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O empresário Flávio Rocha, proprietário da rede de lojas Riachuelo, afirmou em uma entrevista que “taxar grandes fortunas reduz a desigualdade, mas empobrece os ricos que acabarão deixando o Brasil.”1. Esta afirmação infelizmente retrata o pensamento de boa parte da classe mais rica do Brasil que concentra a maior parcela de toda a renda que compõe a riqueza do país.
A verdade é que o Brasil sempre foi um país desigual. No entanto, a pandemia do coronavírus agravou e escancarou ainda mais a situação já caótica e o abismo existente entre os pobres e os ricos do país. Um recente relatório do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento indicou que ocorreu um agravamento da desigualdade com a pandemia, além de ter registrado um baixo crescimento do Brasil. Porém, este fenômeno também se observou em países vizinhos da América Latina.2
Ademais, estudo realizado pela FGV – Fundação Getúlio Vargas indica que na pandemia do coronavírus, a renda média do brasileiro sofreu queda de 20,1%. O valor médio anterior era de R$1.118,00. Agora, o valor da renda média do brasileiro é de R$893,00.3 A perda de renda, somada a um sistema tributário injusto, mantém a situação de calamidade na distribuição da renda e a distante solução da desigualdade social e econômica.
O relatório das Nações Unidas aponta que o Brasil segue como um dos países que mais sofre com a desigualdade no mundo. Igualmente, mostra que a situação está se agravando: no ano de 2020, seguindo uma tendência mundial causada pela pandemia da Covid-19, a já conhecida concentração de renda no Brasil aumentou e o país atingiu o pior nível de desigualdade das últimas duas décadas. Em 2023, o número de milionários aumentou, corroborando esse distanciamento. No mesmo ano, o país tinha cerca de 413 mil milionários, o que corresponde a 0,21% da população brasileira.
De acordo com o relatório Global Wealth Report 2024, do UBS, o número de milionários no Brasil deve aumentar 22% até 2028. Isso significa que o país deve ter 83 mil novos milionários, totalizando 463,8 mil.
O estudo demonstrou que em 2018 a parte mais rica no topo da pirâmide brasileira detinha 46,9% de toda a riqueza circulando no país. Contudo, em 2020, esse número atingiu o patamar de 49,6%.
Ainda de acordo com o relatório, o Brasil atingiu em 2020 o mais grave nível de concentração de renda desde o ano de 2000. No início do século, a elite formada por cerca de 1% da população concentrava 44,2% das riquezas do país. Todavia, esse número que já vinha piorando nos últimos vinte anos, com ligeira queda em 2010, encontrou seu pior índice no ano de 2020, chegando ao patamar de quase 50% da riqueza nas mãos da parcela privilegiada de 1% da população brasileira.
Evidenciado o problema do crescimento da desigualdade, é certa a necessidade de taxar as grandes fortunas, fazendo uma ampla reforma tributária e esta medida é mais urgente do que nunca. Sabe-se que esta medida isoladamente não resolve todo o problema, mas o atenua em boa medida.
O referido imposto, taxação de grandes fortunas, para surpresa de muita gente, já consta da CF/88, em seu art. 153, inciso VII. Todavia, passados mais de 30 anos da promulgação da atual Constituição, jamais foi regulamentado por lei específica. A verdade é que nunca houve vontade do Legislativo em realizar o ato, mesmo diante de inúmeros projetos de lei apresentados. Obviamente, se tratando de pauta negativa para os mais ricos do país, a natureza política interfere na morosidade em regulamentar o tema.
No Brasil existem alguns poucos impostos que respeitam uma coerência progressiva. Segundo Sevegnani4, a maioria dos impostos aqui têm caráter regressivo, ou seja, ora paga mais quem menos ganha, o que acaba ocasionando numa distribuição injusta que se reflete na realidade socioeconômica vigente. O autor destaca que isso é consequência da grande representatividade de impostos indiretos como o IPI, ISS, ICMS e outros e da baixa fiscalização e adesão dos impostos de renda e patrimônio. Ademais, se observa enorme sonegação difícil de ser medida e controlada.
Os autores do relatório da desigualdade mundial de 20185 corroboram o entendimento aqui defendido. De forma geral, o texto enfatiza a relevância da tributação progressiva de renda. Dessa forma, no pensamento dos autores, a taxação em índices maiores dos mais ricos é uma ferramenta comprovada para combater a desigualdade de renda e de superconcentração de riqueza no topo.
Este instrumento não apenas reduz a desigualdade após a cobrança dos impostos, como também diminui a desigualdade antes deles, desencorajando os possuidores das maiores rendas a cooptarem parcelas ainda maiores de crescimento por meio de negociações aguerridas para salários mais altos, o que vai de encontro com o pensamento retro citado pelo dono da rede de lojas Riachuelo.
Os autores do relatório da desigualdade mundial de 2018, em contraponto ao empresário, ainda destacam que o uso futuro da tributação progressiva permanece incerto e dependerá de deliberações democráticas. No entanto, reiteram que esta ferramenta é imprescindível e sem ela é impossível tratar o problema da redução da desigualdade.
O proprietário da Riachuelo ainda argui em sua fala que a taxação de grandes fortunas causará uma fuga de capitais com ricos abandonando o país. Cita o caso da França e sustenta que naquele país isso aconteceu se referindo especialmente ao “Efeito Depardieu”, o caso do bilionário ator francês Gerard Depardieu que, em 2013, abandonou a França, se transferiu para a Rússia e adquiriu dupla nacionalidade, visando fugir da tributação do seu país de origem.7
O empresário se faz valer de exemplos isolados que na maioria das vezes não se concretizam. Fernando Nogueira da Costa8, ao tratar sobre o tema, assevera que os efeitos de uma fuga de capitais nestes casos são mínimos na economia de um país e que historicamente são poucos os ricos que efetivamente chegam a abandonar seus países por mudanças tributárias. Por tais razões, as falas dos empresários brasileiros que lutam contra a taxação das suas fortunas não se sustentam.
Infelizmente, a elite financeira brasileira se mistura com a elite política e as duas classes permanecem em descrédito com a população porque não têm preocupação com a função social do tributo.
A Constituição prevê em seu art. 145, § 1º, que os impostos, sempre que possível, terão caráter pessoal e serão graduados de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. Segundo Eduardo Sabbag, este artigo trata do princípio da capacidade contributiva, que inequivocamente está diretamente ligado ao da igualdade. Para o autor, o tributo está “longe de servir apenas para coibir discriminações arbitrárias, mas abre-se para a consecução de um efetivo ideal de justiça para o Direito Tributário”.9
A tributação não existe apenas para arrecadação de dinheiro pelo Estado. Segundo Hugo de Brito Machado: “O objetivo do tributo sempre foi o de carrear recursos financeiros para o Estado. No mundo moderno, todavia, o tributo é largamente utilizado com objetivo de interferir na economia privada, estimulando atividades, setores econômicos ou regiões, desestimulando o consumo de certos bens e produzindo, finalmente, os efeitos mais diversos na economia. “
A ideia que povoa o pensamento dos mais ricos no Brasil é retrógrada. Eles ainda entendem que o tributo, criado para a simples arrecadação de valores pelos antigos monarcas, sem nenhuma contraprestação à população ainda se conserva. Ou seja, a tributação tem apenas um caráter exploratório.
Esse pensamento é reforçado pelo sentimento majoritário de que o dinheiro arrecadado é surrupiado pela corrupção estrutural existente no país. Muitos empresários condenam a corrupção dos governantes, mas praticam a sonegação fiscal, entrando em contradição. Nesse sentido, é certo que a tributação no Brasil precisa evoluir e isso passa pela mudança cultural do pensamento aludido.
Não obstante a corrupção inegável é essencial que se defenda que o Estado, na busca pela redução da desigualdade social e econômica detém poder concedido pela Constituição Federal para buscar a justiça social, interferindo na economia, tributando de forma mais igualitária e executando políticas de redistribuição de renda.
Entretanto, os possuidores de grandes riquezas no Brasil não pensam dessa maneira. Esta parcela da população advém de uma elite que permanece por longos anos controlando o poder por meio da mídia e do patrocínio de campanhas políticas.
Mister salientar que temos uma elite que se explica pelo patrimonialismo visceral em detrimento das relações saudáveis entre as classes sociais no Brasil. Jessé de Souza, em sua obra, “a elite do atraso”11 ilustrou o pensamento da nossa classe rica. A cultura de separação entre os conglomerados empresariais e a classe trabalhadora tem uma raiz histórica no imperialismo brasileiro e nos efeitos que a escravidão tem em nossa sociedade até os dias atuais.
Pela ótica daquele autor, o interesse exacerbado pelo capital, desconsiderando o ideal igualitário, é uma forma de dominação da qual os ricos não abrem mão. Daí também o desinteresse por reformas importantes como a tributária.
Portanto, na ausência de consciência social e de boa vontade para abrir mão de privilégios, é impossível pensar em justiça social e o sistema tributário seguirá atuando de maneira concentradora, atendendo a interesses, ao invés de ganhar o caráter redistributivo que necessita.
Por todo o exposto, é primordial salientar que a elite brasileira precisa compreender que o tributo não é uma punição do Estado, que não é dinheiro para corrupção ou uma imposição que não lhes trará contraprestações futuras.
Ademais, se os ricos passarem a entender a função social do tributo, serão capazes de observar que não é possível garantir direitos fundamentais como saúde, trabalho, educação e segurança para toda a população sem a implementação da justiça tributária.
Uma sociedade mais igualitária é capaz de gerar mais riquezas para o país e consequentemente para os próprios ricos. Afinal, como se levantou inicialmente, somente a taxação das grandes riquezas não resolve o problema da desigualdade. É apenas uma das ferramentas. Outra importante medida é a distribuição de riquezas com crescimento econômico.12
Deve-se salientar que, assim como a taxação das grandes riquezas não é a varinha mágica que vai resolver o problema da desigualdade, o crescimento econômico, que historicamente foi apontado como meta primordial do Brasil para reduzir a pobreza, não produz resultados eficazes isoladamente.
É necessário a soma de crescimento na economia, reforma tributária ampla, garantias de direito da classe trabalhadora, consciência social, justiça social e implementação de políticas públicas de inclusão. Estes instrumentos, se efetuados com estratégia, terão papel relevante na mudança de pensamento cultural estruturante que vigora no país.
Contudo, o caminho é longo e o cenário brasileiro revela emergência, sendo necessário manifestação de vontade da classe política com a participação da classe mais abastada que, infelizmente, como vimos, ainda reluta em acenar para mudanças que reduzam os seus privilégios.
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1 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2021/07/taxar-grandes-fortunas-reduz-desigualdade-mas-empobrece-os-ricos-diz-dono-da-riachuelo.shtml. Acesso em 15 de junho de 2021.
2 Disponível em: https://www.credit-suisse.com/about-us/en/reports-research/global-wealth-report.html. Acesso em 15 de junho de 2021.
3 Disponível em: https://cps.fgv.br/pesquisas/efeitos-da-pandemia-sobre-o-mercado-de-trabalho-brasileiro. Acesso em 15 de junho de 2021.
4 SEVEGNANI, Joacir. (2012) O modelo regressivo de tributação no Brasil.
5 ALVAREDO, Facundo; CHANCEL, Lucas; PIKETTY, Thomas; SAEZ, Emmanuel; ZUCMAN, Gabriel. Relatório da Desigualdade Mundial 2018. Intrínseca.
6 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/01/trabalho-informal-cresce-mas-taxa-de-desemprego-segue-em-141.shtml. Acesso em 18 de junho de 2021.
7 Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2014/05/gerard-depardieu-declara-renda-na-russia-para-pagar-menos-imposto.html. Acesso em 18 de junho de 2021.
8 COSTA, Fernando Nogueira da. Ameaça de Imposto sobre Herança, Doação e Grande Fortuna: Fuga de Capitais. Revista Digital, Renda e Riqueza, publicado em 12/3/15.
9 SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
10 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
11 SOUZA, Jessé de. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Leya, Rio de Janeiro: 2017.
12 BARROS, R. P. de, HENRIQUES, R., MENDONÇA, R. O combate à pobreza no Brasil: dilemas entre políticas de crescimento e políticas de redução da desigualdade. In: HENRIQUES, R. (org.). Anais do Seminário Desigualdade e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro, ago. 1999.
Eduardo Rodrigues da Cruz Barbosa
Advogado, Professor de Direito Constitucional, Mestre em Direito Acadêmico (IDP), Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/DF-Sobradinho, Conselheiro da Subseção da OAB/DF-Sobradinho.