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“(…) da mesma forma leis e instituições (…) devem ser reformadas ou abolidas se são injustas.”1 John Rawls
“La tarea del jurista (…) consiste en encontrar decisiones justas de casos concretos.”2
I – O racionalismo crítico de Sir Karl Popper
Este estudo foi inspirado na “simplicidade do realismo popperiano do senso comum”.3
Os argumentos, dos quais lanço mão, vêm do Direito Comparado e decorrem das semelhanças entre as sociedades empresárias e as fundações de direito privado sob os aspectos formal, estrutural, funcional, patrimonial, substancial e em relação ao Poder Público e da diferença entre ambas quanto ao escopo e à destinação de lucros.
As conclusões, sintetizadas ao final, são simples e sensatas, lastreadas em evidências, fruto de paciente observação, cuidadosa análise e ponderada crítica: a uma, porque é de senso comum que as fundações privadas em estado de crise econômico-financeira grave, se não “socorridas”4 desaparecerão com prejuízos às comunidades às quais servem, sobrelevando notar que a transferência do seu patrimônio, se houver, o que dificilmente ocorrerá, para outra instituição filantrópica (CC, arts. 63 e 69), não minimizará os impactos negativos de sua liquidação; a duas, porque se impõem a quem olha, a um só tempo, o que diz a (letra fria da) lei e os (desastrosos) efeitos imediatos e mediatos das decisões que indeferem o processamento de recuperação judicial de fundações privadas.
O que me move não é dissertar sobre o sentido e o alcance do art. 1º da lei 11.101, de 2005, LFRE – Lei de Falências e Recuperação de Empresas, à luz dos princípios e regras de hermenêutica jurídica; não é testar a hipótese da (possível) insuficiência do método/raciocínio lógico dedutivo5 na descoberta da mens legis; não é empreender uma especulação teórica sobre as repercussões próximas e remotas do julgado, que impeça as fundações privadas de se reorganizarem e se reerguerem, mas explorar o tema com uma visão factual, consequencialista, isto é, privilegiá-lo sob um enfoque empírico, 6ao invés da exegese literal do art. 1º da LFRE, para descobrir o “direito justo”.7
O direito é uma ciência cultural e histórica, uma ciência normativa, porque fundada em valores; não obstante, como as normas jurídicas são elaboradas, votadas, sancionadas, promulgadas e publicadas para reger atos e fatos sociais, políticos, econômicos, culturais, há aspectos e elementos que devem ser, necessariamente, considerados, porquanto essas normas, quando aplicadas, vão se transformar de “direito abstrato” (Liebman) em “direito concreto”.
II – A obsolescência8 do art. 1º da LFRE
A substituição, empreendida pelo CC/02, das figuras do comerciante (CCom, art. 1º) e da sociedade comercial (CCom, art. 287), clássicas desde o Código de Comércio francês de 1807 (CCom.fr, arts. 1.er. e 19), pelas do empresário (CC, art. 966) e da sociedade empresária (CC, art. 982) e da mercancia (CCom, art. 4º) e dos atos de comércio (Reg. nº 737, de 1850, art. 19, n 1 a 4, e CCom.fr, art.1.er) pela atividade empresarial e a teoria da empresa; o desaparecimento da sociedade civil (CC de 1916, art. 16, I), a criação da sociedade simples (CC, art. 997) e a acirrada polêmica, aqui e alhures, ontem e hoje, sobre os conceitos jurídicos de sociedade empresária, ou, simplesmente empresa, e de sociedade simples repercutiram no Projeto de CC – mensagem 160, de 10/06/75 -, no CC em vigor e na LFRE.
Embora revista em 2020, a LFRE é antiquada no que tange ao direito de todas as pessoas físicas e jurídicas serem legitimadas a recorrer, quando se mostrar imperativo, à recuperação judicial ou extrajudicial, visando:
A LFRE “parou no tempo” quanto ao pressuposto subjetivo da recuperação judicial devido ao arraigado conservadorismo dos operadores do direito: conservadorismo, que tem início no curso de bacharelado, cujas raízes datam do século XIX, quando se ensinava – e continua a ser ensinado até hoje – que o direito é um conjunto sistemático de regras na esteira da concepção kelseniana, segundo o qual pouco importa se as normas são justas ou injustas, porém se são válidas ou inválidas, isto é, o que sempre deve prevalecer é o “direito posto”, o direito positivo; conservadorismo, que prossegue no exercício do magistério, da judicatura, do Ministério Público e da advocacia, porquanto as questões formais e a teoria estrutural do direito (o direito limita-se a permitir e a proibir) prevalecem sobre as questões de fundo, a teoria funcional do direito (o direito se manifesta também através de sanções positivas, ou sanções premiais de incentivos, e sanções negativas na acepção de Norberto Bobbio)9 e o realismo-pragmático (as decisões judiciais devem mirar os melhores resultados)10; conservadorismo, que culmina na elaboração de leis, repletas de “jabuticabas”, inseridas na undécima hora por um Poder Legislativo despreparado para o exercício do seu relevante mister e sujeito a grupos de pressão, o que talvez explique a crítica de Richard A. Posner: “A redação das leis é frequentemente um processo apressado e pouco cuidadoso.”11
O Poder Executivo, através de projeto de lei, e o Legislativo, por iniciativa própria, ou na qualidade de responsável pela tramitação de projetos do Executivo, ao invés de mudarem, radicalmente, a redação do art. 1º da LFRE, criaram duas exceções – gloriosas exceções e não exceções odiosas (as exceções são, em regra, odiosas) -, para reparar, timidamente, o vácuo do atual diploma falimentar.
A lei 14.112/20 incluiu o § 13, no art. 6º, da LFRE, para permitir que cooperativas médicas operadoras de planos de saúde possam recuperar-se judicialmente, havendo o plenário do STF julgado, por 6 votos a favor e 5 contra, a constitucionalidade na tramitação do processo legislativo que deu origem à lei de 2020.
A mesma lei 14.112/20 adicionou, ao art. 48, da LFRE, os §§ 2º a 5º, que regulam a forma de comprovação do exercício de atividade rural, e o art. 70-A, que legitima o produtor rural a “apresentar plano especial de recuperação judicial” nos termos da Seção V, do capítulo III, (arts. 70 a 72), tendo o STJ estabelecido, no Tema Repetitivo 1145, que, “ao produtor rural, que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos, é facultado requerer recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento de formalizar o pedido, independentemente de registro.”
Logo após, para atender aos consumidores, pessoas naturais, endividados, a lei 14.181/21 (lei do superendividamento) alterou o CDC, que passou a dispor sobre o “processo de repactuação de dívidas de consumidores pessoas naturais” (art. 104-A) e o “processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação de dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório” (art.104-B) com a finalidade de auxiliá-los na composição de suas dívidas.
III. Pressuposto subjetivo da recuperação judicial no direito comparado
À luz de modernas leis de reorganização econômico-financeira de pessoas naturais e jurídicas em estado de pré-insolvência, o seu arcaísmo12 salta aos olhos: é chocante compará-la à lei de falências da Espanha, título I – “A declaração de falência”, capítulo I – “Os pressupostos da falência”, “Art. 1. “Pressuposto subjetivo”, que estatui em uma oração clara, simples, infensa a questionamentos: “A declaração de falência abrange qualquer devedor, seja pessoa natural ou jurídica.” (art. 1º, 1.)
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Jorge Lobo
Jorge Lobo, sócio titular do Jorge Lobo Advogados, é ex-Procurador de Justiça (MPRJ), Doutor e Livre Docente em Direito Empresarial, autor de 10 livros, especialista em soluções jurídicas estratégica