Armas de fogo   Decretos continuam juridicamente defeituosos   Migalhas
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Armas de fogo – Decretos continuam juridicamente defeituosos – Migalhas

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A aplicação da lei no tempo continua sendo um dos temas mais controvertidos no estudo da ciência do Direito. Esta ideia está em Gilmar Mendes1 e outros tantos que se dedicaram ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Até por isso, autores oficiais de decretos devem ter um cuidado redobrado, quando o tema envolver questões de direito temporal, consultando estudiosos para reduzir defeitos. No tema das armas, esta não parece ser a preocupação.

O decreto 11.366, assinado no primeiro dia de governo Lula-3, contém defeitos jurídicos. Um dos mais estridentes, o de proibição. Decreto não pode ‘proibir’ atos e atividades à pessoa. E ele proíbe descaradamente. Também contém parte dirigida a um coletivo, os CACs, não podendo, neste ponto, ser considerado norma geral e abstrata, como o STF quis considerar, e sim decreto de efeito concreto. Tudo isso, e mais, já foram detidamente esmiuçado num artigo aqui.

Agora, em nova investida contra o setor, aparece uma errância primária: a inconstitucional redução de prazo de validade de duas licenças, o CRAF – Certificado de Registro de Arma de Fogo, necessidade indissociável para o ato de compra de arma de fogo (posse), e o CR – Certificado de Registro, licença para atividades de caçador, atirador desportivo e colecionador. Os prazos fixados em decretos para ambas as licenças era de 10 anos, sendo que advieram novas normas Federais, decreto 11.615-21/7/23, art. 24, e portaria 166 Colog-Exército, art. 16, reduzindo o prazo para 3 anos.

Há se registrar que juízes Federais já começaram a reconhecer a lesão aos princípios de direito adquirido e ato jurídico perfeito. Também, recente parecer do Ministério Público Federal reconheceu a continuada validade temporal do porte de trânsito. Assim, há buracos no decreto.

A legislação envolvida, como anterior e garantidora dos 10 aos de prazo, para o CRAF, é o decreto 5123, de 1/7/04, art. 16; e para o CR, o decreto 9846, de 25/6/19, art. 1º. Já a legislação posterior, e violadora, impondo redução para 3 anos, é o decreto 11.615, de 21/7/23, art. 24, e a portaria 166 Colog do Exército, de 22/12/23, art. 16.

E não para aí. Há diversas punições previstas no decreto 11615, art. 26, para quem se mantiver no prazo originário de 10 anos e não agir no prazo reduzido, chegando a uma espécie de confisco da arma.

Juridicamente, o assunto apresenta 6 complexidades que precisam ser destrinçadas.

Primeiramente, não se pode atribuir qualquer defeito ou ilegalidade aos decretos anteriores, concessivos de 10 anos de prazo, ou seja, inexiste revogação deles por defeito, situação que, normas ordinárias e válidas, originaram direitos às pessoas. Pode-se considerar pela lição de André Ramos Tavares, como expresso fundamento ao direito adquirido, o prazo de 10 anos como uma “situação subjetiva de vantagem”. Já no que diz respeito ao princípio constitucional do ato jurídico perfeito, a compra de arma com 10 anos para a posse/CRAF, sem necessidade de renovação da licença por todo esse tempo, também é situação muito mais vantajosa do que somente uma compra com licença de 3 anos pela nova norma.

Por segundo, vê-se que o prazo de 10 anos é um “direito subjetivo concretamente determinado”, expressão de Bauer utilizada por Pontes de Miranda2, para explicar o direito adquirido, no sentido de que, se está determinado, torna-se inatacável. Aqui o argumento se potencializa, nalguma medida, ao que leciona André Ramos Tavares3, quando registra a “proibição do retrocesso … a uma diminuição no grau de implementação”, entendendo-se aí, por grau, perfeitamente, o lapso temporal de 10 anos, legal e originariamente regrado, que, então, não pode ser afetado por lei redutora posterior. Ainda, neste ponto, a lição de José Afonso da Silva4 quando registra que “o simples direito adquirido (isto é, direito que já integrou o patrimônio mas não foi ainda exercido) é protegido contra interferência da lei nova…”, podendo-se entender a diferença de anos (7 anos), como um tempo já compositivo do ato jurídico perfeito (a compra da arma com o necessário CRAF) ainda não exercido – este tempo-, de qualquer sorte, constitucionalmente protegido.

Em terceiro, o ato da compra da arma, a que o CRAF é fator atávico da existência e validade do negócio, “se completou na vigência de determinada lei”, conforme Cretella Júnior5, então concessiva de 10 anos de validade à licença (CRAF), sendo que, conforme o mesmo doutrinador “nenhuma lei posterior pode incidir sobre ele”. Aqui, o conceito de ato jurídico perfeito, sendo crucial a observação de Luís Roberto Barroso6, verbis “a mudança de entendimento pela Administração Pública ou mesmo pelo Judiciário, em relação à determinada matéria, impõe, como regra, que a nova orientação só se aplique dali em frente, prospectivamente.” Ou seja, não pode, a nova norma, afetar uma compra que dava 10 anos como licença de CRAF à pessoa, nem por “nova orientação” administrativa.

A quarta complexidade é a crítica diferença entre licença e autorização. Zanella Di Pietro7, a título de exemplo, cita o porte de arma (não confundir com posse, a licença CRAF) como típica “autorização”, ato constitutivo, precário, discricionário, que diz respeito a interesse público, e não a direito da pessoa. Ao lado do exemplo da “licença” para dirigir automóveis, ato administrativo unilateral e vinculado, meramente declaratório de direito preexistente e impositivo à Administração, desde que o requerente preencha requisitos de obtenibilidade da licença, situação em tudo respeitante ao CRAF/CR, documentos possíveis a qualquer pessoa que preencha os requisitos necessários. E por ser licença, os pressupostos compositivos, como o prazo, veem-se invioláveis por norma posterior.

Percebe-se que o tratamento jurídico dispensável à matéria é inconfundível. CRAF e CF são típicas licenças. Não à toa, Adilson Abreu Dallari, estudando precisamente o tema de arma de fogo, estabelece diferença entre licença (posse/CRAF) e autorização (porte), verbis: “A licença (definitiva) para a aquisição e posse de arma de fogo permite apenas que ela seja mantida em um local determinado. A autorização (precária e temporária) de porte de arma habilita seu uso na via pública.” Há se reparar que esse autor, inclusive, concebe a licença como temporalmente definitiva; é posição de Hely Lopes Meirelles8, ainda que este autor relativize a invalidação da licença por ilegalidade na expedição ou por descumprimento do titular na execução da atividade. Também fica claro uma maior dureza epistemológica no prazo de 10 anos, precisamente por se tratar de licença, e não mera autorização.

Em quinto, a higidez principiológica e constitucional do direito adquirido, que não permite ser excepcionado nem por questões de ordem pública, conforme diversos autores, como Gilmar Mendes9, Alexandre de Moraes10 e outros, além de jurisprudência do próprio STF.

Por sexto, o conceito constitucional de ato jurídico perfeito, a concretude negocial de uma compra de arma necessariamente atrelada a um CRAF para 10 anos, não podendo ser desconfigurada mesmo diante de “situações jurídicas que somente produzirão efeitos no futuro, eventualmente no regime de uma lei nova”, expressão de Gilmar Mendes, op. cit., p. 390. Aí, tem-se o decreto novo buscando coarctar 7 anos futuros dos 10 anos anteriormente regulados ao titular.

Com essas 6 características de defeituosidade, e o risco de punição pela não ação do detentor do CRAF/CR dentro dos 3 anos novos, torna-se legítima a possibilidade de ação judicial, inclusive com pedido de tutela de evidência, em sua forma antecipada, na lição de Cândido Rangel Dinamarco11, haja vista que o procedimento judicial para o reconhecimento dos 3 anos pode ultrapassar o prazo de renovação do novo regramento, situação que geraria ilegítima punição à pessoa.

Como considerações finais, o assunto arma de fogo sempre foi pessimamente tratado, tanto pelo governo Lula, que desrespeitou o referendo de 2005, sobre proibição da comercialização de armas; quanto pelo governo Bolsonaro, que chegou a garantir porte (!) de duas armas para o interessado, numa faroestização ideológica ridícula – e assustadora para leigos-, isso tudo fora os defeitos intrínsecos nos decretos e portarias sempre elaborados às pressas.

Com o repentino crescimento, no país, alcançando 1 milhão de CACs, era para o número de crimes com uso de arma de fogo também ter acompanhado exponencialmente aquela abrupta explosão na quantidade, conforme pacifistas, analistas, especialistas e outros profetas e futurólogos prometeram. Mas efetivamente não ocorreu. Ainda que quando ocorra um crime ligado a CACs, tente-se hipertrofiá-lo na imprensa, num pobre sensacionalismo apavorante.

O tema da arma de fogo ficou totalmente estigmatizado e social-psicologicamente trágico, mas nos setores de uso regular da arma de fogo, policiais, militares, CACs e outros, os crimes ainda são totalmente ínfimos numericamente, por exemplo, se comparados com os milhares de mortes diárias em acidentes trânsito. Porém, razão, objetividade e estatísticas não interessam quando o que se quer apenas difundir medo e caos.

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1 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 21 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 644.

2 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 17 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 387.

3 MIRANDA, Pontes. Comentários à constituição de 1967. Tomo V. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 53.

4 TAVARES, André Ramos. Op.cit., p. 645.

5 SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 44. ed. São Paulo: Malheiros, 2022, p. 438.

6 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à constituição brasileira de 1988. I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 460.

7 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 10 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 623.

8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 35 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 235-6.

9 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 185.

10 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 17 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 388.

11 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 6ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 302.

12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. III. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p 853.

Jean Menezes de Aguiar

Jean Menezes de Aguiar

Advogado. Professor da Pós-Graduação da FGV e do IPOG. Parecerista da Coordenação de Publicações Impressas da FGV e da RDA – Revista de Direito Administrativo, FGV.

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