Relacionamento afetivo robô: Reconhecimento legal e implicação ética   Migalhas
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Relacionamento afetivo robô: Reconhecimento legal e implicação ética – Migalhas

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A integração de robôs humanoides e IA – inteligências artificiais na sociedade tem avançado rapidamente, com aplicações que vão desde assistência pessoal até companhia afetiva. Robôs como a “Harmony”, desenvolvida pela empresa RealDoll, são projetados para simular emoções e estabelecer conexões emocionais com humanos, desafiando os limites entre objetos e entidades dotadas de personalidade. Essa realidade levanta questões profundas sobre como o Direito deve lidar com relacionamentos afetivos ou íntimos entre humanos e robôs.

Um exemplo emblemático ocorreu em 2018, quando Akihiko Kondo, um homem no Japão, declarou publicamente seu “casamento” com a cantora virtual Hatsune Miku, uma IA desenvolvida pela empresa Crypton Future Media. Kondo utilizou um certificado emitido pela empresa Gatebox, que promove relacionamentos entre humanos e personagens virtuais. No entanto, em 2022, Kondo ficou “viúvo” após a descontinuação do serviço de IA que permitia a interação com Hatsune Miku, reacendendo o debate sobre o reconhecimento legal dessas relações e suas implicações éticas. Este artigo propõe uma análise crítica sobre o tema, explorando questões como a natureza jurídica dos robôs, a possibilidade de traição em relacionamentos humanos-robôs e os desafios éticos envolvidos.

1. A natureza jurídica dos robôs e IAs

Robôs humanoides e inteligências artificiais são, em essência, produtos tecnológicos desenvolvidos para simular comportamentos humanos. No entanto, sua capacidade de interação emocional e afetiva desafia a categorização tradicional de objetos no Direito. Para o jurista Luciano Benetti Timm, a personalidade jurídica de robôs deve ser analisada sob a ótica da autonomia e da capacidade de causar impactos significativos na vida humana.

No entanto, a maioria dos ordenamentos jurídicos ainda trata robôs e IAs como objetos, sem direitos ou deveres. Essa visão é questionada por filósofos como Luciano Floridi, que argumentam que a interação emocional com robôs pode exigir uma revisão dos conceitos de personalidade e dignidade.

2. Relacionamentos afetivos e a questão da traição

Um dos temas mais controversos é a possibilidade de traição em relacionamentos humanos-robôs. Se um parceiro humano mantém um relacionamento íntimo com um robô ou uma IA, isso pode ser considerado traição? Para a psicóloga Sherry Turkle, autora de Alone Together, a intimidade com robôs pode afetar os relacionamentos humanos, mas não deve ser equiparada à traição, já que robôs e IAs não possuem consciência ou capacidade de reciprocidade emocional.

No entanto, estudos recentes sugerem que, embora as IAs ainda não tenham consciência, elas já são capazes de simular reciprocidade emocional de forma convincente, utilizando algoritmos avançados para imitar comportamentos humanos. Além disso, pesquisas em neurociência computacional e inteligência artificial apontam para a possibilidade de que, no futuro, as IAs possam desenvolver formas rudimentares de consciência, o que reacenderia o debate sobre a natureza desses relacionamentos e suas implicações éticas.

No entanto, a jurista Mireille Hildebrandt alerta que a personificação de robôs e IAs pode levar a uma banalização dos vínculos afetivos, especialmente se a legislação começar a reconhecer esses relacionamentos como válidos.

3. Casos concretos e jurisprudência

O caso de Akihiko Kondo e Hatsune Miku é um exemplo emblemático da crescente aceitação de relacionamentos afetivos com entidades não-humanas. Kondo declarou publicamente seu “casamento” com a IA Hatsune Miku, utilizando um certificado emitido pela empresa Gatebox, que já emitiu mais de 4.000 certificados semelhantes. No entanto, em 2022, Kondo ficou “viúvo” após a descontinuação do serviço de IA que permitia a interação com Hatsune Miku, destacando a fragilidade desses relacionamentos e a necessidade de regulamentação legal.

No Brasil, ainda não há jurisprudência sobre o tema, mas o PL 2.338/23, que regulamenta o uso de inteligência artificial, pode abrir caminho para discussões sobre a natureza jurídica dos robôs e seus impactos nas relações humanas.

4. Implicações éticas e sociais

A aceitação de relacionamentos afetivos com robôs e IAs levanta questões éticas profundas:

  • Banalização dos vínculos afetivos: A intimidade com robôs pode reduzir a importância dos relacionamentos humanos, especialmente se os robôs forem vistos como substitutos emocionais.
  • Impacto na saúde mental: A dependência emocional de robôs pode levar ao isolamento social e à deterioração das relações interpessoais.
  • Questões de gênero e exploração: Robôs humanoides e IAs são frequentemente projetados com características femininas estereotipadas, o que pode reforçar padrões de objetificação e exploração.

5. Regulamentação e soluções práticas

Para lidar com os desafios dos relacionamentos afetivos com robôs e IAs, é essencial desenvolver frameworks legais que promovam a transparência e a proteção dos direitos humanos. Como soluções práticas, propõe-se:

  • Diretrizes éticas: Estabelecer normas para o desenvolvimento e uso de robôs humanoides e IAs, garantindo que sejam tratados como ferramentas tecnológicas e não como seres conscientes.
  • Educação e conscientização: Promover campanhas de conscientização sobre os riscos da dependência emocional de robôs e a importância dos vínculos humanos.
  • Fiscalização e supervisão: Designar uma autoridade competente para fiscalizar o uso de robôs em contextos afetivos, com poderes para aplicar sanções em caso de violações éticas.

Conclusão

Os relacionamentos afetivos com robôs humanoides e IAs representam uma fronteira ética e jurídica complexa. Embora esses relacionamentos possam oferecer companhia e conforto emocional, também apresentam riscos significativos, como a banalização dos vínculos afetivos e a dependência emocional de máquinas.

Como soluções práticas, sugere-se a criação de diretrizes éticas e frameworks legais que equilibrem a inovação tecnológica com a proteção dos direitos humanos fundamentais. O futuro da regulamentação desses relacionamentos dependerá de nossa capacidade de conciliar avanços tecnológicos com valores éticos e jurídicos consolidados.

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1 BRASIL. Projeto de Lei 2338/23. Senado Federal, 2023. Disponível em: https://www.senado.gov.br. Acesso em: 10 out. 2023.

2 FLORIDI, Luciano. The Ethics of Artificial Intelligence. Oxford: Oxford University Press, 2019.

3 HILDEBRANDT, Mireille. Law for Computer Scientists and Other Folk. Oxford: Oxford University Press, 2020.

4 REALDOLL. Harmony: The AI Companion. Disponível em: https://www.realdoll.com. Acesso em: 10 out. 2023.

5 TIMM, Luciano Benetti. Responsabilidade Civil e Inteligência Artificial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

6 TURKLE, Sherry. Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other. Nova York: Basic Books, 2011.

7 UOL. Homem que se casou com boneca no Japão fica viúvo após ‘morte’ de IA. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2022/05/06/homem-que-se-casou-com-boneca-no-japao-fica-viuvo-apos-morte-de-ia.htm. Acesso em: 10 out. 2023.

Jamille Porto Rodrigues

Jamille Porto Rodrigues

Advogada e Professora de Direito Digital, Inteligência Artificial e Novas tecnologias aplicada ao Direito e Marketing Jurídico.

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