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A recuperação judicial, disciplinada pela lei 11.101/05, é um mecanismo importante para empresas e empresários em crise, pois viabiliza a renegociação de dívidas e assegura a continuidade das atividades empresariais, preservando empregos e contribuindo para a estabilidade econômica.
Nessa esfera, um dos pilares dessa legislação é a regra de que “todos os créditos existentes na data do pedido” estão sujeitos à recuperação judicial, salvo exceções previstas na lei. Essa regra promove igualdade entre os credores, mas também exige uma análise criteriosa em cada caso, especialmente em setores específicos como o agronegócio, que possui suas peculiaridades.
Um exemplo claro dessa complexidade é o tratamento das CPR – Cédulas de Produto Rural, instrumentos financeiros amplamente utilizados pelos produtores para captar recursos. Existem duas modalidades principais de CPR: a física, na qual o produtor assume o compromisso de entregar o produto agrícola ao credor, e a financeira, que transforma essa obrigação em um pagamento em dinheiro, calculado com base no preço ou índice do produto especificado no título. A distinção entre essas modalidades não é meramente técnica, mas tem implicações jurídicas diretas.
Vale destacar que, enquanto a CPR física está excluída do processo de recuperação judicial por exigir a entrega do produto agrícola, a CPR financeira é incluída. Essa distinção decorre da natureza das obrigações: a CPR física mantém uma ligação direta com o produto agrícola, sendo considerada extraconcursal; já a CPR financeira representa uma obrigação exclusivamente monetária, assemelhando-se a um contrato de mútuo e, por isso, sujeita ao plano de recuperação judicial.
Para entender melhor, pense na CPR física como uma promessa de entregar uma carga específica de soja, já definida em quantidade e qualidade, diretamente ao credor. É como dizer: “Você receberá exatamente esta safra”. Por outro lado, a CPR financeira funciona como um cheque ou cupom de compra: o credor não quer a soja física, mas sim o valor equivalente para adquiri-la onde desejar.
Desse modo, a natureza monetária da CPR financeira possibilita sua inclusão no processo de recuperação judicial, pois ela se caracteriza como uma obrigação financeira, semelhante a um crédito comum, sem vínculo direto com o produto agrícola. Isso assegura que o credor da CPR financeira seja tratado de forma igualitária, juntamente com os demais credores, dentro das condições definidas no plano de recuperação.
Todavia, caso a CPR financeira fosse excluída, o credor poderia buscar diretamente o pagamento, fora do processo judicial, o que criaria uma vantagem para esse credor em relação aos outros. Esse tratamento desigual violaria o princípio da paridade entre os credores, que exige que todos sejam tratados igualmente, conforme as regras estabelecidas no plano de recuperação.
Essa regra ganha ainda mais relevância quando analisada sob a ótica da jurisprudência. Recentemente, um caso no Tribunal de Justiça de Mato Grosso destacou essa questão. Um credor, cujo crédito estava garantido por penhor rural, questionou sua inclusão no processo de recuperação judicial. O tribunal manteve a decisão, fundamentando-se no princípio de que o objetivo maior é o soerguimento da empresa. Além disso, o parecer do administrador judicial ressaltou que os valores em questão eram essenciais para a continuidade das atividades do devedor, reforçando a importância de um equilíbrio entre o direito dos credores e a necessidade de reestruturar a empresa. In verbis:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – DECISÃO QUE AUTORIZOU QUE OS RECUPERANDOS LEVANTASSEM OS VALORES CONSTRITOS EM FAVOR DA CREDORA – CONSTRIÇÃO ANTERIOR À RECUPERAÇÃO JUDICIAL – PENHOR RURAL – GARANTIA REAL – PEDIDO DE NULIDADE DA DECISÃO POR CERCEAMENTO DE DEFESA – REJEIÇÃO – ALEGAÇÃO DE ESVAZIAMENTO DE GARANTIA -CRÉDITO SUBMETIDO À RECUPERAÇÃO JUDICIAL – MEDIDA DEFERIDA COM RESPALDO EM PARECER DO ADMINISTRADOR JUDICIAL – MEDIDA NECESSÁRIA PARA O SOERGUIMENTO DA EMPRESA – DECISÃO MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. 1. Segundo o STJ, “de acordo com a moderna ciência processual, que coloca em evidência o princípio da instrumentalidade e o da ausência de nulidade sem prejuízo (pas de nullité sans grief), antes de se anular todo o processo ou determinados atos, atrasando, muitas vezes em anos, a prestação jurisdicional, deve-se perquirir se a alegada nulidade causou efetivo prejuízo às partes” (REsp 1276128/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 17/09/2013, DJe 23/09/2013). 2. A lei que rege a Recuperação Judicial é taxativa quanto aos créditos excluídos da recuperação judicial, sendo que o art. 49 da LFRJ em nenhum momento exime os direitos reais de garantia, como é o caso do penhor dado em garantia das CPRFS, mas sim, e tão somente, os direitos reais em garantia, isto é, apenas aqueles bens que, originariamente do devedor, passam à propriedade do credor, logo, a agravante deverá receber o seu crédito junto com os demais credores da mesma categoria, o que torna irrelevante a sua preocupação quanto ao “esvaziamento da garantia”, até porque o plano de recuperação judicial implica em novação dos créditos anteriores ao pedido. 3. A decisão que autoriza o levantamento de valores, com respaldo em parecer favorável emitido pelo Administrador Judicial, deve ser mantida se não há argumentos que afastem a conclusão de essencialidade dos valores para o soerguimento da empresa. (TJ-MT 10080360220218110000 MT, Relator: JOAO FERREIRA FILHO, Data de Julgamento: 11/10/2022, Primeira Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/10/2022) (Grifou-se).
Outrossim, em síntese, essa abordagem demonstra como o sistema jurídico busca alinhar interesses e promover a viabilidade econômica das empresas. A lei 8.929/94, que regula as CPRs, é clara ao diferenciar as modalidades física e financeira, exigindo que a CPR financeira seja liquidada em moeda corrente. Esse detalhe técnico reforça a inclusão desses créditos no âmbito da recuperação judicial, garantindo que o processo seja um instrumento eficiente de reorganização.
No contexto do agronegócio, a inclusão da CPR financeira no plano de recuperação judicial não é apenas uma questão legal, mas também econômica. O setor, que movimenta bilhões de reais e é um dos pilares da economia brasileira, depende de instrumentos que possibilitem aos produtores enfrentar crises financeiras sem comprometer a continuidade de suas operações.
Portanto, a inclusão da CPR financeira no processo de recuperação judicial é um reflexo da adaptação do sistema jurídico às novas demandas econômicas, especialmente no agronegócio. Ao tratar esses créditos de forma equânime, o processo de recuperação judicial não só promove a reestruturação das dívidas, mas também oferece uma chance real de sobrevivência e crescimento para empresas e empresários rurais em crise.
Letícia Marina da S. Moura
Advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.