Festa do Padroeiro dos Garimpeiros de Lençóis: Riscos e desafios   Migalhas
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Festa do Padroeiro dos Garimpeiros de Lençóis: Riscos e desafios – Migalhas

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É possível afirmar que as lavras de diamantes em Lençóis duraram entre 1845 até 1996, advinda em parte significativa da mão de obra de pessoas negras durante e após a escravidão (MANGILI, 2015), portanto, o texto não pode correr o risco de ser confundido com a temática dos garimpos predatórios. Depois de extensa demanda, superados os impasses e realizada a harmonização de interesses constitucionais por via de diálogos sociais e administrativos começados desde 2015 no âmbito do IPAC – Instituto do Patrimônio Cultural, pelo decreto estadual 21.879/23, enfim se alcançou o registro da Festa do Padroeiro dos Garimpeiros de Lençóis como patrimônio cultural imaterial da Bahia.

Iniciativa com o mesmo propósito de reconhecer essa tradição, também tramita desde 2015, com deferimento da etapa de pesquisa em 20211, pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio, Histórico, Artístico e Cultural Nacional, contudo, a festividade aguarda o registro como patrimônio cultural imaterial do Brasil. O IPHAN que promoveu o tombamento de Lençóis como patrimônio cultural brasileiro há mais de 50 anos e, consolidou a primeira proteção patrimonial material por iniciativa popular no país, agora tem a missão de olhar pela conclusão do registro nacional do patrimônio cultural imaterial, iniciado há quase 10 anos.

O que se espera da proteção dessa festa devocional? Ora, o fortalecimento da identidade cultural, a valorização da diversidade cultural, o desenvolvimento sustentável, a continuidade das tradições, o reforço da coesão social e notadamente o prestígio de tão importante acontecimento na cidade patrimônio. Lençóis é o berço de Cândido da Fonseca Galvão, o Dom Obá II d’África, príncipe do Reino de Oyó, alferes do exército brasileiro e líder do batalhão dos Zuavos Baianos na Guerra do Paraguai (DA SILVA,1997). No lugar também nasceram os imortais, acadêmicos brasileiros de letras, Urbano Duarte e Afrânio Peixoto, além dos irmãos Orlado e Ronaldo Senna, o cineasta da América Latina (LEAL, 2008) e o antropólogo das religiões (SENNA, 1998).

São magnânimas as celebrações, entre os dias 23 de janeiro até 2 de fevereiro, desde a abertura com a lavagem das escadarias da Igreja (que no meu tempo de criança, antes de ser proibido, lavavam até dentro do templo. Depois faziam uma grande roda de capoeira na avenida, que acontece até hoje), sequenciada de missas, com as noites, alvoradas, principalmente, a passeata dos garimpeiros e as tocatas da Lyra Phylarmonica, até a missa campal e o momento maior com a procissão e muitas pessoas reunidas em torno da divindade (GONÇALVES, 1985), que é cultuada sincreticamente na matriz africana como Zambipangue ou Zambiapongo.

Respeitadas as cantigas seculares, como o Hino dos Garimpeiros a Senhor dos Passos e a alegre Canção dos Garimpeiros (hino de Lençóis), a aparição dos mineiros, autoridades e convidados com a túnica roxa, guarda semelhança com gesto de fé católica a Senhor dos Passos na cidade de Lisboa, em Portugal. Todavia, na Bahia, em Lençóis, o culto possui elementos singulares, como as bandeirolas, feitas de taliscas da planta herbácea “Malva de Garimpeiro” e papéis de seda, multicoloridos, com cores alternadas e o desenho genuíno de um símbolo do trabalho, no formato de uma enxada, além da presença de cheganças da Marujada, os Ternos de Reis, Baianas e demais folguedos que aparecem conforme a dinâmica dos acontecimentos.

Todos ingredientes culturais ainda vão ao encontro da parte popular não ritualística, que irredutivelmente conta com diversos dias de palco para shows, barracas para consumo de alimentos e bebidas, bem como, outras formas de entretenimento, cujo desafio é encontrar sintonia com aspectos da vida de Lençóis que merecem atenção, sobretudo, do ponto de vista da promoção do bem estar social, proteção à infância e adolescência, combate à violência doméstica contra mulher, atenção aos idosos, política de igualdade racial, enfrentamento à intolerância religiosa, demais formas de racismo, direitos dos animais, outras formas de violências e violações de direitos, em defesa da cultura de paz. 

Pelo que é possível verificar no contexto do acontecimento religioso-cultural, na parte chamada de “profana”, aqui identificada como “parte popular não ritualística da festa”, o Poder Público passou a estabelecer a disseminação de valores simbólicos da cultura de massas (LIMA, 2005), com padrões que se repetem de modo a formar uma estética ou percepção comum voltada ao consumismo (ADORNO, 1985) e, assim ocorrem pelo menos três aspectos nocivos, que precisam ser afastados, por saúde e segurança da comunidade de Lençóis, que sofre os efeitos da exposição à alcoolemia, sexismo e toxicomania, enquanto bens culturais correm o risco de desaparecer.

Nesse sentido, cabe observar que na parte popular não ritualística da festa, necessariamente, precisa acompanhar o fair play (jogo limpo) do reconhecimento do patrimônio cultural imaterial. Assim, é preciso esperançar que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, entre outras medidas, ao decidir fazer gestos públicos em homenagem aos representantes da Igreja, na saudação da parte religiosa católica, possa do mesmo modo destacar os mestres do Jarê, na parte popular onde se expressa a matriz africana, ao invés de ter sacerdote da matriz africana, de um ano para o outro, como vítima do ato ilegal da derrubada de um terreiro2.

Entre os desafios, para contemplar a forte presença da matriz africana, é recomendável a escuta metodológica, visando saber o que os grupos populares desejam apresentar ou criar durante a celebração. Daí, o Poder Público, em razão da salvaguarda, precisa proteger as manifestações populares de culturas afro-brasileiras existentes para incluí-las com o merecido destaque na programação (Art. 215, §1º da CF). Na festividade existem ou podem se expressar com maior alcance do público muitos bens culturais reconhecidos como patrimônio cultural nacional e também da humanidade pela UNESCO, que ficam em segundo plano ou informalidade, mas o povo gosta, como por exemplo, a capoeira e o samba de roda.

Será que a abertura de espaço para que as pessoas da comunidade possam se expressar é coerente? Por exemplo, existe a chance para manifestações da cultura popular, como sessões abertas do Jarê, apresentações de chula, relacionadas às tradições do modo rural, comuns nas lavouras da Chapada Diamantina? Talvez a festa não possa deixar de acontecer, sem pensar em contemplar práticas da cultura urbana. Que tal oficinas de dança afro, percussão, trancistas ou trançadeiras afro, para ensinar e aprender a dançar, tocar e fazer cabelo? Ou mesmo oficinas para ensinar e aprender a cozinhar o delicioso prato local do godó de banana e também o tradicional café do garimpeiro ou pratos como acarajé e abará?

Como desafio, é possível observar que o Poder Público garante a setorial de música, através do investimento dos recursos na contratação de atrações da indústria cultural, porém, é preciso questionar se é possível a garantia de outras setoriais da cultura? O Poder Público consegue investir recursos para acesso nas demais setoriais do sistema municipal de cultura, com advento da lei municipal 980/22? A considerar os nove dias da festa, na programação da parte popular não ritualística, há meios para inclusão ou apoio cultural, para que o terceiro setor possa cooperar, democraticamente, com outras manifestações, formas de expressão e criações? À exemplo de:

  • Artesanato – oficinas das bandeirolas dos garimpeiros, premiação do enfeite das portas e janelas dos casarões e sobrados com panos devocionais ou tapetes devocionais pelas ruas;
  • Artes cênicas – espetáculos teatrais ou apresentações circenses;
  • Música e dança – festival de reisado, conjunto de pifamos, encontro de marujadas, grupos de maracatu, bumba meu boi, encontro de filarmônicas;
  • Literatura – feira literária, lançamento de livros; 
  • Cinema e audiovisual – mostra, festival ou exibição de filmes;    

Em linhas gerais, intuitivamente, é possível antever o risco das pessoas de Lençóis continuarem sujeitas a consumir padrões da cultura de massas e, a cultura de massas consumir a liberdade e a vida da comunidade de Lençóis. Assim, é indispensável, como efeito da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, repensar o modelo, com o incentivo a pluralidade de manifestações da cultura popular, consorciado a ancestralidade e identidade local, no sentido de verbalizar que toda estrutura social, econômica e cultural de Lençóis é direta ou indiretamente influenciada pelo legado de memória dos trabalhadores das lavras diamantinas. Será que a Festa de Senhor Bom Jesus dos Passos pode ser vista como uma hipótese de garantia dos direitos humanos?

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1 Disponível em < https://www.gov.br/iphan/pt-br/assuntos/noticias/comeca-etapa-de-pesquisa-sobre-a-festa-de-nosso-senhor-bom-jesus-dos-passos-ba> consultado em 10/01/2025.

2 Disponível em: < https://www.metro1.com.br/noticias/radio-metropole/153269,lider-religioso-de-terreiro-destruido-em-acao-do-icmbio-detalha-como-encontrou-o-espaco-tudo-desmantelado-destruiram-mais-de-10-casas> Consultado em 10/01/2025

3 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985;

4 Anais do VI ENIPAC: Patrimônio cultural: trabalho, memória e ambiente / organizadores: Ilanil Coelho… [et al.] – Joinville, SC : UNIVILLE, 2023. P. 57

5 COSTA, Rodrigo Vieira. Os Efeitos Jurídico-Sociais do Brasileiro. Revista Culturas Jurídicas, v. 6, n. 1, 2019.

6 CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos Direitos Culturais: Fundamentos e Finalidades. São Paulo: Edições Sesc SP, 2018.

7 DA SILVA, Eduardo. Dom Obá II D’África, O Príncipe do Povo. Vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor.  Editora Companhia das Letras, 1997.

8 GONÇALVES, Maria Salete Petroni de Castro. Garimpo, Devoção e Festa em Lençóis, BA. São Paulo: Escola de Folclore, 1984.

9 LEAL, Hermes. Orlando Senna: O homem da montanha. Biografia, Imprensa Oficial: São Paulo, 2008.

10 LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da Cultura de Massa. 7ª ed. revista. São Paulo: Paz e Terra, 2005;  

11 MANGILI, Liziane Pires. Anseios, dissonâncias, enfrentamentos: o lugar e a trajetória da preservação em Lençóis (Bahia). Tese de doutorado FAUUSP. São Paulo, 2015;   

12 PAIVA, Carlos Magno de Souza. Direito do Patrimônio Cultural: Autonomia e Efetividade. 2. ed. rev. e ampl. Curitiba: Juruá, 2022.

13 SENNA, Ronaldo de Salles. JARÊ: Uma face do candomblé – manifestação religiosa na Chapada Diamantina. Editora UEFS: Feira de Santana, 1998.

Alexandre Aguiar

Alexandre Aguiar

Advogado Culturalista, Palestrante e Assessor Jurídico, Ex-Presidente da Comissão de Cultura da OAB/BA (Triênio 2022-24)

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