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No Direito, a sofisticação das palavras sempre foi associada à autoridade e ao conhecimento. Contudo, um paradoxo emerge: será que um vocabulário intrincado e obscuro realmente reflete domínio intelectual? Ou será que, muitas vezes, ele serve como máscara para inseguranças epistemológicas e falta de clareza? Neste artigo, desconstruímos a crítica de que a simplificação da linguagem jurídica transforma o Direito em um “brechó” e mostramos como o verdadeiro domínio reside na capacidade de ser claro e acessível sem perder profundidade.
Alguns juristas argumentam que a simplificação da linguagem jurídica ameaça a profundidade do Direito, mas esquecem-se de um princípio básico da comunicação: clareza é poder. Einstein já dizia: “Se você não consegue explicar algo de forma simples, é porque não entendeu bem o suficiente”. Linguagem simples não é superficial; é a capacidade de traduzir ideias complexas de forma compreensível para todos.
O Direito, como instrumento de transformação social, precisa alcançar não apenas os iniciados, mas também os cidadãos comuns, que são os verdadeiros destinatários das normas. Usar palavras pomposas para impressionar os colegas de toga não fortalece o Direito; pelo contrário, aliena aqueles que deveriam ser empoderados por ele.
A crítica à linguagem simples confunde clareza com falta de rigor. Na realidade, quem domina um tema consegue depurá-lo, como um artesão que transforma uma pedra bruta em uma joia. Por outro lado, quem usa um discurso prolixo muitas vezes tenta camuflar a ausência de substância. O filósofo Ludwig Wittgenstein alertava que o significado deve residir no uso, e não em uma ornamentação inútil. O juridiquês exagerado, nesse sentido, é uma relíquia de um tempo em que o Direito se colocava como inacessível e elitista.
No conto “Ideias de Canário”, de Machado de Assis, o autor narra a história de um canário que, ao ser transferido de uma gaiola espaçosa para outra menor, adapta suas percepções à nova realidade. O pássaro passa a acreditar que o mundo se resume àquele espaço restrito, convencendo-se de que sua vida não perdeu nada, mas ganhou significado dentro de seus novos limites. Essa alegoria pode ser interpretada sob outro prisma quando aplicada ao Direito: o canário, ao se conformar com o espaço reduzido, não simboliza a simplificação da linguagem jurídica, mas sim a visão limitada de um sistema que restringe o Direito a um pequeno círculo de especialistas. A verdadeira liberdade do canário seria expandir seus horizontes, não se contentar com a “gaiola do juridiquês” e, ao contrário, utilizar a clareza e a acessibilidade para alcançar um público mais amplo.
A simplicidade é inclusiva, o juridiquês é excludente
Defender a complexidade da linguagem jurídica como sinônimo de profundidade ignora que o Direito, por essência, é inclusivo. Sua função social é regular a convivência humana, garantir direitos e resolver conflitos. Como alcançar esse objetivo se a linguagem utilizada para legislar, argumentar e decidir é incompreensível para a maioria da população?
A proposta de simplificação da linguagem no setor público busca democratizar o acesso à informação, tornando-a compreensível e acessível a todos os cidadãos. Essa iniciativa é essencial para promover o empoderamento social, garantindo que os indivíduos compreendam plenamente os direitos e deveres que lhes são atribuídos.
O conceito de “agnotologia”, que se refere ao estudo da produção cultural da ignorância, ajuda a esclarecer como o uso de uma linguagem complexa pode deliberadamente ou acidentalmente excluir parcelas significativas da população. Essa exclusão ocorre quando um vocabulário excessivamente técnico ou rebuscado dificulta a compreensão, criando barreiras entre o conhecimento e aqueles que mais precisam dele.
Por outro lado, as críticas à simplificação geralmente refletem um receio de mudanças, algo comum em qualquer campo profissional ou acadêmico. Entretanto, é fundamental reconhecer que o Direito, em sua essência, é dinâmico e se adapta às transformações sociais e às demandas emergentes. Rejeitar a simplificação da linguagem é, portanto, resistir à evolução de uma sociedade que valoriza o acesso à informação, a transparência e a empatia como pilares da justiça.
As grandes mentes jurídicas da história – de Rui Barbosa a Ronald Dworkin – não se destacaram pelo uso de palavras difíceis, mas pela clareza e beleza de seus argumentos. Eles sabiam que o poder do Direito não está no “juridiquês”, mas na capacidade de transformar realidades.
O analfabetismo funcional: Um desafio sistêmico
O problema da formação insuficiente de muitos profissionais do Direito não está relacionado ao uso da inteligência artificial, mas a uma falha sistêmica na educação brasileira. Segundo dados da OCDE, o Brasil investe menos de 5% do PIB em educação, muito abaixo de países desenvolvidos. Essa lacuna educacional afeta a capacidade de interpretação e produção textual dos estudantes de Direito, prejudicando sua formação integral.
Inteligência artificial: Uma aliada na prática jurídica
A introdução da inteligência artificial no Direito não apenas complementa o trabalho dos profissionais como eleva o nível da prática jurídica. Ferramentas de IA permitem a análise de grandes volumes de dados em tempo recorde, oferecem suporte em pesquisa jurisprudencial e ajudam na criação de peças processuais personalizadas. Isso não substitui o advogado, mas potencializa sua atuação.
A tecnologia não é um atalho, mas um instrumento que exige capacitação. Advogados que utilizam inteligência artificial sem treinamento adequado correm o risco de cometer erros, enquanto aqueles que dominam as ferramentas obtêm resultados mais eficientes e precisos. Cursos especializados e treinamentos contínuos são essenciais para aproveitar o potencial transformador da IA no Direito.
Linguagem simples não reduz o Direito a um “brechó”. Pelo contrário, eleva-o a um espaço de diálogo acessível, onde o saber jurídico se torna ferramenta de justiça para todos. Simplificar não é “apequenar”; é abrir portas. O uso de linguagem clara, combinado ao poder da inteligência artificial, não apequena o Direito. Pelo contrário, ele o torna mais inclusivo, acessível e eficaz. Simplificar não é reduzir; é expandir o alcance do Direito e garantir que ele cumpra seu papel social. A verdadeira grandeza jurídica está na capacidade de comunicar ideias complexas de forma simples, sem perder a profundidade.
A verdadeira grandeza está em saber o que dizer, como dizer e, principalmente, em ser compreendido. Afinal, quem sabe simplifica; quem não sabe, embroma. É hora de o Direito abandonar as amarras do juridiquês e cantar como o canário que redescobre o céu.
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1 EINSTEIN, A. The World as I See It. New York: Citadel Press, 1949.
2 INSTITUTO PAULO MONTENEGRO; AÇÃO EDUCATIVA. Indicador de Alfabetismo Funcional – INAF Brasil 2018. São Paulo: Ação Educativa, 2018.
3 WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell Publishing, 1953.
4 ASSIS, M. Obras Completas de Machado de Assis: Contos. Rio de Janeiro: Garnier, 1904.
5 KATSH, E.; RABINOVICH-EINY, O. Digital Justice: Technology and the Internet of Disputes. New York: Oxford University Press, 2017.
6 MCGINNIS, J.; PEARCE, R. “The Great Disruption: How Machine Intelligence Will Transform the Role of Lawyers in the Delivery of Legal Services.” Fordham Law Review, v. 82, n. 6, p. 3041-3066, 2014.
7 ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Education at a Glance 2022. Paris: OECD Publishing, 2022.
Jamille Porto Rodrigues
Advogada e Professora de Direito Digital, Inteligência Artificial e Novas tecnologias aplicada ao Direito e Marketing Jurídico.