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1 Os novos heróis (ou vilões) do mundo jurídico
Vivemos tempos desafiadores. Decisões e atuações de agentes políticos do sistema judiciário têm retirado a segurança jurídica ao invés de garanti-la. Embora a busca por Justiça seja natural no meio jurídico, a ânsia por promovê-la a despeito das normas legais vem promovendo o caos. Servidores, em regra concursados, imaginam que são mais sábios e morais que os 81 Senadores e 513 Deputados e sentem-se à vontade para ignorar as leis ou criarem novas sem que tenham a legitimidade que apenas as urnas podem providenciar.
Agentes públicos, munidos de “princípios-coringa” e belos discursos, agem arbitrariamente em uma nova versão do antigo e nocivo patrimonialismo. A questão é que as boas intenções que eles carregam não concedem alvará para desrespeitar a Constituição. Atualmente, muitos agem como se ela pudesse ser adaptada aos seus favoritismos ideológicos, identitários, religiosos ou políticos. O efeito disso é uma terra sem lei, na qual cada juiz, membro do MP ou delegado faz o que bem entende. Na qualidade de professor de Direito Constitucional entendo que é preciso um freio de arrumação e, mais uma vez, o combate a esta nova versão de patrimonialismo, tão nociva quanto as já reconhecidas.
2 Alguns casos que merecem reflexão
2.1 Apagando a ciência (Biologia)
Uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal do Acre teve como pedido a extinção do marcador “sexo” nos documentos pessoais, a unificação do nome social e do nome civil no RG, bem como o pagamento de um milhão de reais de indenização à “população trans” como danos morais. Desde quando mencionar o sexo de uma pessoa ofende alguém? Mesmo assim um agente público não eleito quis, solitariamente, impor sua visão de mundo a mais de 200 milhões de brasileiros e moveu a máquina judicial, com dinheiro do contribuinte, para isso. A acertada extinção da ação lembrou que definir os parâmetros de registros públicos é assunto do Legislativo. Sexo, aliás, é um dado da realidade, um conceito da Biologia, não da ideologia.
2.2 Julgando os casos de Gaza
Uma juíza federal deu azo a um pedido absurdo feito por uma ONG da Bélgica, desprovida de credibilidade, e presidida por um ex-terrorista do Hezbolah. A decisão violou direitos de um turista israelense e teve lamentável repercussão internacional, com consideráveis danos à imagem do país e ao sustento de famílias e empresas baianas que vivem do turismo. O episódio, inaceitável sob qualquer perspectiva dos direitos fundamentais e das regras de direito internacional, talvez tenha sido influenciado pelo bom propósito de defender direitos humanos, mas na prática os violou, trazendo múltiplos prejuízos.
2.3 Violando o artigo 4º da CF
Uma diplomata brasileira fez manifestações públicas contra Israel, altamente sectárias, algo totalmente inapropriado para seu cargo. Entende-se que uma brasileira de origem árabe “torça” pelos palestinos, mas é inaceitável que não compreenda as limitações e responsabilidades do cargo que exerce. O incidente gerou desconforto internacional e uma convocação do Ministro das Relações Exteriores ao Senado a respeito da suspeita de antissemitismo.
2.4 Praticando a revanche e incentivando o ódio racial
Alguns juízes e membros do Ministério Público fazem manifestações defendendo a legalização da hostilização de brancos tão somente por serem brancos. Isso deixa metade da população brasileira fora da proteção de um crime contra a dignidade da pessoa humana, em assustadora perversão do princípio da isonomia. Querem implantar uma tese identitária sem amparo na Constituição Federal e que viola tratados internacionais (ver Decreto 10.932/22, que promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância), mas está na moda e agrada à mídia e aos radicais que desejam obter licença para ter um racismo para chamar de seu.
2.5 Criminalizando a liberdade de crença
O Ministério Público da Bahia (MP/BA) instaurou um inquérito para apurar um possível ato de racismo religioso cometido pela cantora Claudia Leitte. A cantora substituiu a referência a Yemanjá por “Yeshua”, em alusão a Jesus Cristo, na letra da música “Caranguejo”.
Essa escolha pessoal e artística não expressa qualquer desprezo por outra religião. Apenas reflete a liberdade de culto e o exercício da própria crença. Apagamento seria proibir alguém de cantar Yemanjá, assim como é um apagamento do cristianismo criminalizar quem canta Yoshua. Adaptações na cultura são fenômenos normais e legítimos, e apenas em regimes totalitários, como o Talibã e o ISIS, indivíduos são forçados a professar uma fé que não é a sua. Assim como seria inapropriado exigir que alguém louve a Jesus, é igualmente errado criminalizar a recusa de louvar Yemanjá.
Enquanto a banda toca, o olhar do MP deveria estar preocupado com assuntos mais relevantes para os negros baianos, como a letalidade policial, por exemplo. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 22,8% de todos os casos do País ocorreram na Bahia, totalizando 1.464 casos no mesmo período. Dessas mortes, aproximadamente 1.380 vítimas eram negras, representando 94,76% do total. Qual a causa disso? Qual a solução? Em vez desses temas, tempo e recursos públicos são direcionados para atacar algo protegido por direito fundamental e irrelevante diante do que realmente prejudica os negros daquele Estado.
O povo da Bahia, salvo um ou outro radical identitário, e dentro do sincretismo religioso brasileiro, não está preocupado com isso, mas com sua alarmante fome e pobreza. Em 2021, cerca de 6,9 milhões de baianos (46,5% da população) foram considerados pobres, e 1,79 milhão viviam em extrema pobreza, com rendimentos abaixo de R$ 200,00 por mês. Os 50% mais pobres recebem apenas 13,9% da renda do Estado. A fome atinge uma parcela significativa da população baiana. Em 2022, aproximadamente 1,9 milhão de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar grave. Em paralelo, Salvador registrou uma das piores taxas de violência entre as capitais, incluindo altos índices de homicídios e crimes contra o patrimônio. A taxa de desemprego na Bahia é preocupante, afetando especialmente negros, jovens e mulheres, perpetuando a pobreza e a desigualdade social e racial.
No Brasil, a população negra (pretos e pardos) representa uma parcela significativa entre os mais pobres. Em 2019, dados indicavam que negros constituíam 75% dos 10% mais pobres do país, enquanto brancos representavam 70% dos 10% mais ricos. Na Bahia, que tem uma das maiores proporções de população negra, essa desigualdade é ainda mais pronunciada. Em 2021, aproximadamente 82,6% dos negros baianos viviam abaixo da linha de pobreza.
Porém, grave mesmo é a letra da música “Caranguejo”. Obrigar uma cristã a louvar Yemanjá é mais urgente. Prendam Claudia! Prendam Claudia! Isso vai salvar os pretos da Bahia!
2.6 Resumindo o problema
Apesar da provável boa-fé e da crença de que estão fazendo aquilo que é correto, os agentes públicos não podem esquecer o dever de observar o que preconiza nossa Carta Magna. De boas intenções todos sabem que lugar está cheio. E é o que já estamos vivendo: um inferno, mas jurídico, no qual não existe mais segurança jurídica alguma. Em todos os cantos vemos agentes citarem princípios como “coringas” para imporem suas pautas. No afã de “consertar o mundo” vão além da norma e/ou de suas funções para moldar o mundo conforme suas predileções.
3 Substituindo as normas por militância
Infelizmente, os casos de ativismo tornam-se leading cases comportamentais e estão se multiplicando. Cavalgando suas carteiras funcionais, agentes públicos partem para cruzadas identitárias ou ideológicas e se apropriam do cargo. Ao arrepio da lei, militantes antiaborto dificultam a prática nos casos legais, militantes pró-aborto buscam estender suas hipóteses, anticapitalistas tentam legalizar a invasão de propriedades, favoráveis ao fim da polícia militar hostilizam membros da corporação e contrários à prisão soltam toda espécie de criminosos. Isso não tem como dar certo. Não podem existir cartas “super trunfo” que concedam imunidade em relação à lei. Nessa senda, uma feminista usa o princípio da dignidade humana para defender a morte de seres humanos não nascidos, uma pessoa negra defende haver imunidade para hostilizar brancos a propósito de “reparação histórica”, um agente público gay quer impor a ideologia de gênero criminalizando quem discorda de existirem pessoas com pênis no banheiro ou em competições esportivas femininas, etc. A lei evapora e todos estamos em uma roleta russa de regras aleatórias, ao sabor de milhares de pequenos ditadores, que em seus feudos praticam leis que eles mesmo editam.
4 Neopatrimonialismo e autoritarismo no Direito brasileiro
Fernando Schüler, cientista político e professor do Insper, em artigo, expôs com maestria que parte do País está absorvido por uma cultura autoritária: uma minoria, de dentro da sua bolha, age como se sua visão de mundo fosse dominante, fazendo o que preferem e usando a Constituição como mero pretexto, sem qualquer preocupação com o que realmente nela está escrito.
O fenômeno parece ser uma nova versão do antigo patrimonialismo, que é a prática na qual os agentes públicos tratam o patrimônio público como se fosse privado, misturando interesses pessoais e coletivos. Isso é evidentemente ilegal, imoral e, a depender do caso concreto, pode, entre outras consequências, configurar prevaricação.
* É preciso haver um freio de arrumação na atuação dos agentes públicos. Cumprir a Constituição e as leis é dever indeclinável para todos os cargos e funções públicas. O concurso público não confere aos ocupantes de cargos autoridade além dos limites da lei. Agentes públicos representam o Estado e não a si mesmos, de modo que interesses e preferências pessoais não podem prevalecer.
Nenhum servidor público ou magistrado, por mais bem-intencionado que esteja, tem legitimidade para ir além do que a Carta Magna permite. A autoridade legal e moral do agente público termina junto com os limites legais. Caso o juiz ou autoridade queira impor suas crenças ou preferências sem amparo na lei, estamos diante de arbítrio travestido de justiça.
Juízes, promotores, procuradores, delegados de polícia etc., possuem missões jurídicas, mas não apenas isso. Eles também exercem uma função social, devendo contribuir para que sua instituição seja uma referência moral e um fator de paz, confiança e segurança para a sociedade. Há que haver responsabilidade com as instituições e com o País.
Nada colabora com os direitos humanos nem com a credibilidade das instituições quando agentes públicos usam sua autoridade com ativismo ou sob captura ideológica.
5 A autocontenção necessária
É preciso retomar o respeito pelo Poder Legislativo e pelo processo legislativo. Antonin Scalia, Juiz da Suprema Corte dos EUA, defendeu o Originalismo, algo a ser considerado para corrigir a anomia atual. Essa doutrina baseia-se no princípio da Separação dos Poderes para limitar a apreciação de casos pelo Poder Judiciário, em deferência ao Executivo e ao Legislativo.
Scalia afirmou em várias ocasiões que o Judiciário deve agir com autocontenção. Em entrevista à revista Justiça & Cidadania quando veio ao Brasil, em 2011, ele ressaltou: “Para manter uma democracia, o trabalho do juiz é dar à lei uma justa interpretação, ser fiel ao que o povo escolheu, e não ao que o magistrado pensa ser a melhor ideia”. A interpretação constitucional, para Scalia, não pode funcionar como um coringa para qualquer problema. Nessa linha, o poder que um membro do Ministério Público ou juiz possui não pode ser usado para fazer ativismo ou militância política ou identitária.
O professor Leonardo Corrêa, LLM pela Universidade da Pennsylvania, em artigo na LEXUM, alerta que o Originalismo “não busca resgatar intenções ocultas dos legisladores, mas preservar o significado claro e acessível do texto legal”. O erro dos autores que o criticam é subverter suas ideias: dizem que é uma doutrina inflexível, incapaz de acompanhar mudanças sociais. Contudo, o Originalismo não se opõe à evolução normativa, exige que mudanças ocorram por meios legítimos, como emendas constitucionais, e não por interpretações criativas do Judiciário. Quem ataca essa doutrina costuma ter desconhecimento ou má-fé intelectual, em geral, valendo-se da falácia do espantalho. Fazem isso porque a ideia veda o ativismo e os abusos aqui explicitados.
Como disse Leonardo Corrêa, movidos por boas intenções ou por vaidade intelectual, distorcem o texto constitucional, convencidos de que sua interpretação é a solução definitiva. Em suas palavras, “a pretensão de modificar o significado da Constituição por meio de cambalhotas interpretativas não soluciona dilemas sociais – apenas mina a segurança jurídica e enfraquece a democracia”. E completa: “Esse não é um desvio exclusivo de juízes, mas uma tentação que permeia todo o universo jurídico. Muitos operadores do direito – advogados, promotores, ministros e acadêmicos – se seduzem pelo poder de ‘atualizar’ o texto constitucional conforme suas convicções pessoais, negligenciando os limites impostos pelo Estado de Direito. Essa soberba interpretativa transforma a Constituição em um instrumento maleável, adaptado ao gosto do intérprete, e não em um pacto sólido que garante direitos e deveres”.
Assim como o professor, alerto que “Devemos desconfiar da soberba que se espalha entre os operadores do direito, que, em nome de ideais abstratos, acabam por subverter a Constituição. O Originalismo, longe de ser um obstáculo ao progresso, é a garantia de que mudanças ocorram pelos caminhos legítimos, respeitando a ordem democrática e o ideal republicano de que o poder emana do povo e não de interpretações criativas”.
6. Ativismo e democracia
O Brasil já não tem problemas apenas com o ativismo judicial, mas também com seu equivalente em outros cargos. Hoje, vivemos esse ativismo disseminado pelo país afora.
Rodrigo da Cunha Lima Freire, em artigo no Migalhas, com razão, disse que “O ativismo judicial é também uma fonte de insegurança jurídica, especialmente de imprevisibilidade e de quebra de confiança na ordem jurídica. Juiz não salva a democracia, não faz justiça social, nem combate à impunidade. Estas podem ser consequências de sua atuação, nos limites da ordem natural e constitucional, não o objeto dessa atuação.”
A solução para essa nova pandemia é que agentes políticos que hoje atuam no Judiciário e no Ministério Público tenham a coragem de abdicar da segurança do cargo e se submetam às urnas. Então, caso vençam as eleições, logrem convencer os pares do Legislativo a respeito das emendas constitucionais e leis que propuserem. Só pode fazer leis quem tem medo da próxima eleição. Repetindo citação feita no artigo de Lima Freire, que se reportou a Georges Abboud: “O ativismo judicial é um pernicioso atalho, que se alija do caminho democrático do dissenso e da deliberação política.”
Fazer o que bem entende citando os “princípios-coringa”, aqueles que se amoldam a qualquer decisão, é a pior das ditaduras, já que disfarçada de aplicação da Justiça.
Randy Barnett critica fortemente o “ativismo judicial” e o que ele vê como o uso de interpretações que inventam novos direitos ou expandem poderes governamentais além dos limites constitucionais. Esse problema está escalando com capilaridade assustadora, na qual membros da magistratura e do Ministério Público entendem-se legitimados a implantar suas revoluções particulares, cada qual nas áreas de sua predileção. Tudo com boas intenções, mas desprezando a separação dos Poderes e os limites dos respectivos cargos.
7. O triste fim de um país com jedis e siths
Poderia citar infinitos exemplos e teorias que justificam a adoção do Originalismo para evitar este novo modelo de patrimonialismo no Direito, mas me limitarei ao épico Star Wars. Esta alegoria não é nova, pois já foi objeto de artigo e livro de Cass Sunstein, professor de Harvard (“Como ‘Star Wars’ Ilumina o Direito Constitucional” e “O Mundo Segundo Star Wars”). Lá, Anakin Skywalker, na ânsia de fazer aquilo que entendia como certo, contribuiu para a instauração de um Império cruel. Hoje, muitos agentes políticos, crendo que estão fazendo o melhor para a República, cruzam a linha entre Jedis e Siths, figuras míticas próprias de sagas interplanetárias, mas muito inconvenientes em um país que se pretenda confiável.
O complexo de se achar um Jedi transforma servidores públicos em Siths, com ações que mais prejudicam o sistema do que o auxiliam, fragilizando a segurança jurídica e a democracia.
É preciso resistir à tentação de usar o poder da carteira além do que diz a Constituição real e não a sua versão viciada, que muitos têm em suas mentes. A Constituição não é o que gostaríamos que ela fosse, mas aquilo que nela está escrito. Sem essa submissão, o desejo de salvar o mundo irremediavelmente levará o agente público para “o lado negro da força”. Essa liberdade interpretativa, somada ao complexo de Jedi, mina a esperança de um país com segurança jurídica e que mereça ser classificado como uma democracia e um Estado de Direito.
William Douglas
Professor de Direito Constitucional e escritor.