, a ministra Rosa Weber suspendeu o famigerado orçamento secreto, o que não foi respeitado pelo parlamento. Depois, o ministro Flavio Dino suspendeu a emendas impositivas e estabeleceu regras a serem seguidas pelo Congresso Nacional, visando a transparência e rastreabilidade desses aportes. Recentemente, esse mesmo ministro suspendeu as emendas de comissão, no valor de quatro bilhões de reais, à vista de descumprimento pelo parlamento, inclusive considerando manobras espúrias do presidente da Câmara Arthur Lira para favorecer o seu Estado (Alagoas). Ocorre que, em meio a um conúbio espúrio entre o Congresso, o governo e o STF, as concessões são feitas de parte a parte, tudo terminado em pizza.

Mais uma vez cabe a advertência: diante de todas essas cifras astronômicas de milhões e bilhões, que são movimentadas de forma espúria e imoral, atendendo interesses do mercado e dos políticos, é fato de que ilegítimo, imoral e vil penalizar os menos favorecidos, cujos gastos em seu favor são irrisórios no orçamento se comparados a tudo o mais feito em benefício das elites dominantes.

É importante agora, todavia, fazer o seguinte corte epistemológico no que toca a essas desastrosas medidas de corte de gastos do governo Lula, inclusive no que tange ao BPC e ao salário mínimo, aliadas às promessas de campanha incumpridas por ele, especificamente quanto à revogação da reforma trabalhista de Temer e Bolsonaro, a reestatização da Eletrobrás, a revogação da autonomia do Banco Central, dentre outras: por mais que o presidente Lula venha se equivocando, melhor com ele do que sem ele na eleição de 2026, já que os candidatos da extrema direita, cujos membros, nas pesquisas, perdem para ele, irão, se vencedores, fazer um governo de terra arrasada, favorecendo ilimitadamente o mercado e sacrificando os mais pobres e a classe média, a par de serem de viés autocráticos.

Por fim, sem desmerecer os acertos do governo Lula 3, tais como controle da inflação, crescimento do PIB, queda no desemprego, aumento do poder aquisitivo da moeda e do consumo das famílias, aspiramos que ele, no período que falta para ultimar o seu mandato, procure, como negociador nato que é, não ceder aos deletérios anseios do mercado em promover mais cortes de gastos para a população carente, inclusive a já ventilada, pelas elites dominantes, extinção dos pisos constitucionais da saúde e da educação.

Gustavo Hasselmann

Gustavo Hasselmann

Procurador do município de Salvador/BA. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Processo Civil e Direito Administrativo. Membro do IAB e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *