Inconstitucionalidades da nova lei do carbono (lei 15.042/24)   Migalhas
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Inconstitucionalidades da nova lei do carbono (lei 15.042/24) – Migalhas

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1) Cadê o meio ambiente?

Além de ser uma norma genérica e pouco imperativa, cujo prazo para aplicação é de no mínimo cinco anos (o que não se coaduna com o estado de emergência climática já reconhecido pelo STF1 e ONU2), outro ponto chama atenção: obrigações climáticas, limites de emissão dos GEEs – gases de efeito estufa – ao setor privado e afins não são mais considerados como matéria jurídica ambiental. É notável a falta de menção aos termos “meio ambiente”, “proteção ambiental” e correlatos no texto, desenquadrando a norma do art. 225, da CF.

Esse fato pode parecer pequeno, porém, se torna grave ao considerar que a interpretação teleológica (que busca a finalidade implícita na norma, investigando os seus fins, alcance, sentido e vontade objetiva – a sua mens legis3), é obrigatória no Direito brasileiro. Basta ver os arts. 5º, da LINDB (DL 4.657/42) e 8º, do CPC (lei 13.105/15), os quais determinam que, na aplicação das leis, sejam observados os fins sociais a que elas se dirigem.

Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Art. 8º. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

A ausência da temática ecológica diz muito sobre a sua lógica e objetivo, sendo a redação normativa muito mais versada no lucro do comércio dos ativos ali criados do que na preservação ecológica. E esse resultado meramente econômico/financeiro (e não ambiental), por ser o fim social a que essa regra se dirige, deve nortear toda a discussão e interpretação jurídica sobre o assunto.

Quando uma lei sobre mudança climática: (i) sequer menciona o meio ambiente e a sua proteção; (ii) exclui o setor agropecuário de qualquer obrigação4; (iii) possibilita a modulação do seu alcance por um ato infralegal5; e (iv) afasta a ingerência dos órgãos ambientais (detalhado nos tópicos abaixo), fica evidente que a questão ecológica é tratada apenas de maneira superficial, mediata, indireta e secundária. Aparentemente, é uma norma feita do e para o mercado financeiro, apenas.

Nas edições anteriores dos projetos dessa nova lei, remetia-se, ao menos, ao princípio do poluidor-pagador. Agora, nem isso. O mais perto da proteção jurídica ambiental que a norma chega é a mera referência, no art. 4º, VI e VII, aos princípios do “desenvolvimento sustentável” e da “restauração da vegetação nativa e dos ecossistemas aquáticos”, que, concretamente, pouco ou nada dizem.

Esse descompasso, além de ser implícito pelo desaparecimento textual de vocábulos como “meio ambiente” e afins, é explícito nos seguintes pontos:

2) Criação do poder de polícia próprio e o consequente afastamento dos órgãos ambientais

Basicamente, o sistema criado pela lei 15.042/24 ampara-se no chamado “órgão gestor do SBCE”, de caráter normativo, regulatório, executivo, sancionatório e recursal.

A sua competência está descrita, principalmente (mas não só), nos vinte e sete incisos do art. 8º e no art. 39, e abrange desde a criação das metas e regulação dos ativos, fiscalização e aplicação de sanção, até a definição de quem serão os atingidos pelas obrigações.

A literalidade do texto não deixa margem para ingerência ou decisão de outro agente administrativo – é o tal órgão gestor o sujeito escolhido pelo ordenamento para ditar todas as regras sobre o assunto. É ele a autoridade sobre mudanças climáticas.

Qualquer outra entidade que adentre nesta seara produzirá um ato com vício de competência e finalidade – para o art. 2º, “a” e “e” da lei 4.717/65, tanto a incompetência (quando o ato não se inclui nas atribuições legais de quem o praticou), quanto a finalidade (quando se atua visando fim diverso daquele previsto na norma), são causas de nulidade da manifestação expedida.

Com isso, há um recorte no gerenciamento dos impactos dos empreendimentos. Apesar de o tema climático ser naturalmente ambiental, a lei 15.042/24 preferiu retirá-lo dos órgãos ambientais, cuja expertise e “razão de ser” é, e sempre foi, o controle da degradação e monitoramento ambiental de atividades (através, principalmente, do licenciamento) e alocá-lo, de forma exclusiva, para esse futuro órgão gestor do SBCE, de feitio meramente regulatório.

3) Temas climáticos não são mais tratados via licenciamento ambiental

Como consequência do afastamento das agências de meio ambiente, vê-se que a licença não é mais o foro adequado para a vinculação de obrigações climáticas aos operadores.

Pela Res. Conama 237/97, o licenciamento é procedimento de competência dos órgãos ambientais (Federal, estadual ou municipal), e serve para estabelecer, com base em estudos ambientais concretos, deveres e restrições aos empreendimentos com possibilidade de impacto.

Se antes da norma o tema orbitava os órgãos ambientais e licenciamento, agora, a definição dessas obrigações recai exclusivamente sobre o órgão gestor do SBCE, entidade de natureza regulatória, autônoma e Federal, sem vínculo ou interface com o meio ambiente e o SISNAMA – Sistema Nacional de Meio Ambiente.

E mais: todas as atribuições e compromissos impostos aos particulares serão estabelecidos unicamente pelo Plano Nacional de Alocação (elaborado pelo órgão gestor e aprovado pelo CIM)6 e operacionalizados via plano de monitoramento (elaborado pelas empresas e aprovado pelo órgão gestor)7.

Não há espaços para discussão via licenciamento ou sua inclusão como tema nos respectivos estudos ambientais. Sequer há a previsão de que o órgão gestor do SBCE participará como interveniente neste procedimento.

Ao que parece, a lei 15.042/24 não considera a emissão de GEEs e afins como um “aspecto ambiental da atividade”, nos termos dos arts. 1º, III e 3º, da Res. Conama 237/97, pois, caso contrário, a manteria como parte do processo de licença.

Aliás, essas afirmações estão bem destacadas na própria norma, ao dispor que, apesar da LC 140/11 (que dispõe sobre a repartição das competências administrativas ambientais), veda-se a dupla regulação institucional do assunto:

Art. 22. Respeitadas as competências federativas previstas na LC 140, de 8/12/11, é competência exclusiva da União o estabelecimento de limites de emissão aos setores regulados, de acordo com o Plano Nacional de Alocação e com os parâmetros definidos nesta lei, vedadas a dupla regulação institucional e qualquer tributação sobre emissões de GEE por atividades, por instalações ou por fontes reguladas pelo SBCE.

Ainda que existam normas de cunho geral, como a PNMA (lei 6.938/81) e a PNMC (lei 12.187/09), cujos dispositivos poderiam, em tese, compatibilizar licenciamento ambiental e questões climáticas, impera o princípio da especialidade, onde regra especial prevalece à regra geral. Assim, nada se sobreporá ao sistema de governança, comando e controle estabelecido pela lei 15.042/24.

Em resumo: o direito subjetivo e potestativo sobre a questão climática foi transferido do órgão ambiental (por meio do licenciamento e estudos ambientais) para o órgão gestor do SBCE (por meio do Plano Nacional de Alocação e Planos de Monitoramento).

Além de ferir o cerne do próprio caput do art. 225 da CF/88, afronta também o seu §1º, III, que conecta a realização de EIA/RIMA aos grandes degradadores do meio ambiente, já que as obrigações climáticas, agora, sequer se vinculam aos estudos ambientais.

Na verdade, considerando a lógica interna da norma (aquela que analisa o conjunto de ideias implícitas e explícitas da regra), parece que a lei 15.042/24 exclui do próprio conceito de degradação e ou poluição a difusão de GEEs, dificultando, inclusive, a sua subsunção à lei de crimes ambientais (lei 9.605/98) ou às premissas da responsabilidade civil por dano ambiental.

3.1) A perda de objeto das ações judiciais climáticas que envolvem licenciamento

Há outra consequência notável: a perda de objeto das atuais ações judiciais que pleiteiam a inclusão da variável climática em alguns licenciamentos (normalmente ACPs).

Tome-se, como exemplo, a decisão proferida pela Justiça Federal do Pará, em 12/24, antes da promulgação da nova lei, onde os réus foram compelidos, no bojo do EIA/RIMA, à realização de “estudo de impacto climático […] a fim de estabelecer condicionantes que evitem, minimizem ou compensem a contribuição negativa destes empreendimentos para as mudanças climáticas”.8

Ações e decisões assim estão desatualizadas e desalinhadas com a lei 15.042/24. Com essa inovação legislativa, há evidente perda de objeto deste tipo de demanda por:

  • Fato superveniente (art. 493 do CPC), decorrente da modificação das condições de direito que deram azo à inicial;
  • Perda do interesse e da legitimidade de agir (art. 17 do CPC), já que os órgãos ambientais não são mais os competentes e o licenciamento não é mais o local adequado para tratar do assunto.

4) CBEs e o direito adquirido de poluir

Por fim, há mais um ponto que parece não harmonizar com o Direito Ambiental brasileiro, que é a previsão das chamadas CBEs – Cotas Brasileiras de Emissões, ativo representativo do direito de emitir 1 tCO2e na atmosfera9.

Ainda que seja mecanismo de precificação de uso aparentemente limitado10, criado para auxiliar as empresas a atingirem as futuras metas e estarem em conformidade com a lei, o entendimento jurisprudencial (principalmente STF e STJ) é pacífico: não existe direito adquirido de poluir.

Ao associar o conceito das CBEs com esse norte decisório, é possível concluir que esse direito de emissão pode, pelo menos em tese, ser considerado como “direito adquirido de poluir”, já que permite que os operadores paguem para continuar emitindo GEEs acima dos patamares estabelecidos, sem sofrer penalidades.

5) Conclusão

Todo esse contexto acaba, pelo menos na opinião deste autor, corrompendo o texto de inconstitucionalidade, pois o STF, ao julgar a ADPF 708, já estabeleceu que “[…] a questão pertinente às mudanças climáticas constituiu matéria constitucional”, se inserindo no art. 225, da CF – caminho que, evidentemente, não foi a seguido pelo legislador nesta lei.

Tese: O Poder Executivo tem o dever constitucional de fazer funcionar e alocar anualmente os recursos do fundo clima, para fins de mitigação das mudanças climáticas, estando vedado seu contingenciamento, em razão do dever constitucional de tutela ao meio ambiente (CF, art. 225), de direitos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (CF, art. 5º, § 2º), bem como do princípio constitucional da separação dos poderes (CF, art. 2º, c/c o art. 9º, § 2º, LRF).11

E, ainda que a lei dependa de regulamentação para produzir efeitos concretos, eventual decreto ou qualquer outro ato infralegal não poderá inovar ou ultrapassar seus limites.

Ou seja, essa desvinculação com o meio ambiente e essa finalidade puramente econômica não poderá ser corrigida ou tratada de forma diferente pelo regulamento. Resta esperar para ver como (e se) o Judiciário enfrentará esses pontos.

___________

1 ADPF 708, Relator Min. Roberto Barroso, julgado pelo STF em 07/2022.

2 https://www.unep.org/pt-br/climate-emergency.

3 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Forense, 2013, p. 280.

4 Art. 1º, §2º, da Lei 15.042/2024.

5 Art. 30, §1º, da Lei 15.042/2024.

6 Art. 7º, II, art. 8º, VIII e IX e Art. 21, da Lei 15.042/2024.

7 Arts. 29 a 33, da Lei 15.042/2024.

8 Proc. 1014317-12.2024.4.01.3902, 2ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Santarém-PA, MPF x Estado do Pará e outros.

9 Art. 2º, VI e 10, I, da Lei 15.042/2024.

10 Art. 11, da Lei 15.042/2024.

11 ADPF 708, Relator Min. Roberto Barroso, julgado pelo STF em 07/2022.

Victor Trevilin Benatti Marcon

Victor Trevilin Benatti Marcon

Mestre e Especialista em Direito Ambiental. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Direito da Mineração. Pós-graduando em Gestão Ambiental.

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