CompartilharComentarSiga-nos no A A
A coleta de dados biométricos se consolidou como uma ferramenta central na sociedade digital de 2025, mas também se tornou um dos maiores pontos de tensão entre inovação tecnológica e direitos fundamentais. Projetos como o da World Network, anteriormente conhecida como Worldcoin, ilustram com clareza essa complexa interseção. Liderada por Sam Altman, CEO da OpenAI, a iniciativa já verificou 10 milhões de usuários por meio de dispositivos chamados orbs, que capturam a imagem da íris para criar um “World ID”. Este identificador único promete autenticar a individualidade humana, diferenciando-a de robôs ou inteligências artificiais, mas também levanta questões alarmantes sobre segurança, privacidade e o impacto socioeconômico dessa tecnologia.
O modelo do World ID é apresentado como um sistema descentralizado de autenticação, fundamentado em princípios de Privacy by Design. Ele utiliza tecnologias avançadas como a computação multipartidária segura (SMPC – Secure Multiparty Computation) e provas de conhecimento zero (ZKPs – Zero-Knowledge Proofs) para proteger os dados biométricos dos usuários enquanto assegura sua singularidade. A minimização de dados é um dos pilares centrais dessa abordagem, com a promessa de coletar apenas informações estritamente necessárias, excluindo identificadores pessoais como nome ou endereço. Contudo, mesmo com essas proteções, os desafios técnicos e éticos subjacentes à coleta e ao uso de dados biométricos expõem fragilidades que exigem uma análise aprofundada.
A LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, no Brasil, classifica os dados biométricos como sensíveis, impondo requisitos rigorosos para seu tratamento. O consentimento explícito e inequívoco do titular, a necessidade de proporcionalidade e a transparência no uso são exigências indispensáveis. No entanto, a complexidade tecnológica de sistemas como o World ID dificulta o pleno entendimento por parte do titular, comprometendo a transparência e a autonomia informacional.
Além disso, a irrevogabilidade dos dados biométricos coloca em evidência uma vulnerabilidade única. Diferente de senhas ou números de identificação, que podem ser substituídos em caso de vazamento, um padrão de íris comprometido expõe o titular a riscos permanentes. Esse cenário torna essencial que sistemas como o World ID implementem medidas robustas de segurança e revisões regulares de seus mecanismos de proteção, considerando que as técnicas utilizadas por agentes maliciosos estão em constante evolução.
Outro ponto crítico reside no consentimento como base legal para a coleta de dados biométricos. No caso do World ID, o incentivo financeiro atrelado à adesão, por meio de tokens WLD, levanta questionamentos sobre a genuinidade desse consentimento. Em populações economicamente vulneráveis, a troca de dados sensíveis por benefícios financeiros pode ser interpretada como exploração econômica, violando princípios fundamentais da LGPD, como a liberdade de escolha e a dignidade da pessoa humana. Essa prática não apenas compromete a autonomia dos titulares, mas também reforça desigualdades estruturais, ampliando o fosso entre quem pode optar conscientemente por participar e quem é economicamente pressionado a fazê-lo.
A escolha da íris como dado biométrico base para o World ID é justificada por sua precisão e dificuldade de falsificação. Em comparação com impressões digitais ou reconhecimento facial, a íris apresenta maior resistência a tentativas de fraude, sendo menos suscetível a replicações a partir de bases públicas ou superfícies físicas. Contudo, essa vantagem tecnológica não elimina os desafios éticos e técnicos associados ao seu uso em larga escala.
Um dos principais entraves é a dependência de uma infraestrutura especializada. O uso dos orbs como dispositivos exclusivos para a captura de dados limita a acessibilidade do sistema, especialmente em regiões subdesenvolvidas. Essa barreira tecnológica não apenas compromete a inclusão, mas também perpetua desigualdades no acesso à identidade digital, criando uma divisão entre aqueles que têm acesso à tecnologia de ponta e aqueles que permanecem excluídos do sistema.
Além disso, a complexidade dos mecanismos de segurança implementados pelo World ID pode obscurecer os riscos reais aos titulares de dados. A computação multipartidária segura (SMPC), que fragmenta os dados biométricos em partes distribuídas entre entidades independentes, e as provas de conhecimento zero (ZKPs), que permitem autenticações sem revelar informações sensíveis, são soluções tecnológicas inovadoras. No entanto, essas práticas exigem confiança irrestrita nos operadores do sistema, uma condição que nem sempre é garantida. Em caso de falhas ou má-fé por parte das entidades responsáveis, as consequências podem ser irreversíveis.
Apesar das garantias de anonimização e minimização de dados, o uso de biometria de íris traz consigo o risco de rastreamento ou correlação com outras bases de dados. Reguladores, como a ANPD – Autoridade Nacional de Proteção de Dados, precisam estar atentos à possibilidade de que essas tecnologias sejam utilizadas de maneira abusiva, seja para fins comerciais, seja para controle social. O potencial de exploração dos dados biométricos em mercados secundários ou em contextos de vigilância massiva é uma preocupação legítima, especialmente em um cenário de regulação ainda em construção.
Além disso, a promessa de descentralização do World ID contrasta com o modelo de negócios subjacente ao projeto, que visa criar um sistema global de autenticação com potencial para gerar grandes volumes de dados agregados. Embora a World Network afirme que os dados não são armazenados centralmente, o próprio processo de verificação exige uma arquitetura tecnológica que, em última instância, pode centralizar o poder em torno de poucos operadores. Essa concentração de poder, mesmo que indireta, levanta questões sobre monopólios tecnológicos e o controle do acesso à identidade digital.
No contexto brasileiro, a ANPD tem a responsabilidade de estabelecer diretrizes específicas para o uso de biometria e auditar tecnologias emergentes como a utilizada pelo World ID. Além de garantir que a coleta de dados respeite os princípios da proporcionalidade e da transparência, é crucial que a ANPD promova campanhas educativas para informar os cidadãos sobre seus direitos e os riscos envolvidos no uso de biometria.
Tanto que recentemente, a ANPD determinou a suspensão de incentivos financeiros relacionados à coleta de íris em um caso envolvendo tecnologias de identificação digital.
Essa medida não apenas reflete a preocupação com práticas que podem comprometer a liberdade de escolha e a dignidade humana, mas também evidencia a problemática do chamado “consent or pay”.
Esse posicionamento evidencia o posicionamento da ANPD da necessidade de que sistemas como o World ID sejam avaliados com maior rigor, especialmente no que diz respeito ao cumprimento dos princípios da LGPD.
Entretanto, a regulamentação precisa ir além do controle reativo, adotando uma postura proativa na antecipação dos riscos associados ao uso de dados biométricos. Isso inclui exigir auditorias regulares, estabelecer padrões de segurança mínimos e incentivar a criação de tecnologias que respeitem os direitos fundamentais desde a concepção. O equilíbrio entre inovação e proteção de dados não é apenas uma questão técnica, mas uma questão de governança global.
Embora a biometria de íris represente um avanço significativo na autenticação digital, seu uso levanta desafios profundos que transcendem a tecnologia. O equilíbrio entre inovação, proteção de dados e direitos humanos exige um esforço conjunto de reguladores, desenvolvedores e sociedade civil para garantir que soluções como o World ID não comprometam a privacidade e a autonomia dos indivíduos.
Lorena Botelho
Sócia do Urbano Vitalino Advogados.