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1. Introdução
O presente texto visa criticar duramente duas decisões do STF não por não ter acolhido as teses que considero constitucionalmente e processualmente adequadas, mas pela postura (data maxima venia) teratológica de ter julgado improcedente uma ação (ADIn 6.551) e não conhecido de um recurso (RE 845.779/SC) por dizer não concordar com fundamentos fictícios, sem enfrentar os fundamentos reais (ADIn 6.551) e por afirmar que as peças processuais da parte não teriam feito o que, de fato, objetivamente, fizeram (RE 845.779/SC).
Embora a péssima fundamentação das decisões judiciais seja uma chaga do Judiciário em geral, no sentido de se rejeitarem ações, defesas ou recursos sem se enfrentar as causas de pedir das partes, na lógica da famosa jurisprudência nefasta pela qual “o Juízo não é obrigado a responder todos os fundamentos das partes, bastando que decida segundo seu livre convencimento motivado” (sic, minimamente parafraseado – curiosíssima é decisão do início do século que diz que “juiz não é perito para responder quesitos”), o que ocorreu nessas duas decisões é algo que nunca vi em quase vinte anos de advocacia. A saber, enfrentar e rejeitar uma causa de pedir fictícia, sem enfrentar a causa de pedir real, no caso da ADIn 6551. O que se viu no RE 845.779/SC já é nefastamente comum: não se conhecer de recurso por acusa-lo de não ter feito o que de fato fez ou por acusa-lo de ter feito o que de fato não fez, enquadrando-se aqui algo similar à primeira hipótese.
Será explicitada, ainda, a tese de existência de verdadeiro Estado de coisas inconstitucional da fundamentação das decisões judiciais no Brasil e a necessidade de sua superação em termos de legitimidade democrático-constitucional do Judiciário (item 5 e conclusão).
2. ADIn 6551. Rejeição de causa de pedir fictícia, sem enfrentar a causa de pedir real
No julgamento da ADIn – Ação Direta de Inconstitucional 6551, que tive a honra de mover pelo PDT – Partido Democrático Trabalhista, por 9×2, o STF validou norma de lei estadual paulista que só permite que concorra à chefia do Ministério Público Estadual (encabeçando a Procuradoria-Geral de Justiça) integrantes da Procuradoria de Justiça, ou seja, a segunda instância do Ministério Público. A Corte negou a existência de inconstitucionalidade, por violação ao princípio da igualdade e da não-discriminação a integrantes da Promotoria de Justiça, ou seja, a primeira instância do Ministério Público.
Para afastar a alegação de discriminação direta (intencional) por classe profissional, aduziu que a alegada (e incomprovada) finalidade de promover somente pessoas com maior experiência possam exercer a chefia do Ministério Público. Não enfrentou a causa de pedir da ação pela qual esse alegado fim estatal não é promovido pela discriminação legal em questão, já que há promotores e promotoras de 1º grau com mais experiência que procuradores e procuradoras de 2º grau por ser impossível faticamente promover, tanto por merecimento quanto por antiguidade, todas as pessoas que fazem jus a tanto, por limitações orçamentárias e mesmo numéricas (total de cargos da procuradoria). Também não enfrentou a causa de pedir acerca do princípio da proporcionalidade, em seu subprincípio da necessidade, sobre haver meio menos gravoso objetivamente aferível para atingir esse fim, se esse for seu intuito: exigir idade mínima e tempo mínimo de carreira para tanto. Reiteradas essas matérias em embargos declaratórios, a Corte manteve-se silente sobre esses temas, algo que me parece inédito no controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, onde nunca vi a Corte não enfrentar as causas de pedir das partes (concorde-se ou não com a decisão).
Mas o ponto desse artigo é outro, pois fui contratado para propor essa ação principalmente pelo fundamento da discriminação indireta por gênero às mulheres do Ministério Público Paulista, donde a ação requereu a declaração de inconstitucionalidade também por esse fundamento, pelas razões que explicarei para demonstrar o quão surreal foi a postura da douta maioria do STF acerca do tema.
Na ação, a partir de estudos do CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público, foi demonstrado que há muito mais mulheres promotoras de primeira instância do que procuradoras de segunda instância no Ministério Público Paulista. Então, não permitir que pessoas que integram a Promotoria de Justiça de 1ª instância concorrerem ao cargo de procurador(a)-geral de justiça tem um impacto desproporcional sobre as mulheres do Ministério Público Paulista, já que elas estão, em sua maioria, na Promotoria. E é mais do que basilar que a discriminação indireta é aquela não-intencional e não-expressa na letra da lei, mas que é tão inconstitucional quanto a discriminação direta (intencional e expressa) pelo impacto desproporcional em determinado grupo social (ainda mais quando já marginalizado socialmente). A jurisprudência do STF tem diversos precedentes em que reconhece a inconstitucionalidade de leis quando conclui que elas geram um efeito discriminatório desproporcional em determinado grupo social, com precedentes que o fazem em defesa dos direitos das mulheres em geral.
Ao analisar a questão, o relator, ministro Dias Toffoli, seguido pela maioria no julgamento virtual, aduziu que a declaração de inconstitucionalidade da norma estadual em questão não gerará o aumento das mulheres procuradoras de justiça (ou seja, mulheres na 2ª instância do MP Paulista), sendo esta a única razão pela qual não declarou a inconstitucionalidade da norma por discriminação indireta às mulheres do Ministério Público de São Paulo. O voto concordante do ministro Alexandre de Moraes se focou apenas na autonomia dos Estados para disciplinar o tema, sendo que o ministro Toffoli decidiu mudar de opinião sobre cinco decisões de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade (“cinco ADIns”) em que o STF afirmou que não haveria tal autonomia, tanto pelo princípio da simetria quanto pela arbitrariedade da discriminação em questão (ignorando os critérios dogmáticos para superação de precedentes afirmados pela Corte na decisão que se recusou a reanalisar a constitucionalidade da “Lei da Ficha Limpa”, na ADIn 6630). Mas foquemos no tema da discriminação indireta por gênero.
Nos embargos declaratórios apresentados, pontuou-se a omissão sobre a causa de pedir real da petição inicial, citada enfaticamente nas duas sustentações orais enviadas ao plenário virtual, explicando-se que se concorda plenamente que a declaração de inconstitucionalidade da discriminação em questão não aumentará o número de mulheres integrantes da Procuradoria-Geral de Justiça, mas a questão é que não foi isso que a petição inicial e as sustentações orais alegaram! Alegou-se que a proibição de integrantes da Promotoria de 1ª instância poderem concorrer à chefia da instituição gera um impacto desproporcional às mulheres do Ministério Público Paulista, por estarem em sua grande maioria nela, sem em nenhum momento se ter alegado que a declaração da inconstitucionalidade de tal restrição geraria um “aumento” do número de mulheres procuradoras de 2ª instância da instituição. Por isso que os embargos de declaração pontuaram que a decisão de mérito rejeitou uma causa de pedir fictícia, incorrendo em omissão sobre a causa de pedir real da ação. Mas o acórdão dos embargos, sintetizando a causa de pedir real, descrita nos parágrafos 11 a 15 e respectivas transcrições da ação e da última sustentação oral (que transcrevi e anexei em petição protocolada), negou que tenha havido omissão pela mera transcrição da fundamentação que rejeitou a causa de pedir fictícia que a Corte criou (pois em nenhum momento sequer insinuada pela ação e pelas sustentações orais).
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Paulo Iotti
Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor de Direito.