É possível retomarmos à normalidade constitucional?   Migalhas
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É possível retomarmos à normalidade constitucional? – Migalhas

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Brilhante o artigo do professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, um dos maiores constitucionalistas vivos, no mundo, publicado sobre o estranho momento constitucional que vivemos.

É um daqueles textos que lemos e pensamos: Por que não fui eu que o escrevi? Simples e erudito ao mesmo tempo, trata de um tema extremamente complexo com uma clareza que permite sua compreensão a uma criança de 6 anos de idade. Cientificamente elegante. O que denota o gênio de quem o escreveu.

Tomaremos a liberdade, a audácia, de discordar do professor em dois aspectos do texto, o que, em absoluto, reduzem sua importância. Ocorre que o autor parte da premissa de que, em algum momento, tivemos situações anômalas de ameaça à democracia e a própria pandemia de Covid-19 que poderiam, em alguma medida, ter justificado atos de exceção. Citamos abaixo entrecho do artigo:

“A última década da vida brasileira foi, sem dúvida, marcada por problemas graves. Houve uma pandemia, houve ameaças às Instituições Democráticas. Hoje, porém, não mais existe a pandemia nem ameaças às instituições democráticas.”

Em primeiro lugar, temos que nos perguntar se é toda e qualquer crise que justifica a ruptura do Estado Constitucional?! Particularmente, entendemos que não. Permitir-se a violação da norma jurídica por conta de uma crise (externa ou interna) é algo que somente deveria acontecer em casos excepcionalíssimos e gravíssimos, como, por exemplo, numa guerra, no sentido estrito do termo.

Não basta falarmos que estamos numa situação excepcional. O Direito existe, na realidade, para lidar com situações de exceção à regra. A regra é a pessoa cumprir os contratos, a regra é a pessoa pagar seus débitos em dia, a regra é a pessoa não matar outras nem vender substâncias entorpecentes, dentre inúmeros ilícitos que poderíamos aqui descrever.

E, mesmo assim, para as situações realmente anômalas, a própria CF/88, tão vilipendiada, apresenta soluções para o enfrentamento destas.

Não discutiremos aqui a questão da crise de saúde pública que afetou o Brasil (e o mundo) a partir do ano de 2020, até mesmo porque nossa formação jurídica não nos dá competência para fazê-lo. Não obstante, o que mais vimos com a Covid-19 foi um número considerável de juristas, juízes, desembargadores e advogados que acreditavam, realmente, ter competência técnica para contestar médicos e pesquisadores, alguns deles, inclusive, vencedores do Prêmio Nobel de Medicina.

Vamos agora a uma pequena crítica ao texto do professor Manoel. Qual foi a ameaça à democracia que o Brasil sofreu na última década? Uma ameaça tem que ser materializada por algum ato. No governo anterior ao vigente, apesar da narrativa ser em contrário, o fato é que não tivemos um único elemento concreto de ameaça à ordem democrática e, se houve, não veio do Executivo.

Não adianta falarmos que é um consenso e que todo mundo sabe que houve. Isso não funciona. Se estamos nos propondo a dialogar, através desse texto, com um cientista do Direito é necessário que alguém que afirme algo prove o que está dizendo. Não se chega a uma prova pública de mestrado ou doutorado com afirmações genéricas como: é assim porque todo mundo sabe que é, e se você discorda, automaticamente, você é um antidemocrata.

É por essa razão que trabalhos científicos, mormente dissertações (mestrado) e teses (doutoramento) são permeadas de citações e notas de rodapé. Por outra, o axioma, a verdade autoevidente e de conhecimento público não é bastante para validar um ponto. Então se alguém diz que houve um ataque à democracia, nos últimos 10 anos, esta mesma pessoa, por mais qualificada academicamente que o seja, tem a obrigação de dizer/explicar: quando, como, por que e com que meios?

Como chegamos a este Estado de coisas?

Pacientes, normalmente obesos-mórbidos, que serão submetidos a cirurgias bariátricas, têm que passar, como regra, por algumas sessões de terapia. Se a pessoa simplesmente emagrece 100 quilogramas através de um procedimento médico, sem compreender o que a levou àquela condição, existe uma grande possibilidade de que volte a ganhar peso.

Este é o caso que o Brasil se encontra. Não adianta – apenas – reconhecermos o estado de anomia/anomalia constitucional que vivemos; tão importante quanto esse reconhecimento, é entendermos o que nos levou a isso. Se não o fizermos, em algum momento de nossa história reviveremos o pesadelo atual.

O Brasil, neste momento, é o paciente obeso-mórbido. O não entendimento dos porquês fará com que, ainda que resolvamos a crise atual, nós a viveremos de novo, e de novo, e de novo, num loop infinito.

Particularmente, vemos o próprio meio jurídico brasileiro como parte do problema que jogou o Brasil neste abismo, onde a norma – simplesmente – não vale mais, prevalecendo a vontade juristrocrática de alguns.

A norma jurídica e o jurista – a interpretação livre da lei. Exemplos concretos.

Lembram do período do 5º ou 6º ano do ginásio, quando nossas professoras pediam que fizéssemos uma redação com “tema livre”. É mais ou menos assim que juristas e magistrados brasileiros, em todos os níveis, interpretam a lei.

Pior, muitas vezes têm imenso prazer em descobrir algo que nunca sequer constou da norma. Diversos autores dizem, é isso virou quase um clichê em nossos manuais de exegese jurídica, que a interpretação gramatical é a pior forma possível, e mais burra também, de interpretação. Como se a norma fosse uma espécie de código secreto, acessível apenas aos alquimistas iniciados. Vamos abaixo aos exemplos:

Impenhorabilidade de salários inferiores a 50 salários-mínimos

O art. 833, parágrafo 2º do CPC, estabelece que verba salarial inferiores a 50 vezes o salário mínimo vigente são absolutamente impenhoráveis, salvo para exceções como verbas trabalhistas devidas ou débitos alimentares estrito senso.

Não obstante, centenas são os casos, tanto nas Cortes Estaduais, quanto no STJ, de decisões que determinam penhoras de salários muito inferiores àquele piso.

Custas judiciais, cobradas de forma inconstitucional, no Judiciário de São Paulo, dentre outras unidades da Federação

Em São Paulo, falamos do Estado onde se concentra 99% da nossa advocacia, as custas judiciais incidem em porcentual sobre o valor da causa. 1,5% para a distribuição e, inacreditáveis, 4% para a interposição de um recurso de apelação.

Ocorre que as custas judiciais, por força tanto do CTN, quanto da CF/88, por pertencer ao gênero “taxa” não pode ter a mesma base de cálculo dos demais impostos. Seria equivalente a cobrarmos uma tarifa de pedágio de R$ 1,00 para um veículo popular e outra de R$ 100,00 para um veículo de luxo.

Advogamos há quase 30 anos, ininterruptos, e o melhor argumento para justificar este descalabro é: “sempre foi assim”. Publicamos um artigo no Migalhas1 onde contestamos esta cobrança e, apesar de toda lógica do ponto exposto, o fato de estarmos há mais de 40 anos cometendo um erro, ao que tudo indica, justifica a nossa permanência neste erro.

Suspensão do passaporte do devedor

Por fim, mas não menos importante (muito ao contrário) temos a questão das tais medidas atípicas do CPC. Ocorre que as tais medidas atípicas, são uma fantasia jurídica, algo que não está previsto em momento algum no texto do art. 139, do CPC.

Justamente o oposto, o art. 391 do CC e o art. 789 do CPC, são de clareza solar no sentido de que os meios executivos continuam sendo típicos e não cabe ao magistrado determinar, por exemplo, a suspensão de um passaporte ou de uma CNH como meio de se coagir alguém a adimplir um débito.

Em 2018, escrevemos um livro2 sobre esse tema explicando porque decisões que determinam suspensão de passaporte e/ou CNH são, além de ilegais, inconstitucionais.

Curiosamente, parece que antevimos o futuro [sombrio] que nos aguardava e anotamos a gravidade que aquela exceção (sempre as tais exceções) poderia trazer à sociedade.

“Com efeito, não conseguimos enxergar na violação da lei uma forma de se fazer cumprir a lei. Qualquer sistema que pregue isso é, em si, antitético e traz em seu bojo a semente daquilo que pode conduzir a sociedade a um estado, por vezes irreversível, de exceção. Como diz Araken de Assis sobre o tema, existem limites políticos e jurídicos que hão que ser respeitados, inclusive no processo executivo.”

Ficamos apenas em 3 exemplos, mas temos mais de 20, onde a lei diz “A” e o intérprete diz “Z”. Se os juristas e magistrados brasileiros não entenderem sua grave parcela de culpa neste problema, ainda que saiamos da atual crise – e este é um enorme se – esta situação, fatalmente se repetirá.

Por fim, é possível sim retomarmos a normalidade constitucional.

Urge que ela seja feita com urgência. Pessoas estão morrendo, nunca esqueçamos de Cleriston Pereira da Cunha (Clezão) que veio a óbito numa prisão que, tal como apontado pelo jurista Manoel Gonçalves, fora aplicada ao total arrepio do devido processo legal e do contraditório.

Mais ainda, responsabilidades terão que ser apuradas, tanto do Estado que deverá reparar pessoas que foram presas e/ou exiladas indevidamente, quanto dos agentes públicos que, no âmbito penal, deverão – sempre respeitado o contraditório e o devido processo legal – deverão responder de forma proporcional aos atos praticados, seja por ação, seja por omissão, quando o caso.

_________

1 PAPINI, Paulo Antonio. Elevação das Custas Judiciais no Estado de São Paulo – um desserviço à Sociedade e à Advocacia. Migalhas! 16/11/2021. Acessível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/354911/elevacao-das-custas-judiciais-no-estado-de-sao-paulo

2 PAPINI, Paulo Antonio. Medidas Atípicas para Cumprimento de Ordem Judicial. Suspensão do Passaporte e CNH do Devedor. São Paulo, Lualri. 2018. ISBN – 978-859-27491-94.

Paulo Antonio Papini

Paulo Antonio Papini

Advogado em São Paulo. Mestre e Doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa. Pós-graduado em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário. Professor na ESA/UNIARARAS e ESD-Campinas.

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