CompartilharComentarSiga-nos no A A
Tem sido muito comum, nas últimas semanas, ler ou ouvir, em tom irônico, que os EUA – Estados Unidos da América devem também ter se tornado uma ditadura como o Brasil. Outros, de forma um pouco mais séria, arguem que deveria ser naturalizado o que a Suprema Corte Brasileira tem feito, considerando que, mesmo sob o parâmetro mais libertário de livre expressão, estabelecido nos EUA, seria permitido tirar do ar as redes sociais. Esses comentários têm sido feitos no contexto ainda recente do julgamento pela SCOTUS – Supreme Court of The United States do caso TikTok Inc., et al., v. Garland1, que validou a suspensão de funcionamento do aplicativo TikTok naquele país, situação esta que durou apenas algumas horas, na prática, pelo menos até a submissão do presente artigo2.
A crítica não é de todo sem fundamento, pelo menos na perspectiva de que a 1ª Emenda da Constituição Americana prevê que “Congress shall make no law (…) abridging the freedom of speech, or of the press (…)”. Embora existam nuances importantes, muito bem retratadas na decisão da SCOTUS sobre a diferenciação entre escrutínio rigoroso (strict scrutiny) e escrutínio moderado (intermediate scrutiny), a linguagem da 1ª Emenda veicula proibição rígida, objetiva, sem possibilidade de interpretação extensiva3. Trata-se de norma-regra, portanto, que, como já se defendeu em oportunidade anterior4, não poderia ter sido ponderada, mesmo quando – como muito bem destacado no texto da decisão – não há restrição fundada em conteúdo. Essa diferenciação, entre restrição imposta com base em conteúdo e restrição com base em outros critérios, não consta na regra constitucional proibitiva, que, portanto, deveria ter sido prestigiada, sobretudo, considerando a importante tradição de defesa da liberdade de expressão nos precedentes da SCOTUS5. Da mesma forma, o art. 50, incisos IV e IX, da CF do Brasil trazem norma-regra, portanto expressa e objetiva, que alçam a liberdade de expressão ao patamar de cláusula pétrea, sem possibilidade de interpretação ampla ou extensiva, e muito menos de alteração ou revogação.
Feita esta importante ressalva, a comparação do caso americano com o Brasil, por sua vez, não tem qualquer mérito. As regras proibitivas são, em absolutamente tudo, distintas, notoriamente, em origem, conteúdo, alcance e, sobretudo, na motivação para impor restrições ao uso de aplicativo de redes sociais. Com efeito, no referido julgado (TikTok Inc., et al., v. Garland), a SCOTUS teve por constitucional o Protecting Americans from Foreign Adversary Controlled Applications Act, ou, em tradução livre, o Ato de Proteção dos Americanos Contra Aplicativos Controlados por Adversários Estrangeiros. Segundo o texto do julgado – que foi proferido per curiam, ou seja, em um texto comum ao qual aderiram todos os justices -, a regra proibitiva dessa legislação, e seu respectivo motivo, foram os seguintes:
“As of January 19, the Protecting Americans from Foreign Adversary Controlled Applications Act will make it unlaw¬ful for companies in the United States to provide services to distribute, maintain, or update the social media platform TikTok, unless U. S. operation of the platform is severed from Chinese control.
(.)
The challenged provisions are facially content neutral. They impose TikTok-specific prohibitions due to a foreign adversary’s control over the platform and make divestiture a prerequisite for the platform’s continued operation in the United States. They do not target particular speech based upon its content, contrast, e.g., Carey v. Brown, 447 U. S. 455, 465 (1980) (statute prohibiting all residential picketing except ‘peaceful labor picketing’), or regulate speech based on its function or purpose, contrast, e.g., Holder v. Human¬itarian Law Project, 561 U. S. 1, 7, 27 (2010) (law prohibit¬ing providing material support to terrorists). Nor do they impose a ‘restriction, penalty, or burden’ by reason of con¬tent on TikTok-a conclusion confirmed by the fact that pe¬titioners ‘cannot avoid or mitigate’ the effects of the Act by altering their speech. Turner I, 512 U. S., at 644. As to petitioners, the Act thus does not facially regulate ‘partic¬ular speech because of the topic discussed or the idea or message expressed.’ Reed, 576 U. S., at 163.
(.)
Petitioners do not dispute that the Government has an important and well-grounded interest in preventing China from collecting the personal data of tens of millions of U. S. TikTok users. Nor could they. The platform collects exten-sive personal information from and about its users. See H. R. Rep., at 3 (Public reporting has suggested that Tik¬Tok’s ‘data collection practices extend to age, phone num¬ber, precise location, internet address, device used, phone contacts, social network connections, the content of private messages sent through the application, and videos watched.’); 1 App. 241 (Draft National Security Agreement noting that TikTok collects user data, user content, behav¬ioral data (including ‘keystroke patterns and rhythms’), and device and network data (including device contacts and calendars)). If, for example, a user allows TikTok access to the user’s phone contact list to connect with others on the platform, TikTok can access ‘any data stored in the user’s contact list, including names, contact information, contact photos, job titles, and notes. 2 id., at 659. Access to such detailed information about U. S. users, the Government worries, may enable ‘China to track the locations of Federal employees and contractors, build dossiers of personal information for blackmail, and conduct corporate espionage.’ 3 CFR 412. And Chinese law enables China to require companies to surrender data to the government, ‘making companies headquartered there an espionage tool’ of China.“6(grifos nossos)
Ora, é feito muito explícito que a restrição de funcionamento da aplicação decorre da coleta de dados, não da transmissão deles. Em outros termos, de pouco adiantaria se o TikTok alterasse sua moderação de conteúdo, proibindo determinado tipo de pronunciamento ou mesmo obrigando a transmissão de certas ideias. O que causou a proscrição foi a coleta de dados de cidadãos americanos – alguns que consentiram, outros nem chegaram a tanto – e a possibilidade real de que a empresa controladora tivesse que atender a ordem do Governo Chinês para entregar tais dados, o que o Governo Americano considera uma ameaça estratégica, dada a rivalidade geopolítica ora estabelecida entre ambos os países.
Há, portanto, ônus meramente indireto à liberdade de expressão. Prejudica-se o direito de se expressar por aquele aplicativo específico tão somente como efeito colateral da proibição da coleta de dados, sem o que o aplicativo, a toda evidência, não poderia funcionar, pelo menos sob o algoritmo ora vigente. Nesse sentido, a atual composição da Suprema Corte Americana argumenta que a imposição da lei referida não é uma restrição à liberdade de expressão, mas tão somente sobre o controle acionário. É que exatamente o mesmo conteúdo, na exata mesma plataforma, pode ser perfeitamente lícito sob essa legislação, desde que a controladora dos dados coletados não esteja sob a jurisdição chinesa, e, portanto, obrigada a entregar essas informações ao Estado da China, tido pelo Congresso e pelo presidente dos Estados Unidos como adversário geopolítico.
Por isso mesmo, o alcance da norma é bastante distinto, pois tem o potencial de afetar apenas plataformas de tecnologia, que não se destinem às avaliações de produtos, negócios e viagens, cujo controle acionário seja de estrangeiros, quando estes sejam de nacionalidades consideradas adversárias dos Estados Unidos, e nas quais haja coleta de dados. É, portanto, bastante específico o âmbito de aplicação.
Além dessas diferenças, há outra, também importante: o fato de que a proibição do aplicativo nos EUA decorreu de legislação, positivada sob todos os ritos democráticos, e não de ordem do Poder Judiciário, que apenas se absteve de invalidar a regra legal. No Brasil, não existe regra legal vigente que permita banimento ou suspensão de plataforma digital por transmissão de conteúdo tido por indevido. O art. 19 da lei Federal 12.965/14, o marco civil da internet, permite apenas a responsabilização civil, e até esse dispositivo tem tido sua constitucionalidade questionada no STF7. Todavia, isso não tem impedido o Tribunal de criar normas ex nihilo e ad hoc, removendo perfis e conteúdos nas redes sociais, além de banir por cerca de quarenta dias, a própria plataforma X, com mais de vinte milhões de usuários, alijando-os do principal veículo de política e ciência do mundo, além de meio de subsistência para incontáveis usuários.
Uma última diferença digna de nota, naturalmente decorrente das outras, é que, embora polêmica, a medida nos Estados Unidos não gerou polarização. O próprio presidente Donald Trump, que hoje critica a medida, já havia, previamente, tentado adotar essa mesma regra por ordem executiva, o que o Judiciário teve por inconstitucional8. No Congresso americano, a aprovação da legislação contra o TikTok foi bipartidária, contando com ampla maioria tanto na Casa dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) quanto no Senado9. Essa distinção decorre justamente de a proibição, nos EUA, ser neutra sobre conteúdo, enquanto, no Brasil, o conteúdo banido interessava a um dos lados permitir e a outro proibir. Gerou-se, pois, uma pouco saudável disputa política sobre atos judiciais, por estes se imiscuírem no que deveria ser o campo do debate político, o que não ocorreu em terras norte-americanas.
Portanto, em um debate honesto, de fato, preocupado com a verdade, há pouca, se alguma, razão para comparar os dois casos, o de banimento do TikTok nos EUA e o da suspensão do X, no Brasil. Um é a proibição, decorrente de lei, da coleta de dados por plataforma estrangeira no contexto de disputa geopolítica; outro é a punição judicial de uma plataforma por ter se recusado a cumprir ordem relativa a restrição de conteúdo, no contexto de polarização política. As situações não são similares e não devem ser tratadas como tal. A primeira foi questão geopolítica, solucionável por alteração de controle societário. A última é ato de controle da liberdade de expressão. E aí resta difícil defender a nossa Suprema Corte daqueles que a acusam de aplicar censura.
____________
1 Inteiro teor do acórdão disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/24pdf/24-656_ca7d.pdf. Acesso em: 23/01/2025.
2 Notícia sobre o restabelecimento da plataforma disponível em: https://www.reuters.com/technology/tiktok-goes-dark-us-users-trump-says-save-tiktok-2025-01-19/. Acesso em: 26/01/2025.
3 O fato da liberdade de expressão ser uma regra objetiva na Constituição americana não impede que a expressão possa se converter em ação violenta, o que não relativiza a regra, mas denota fato decorrente que escapa do seu alcance. É o clássico exemplo trazido por Stuart Mill, um dos principais filósofos a tratar do tema até hoje, em sua obra “Sobre a Liberdade”, quando alerta para a diferença entre opinião e ação: “ninguém pretende que as ações devam ser tão livres como as opiniões. Pelo contrário, mesmo as opiniões perdem a sua imunidade quando as circunstâncias em que se exprimem são tais que a sua expressão constitui um incitamento positivo a algum ato nocivo. A opinião de que comerciantes de cereais matam à fome o pobre, ou de que a propriedade privada é um latrocínio, não devem ser molestadas quando simplesmente veiculadas na imprensa, mas podem incorrer em pena justa quando expostas oralmente, ou afixadas sob a forma de um cartaz, em meio a uma turba excitada, reunida diante da casa de um comerciante de cereais” (Sobre a Liberdade, Editora Vozes, trad. Alberto da Rocha Barros, 1991, pg. 97). Essa advertência inspirou a própria SCOTUS a criar a doutrina do “perigo real e imediato” (clear and present danger), no famoso precedente Abrams vs United States (2019).
4 Há muitos exemplos famosos nesse sentido, mas cita-se, por ser um dos mais marcantes, o caso Brandenburg v. Ohio, e, mais recentemente (2024), já no contexto de plataforma de mídias digitais, há também o caso Moody v. NetChoice, citado no próprio acórdão sob análise.
5 Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/24pdf/24-656_ca7d.pdf. Acesso em: 23/01/2025.
6 Essa discussão tem sido travada nos autos do Recuro Extraordinário (RE) nº 1.037.396/SP, afetado ao Tema nº 987 da Repercussão Geral. Notícia recente sobre o assunto disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/marco-civil-da-internet-barroso-defende-que-plataformas-reduzam-riscos-de-postagens-criminosas/. Acesso em: 26/01/2025.
7 Nesse sentido, eis texto do próprio acórdão do caso TikTok Inc. v. Garland: “In August 2020, President Trump issued an Executive Order finding that ‘the spread in the United States of mo¬bile applications developed and owned by companies in [China] continues to threaten the national security, foreign policy, and economy of the United States.’ Exec. Order No. 13942, 3 CFR 412 (2021). President Trump determined that TikTok raised particular concerns, noting that the platform “automatically captures vast swaths of infor¬mation from its users” and is susceptible to being used to further the interests of the Chinese Government. Ibid. The President invoked his authority under the International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), 50 U. S. C.§1701 et seq., and the National Emergencies Act, 50 U. S. C. §1601 et seq., to prohibit certain ‘transactions’ involving ByteDance Ltd. or its subsidiaries, as identified by the Sec¬retary of Commerce. 3 CFR 413. The Secretary published a list of prohibited transactions in September 2020. See 85 Fed. Reg. 60061 (2020). But federal courts enjoined the pro¬hibitions before they took effect, finding that they exceeded the Executive Branch’s authority under IEEPA. See gener¬ally TikTok Inc. v. Trump, 507 F. Supp. 3d 92 (DC 2020); Marland v. Trump, 498 F. Supp. 3d 624 (ED Pa. 2020).”.
8 “Last April, the House voted 360-58 to force TikTok to divest or be banned. The bill, which was packaged together with foreign aid to Israel and Ukraine, passed the Senate by an overwhelming vote of 79-18.” (Disponível em: https://www.nbcnews.com/politics/congress/us-leaders-lawmakers-backpedal-eve-tiktok-ban-rcna188180. Acesso em: 26/01/2025)
Cristiano Rosa de Carvalho
Livre-Docente em Direito (USP), Mestre e Doutor em Direito Tributário (PUC-SP), Pós-Doutor em Direito e Economia (Berkeley), professor e advogado. Membro fundador da LEXUM
Cairo Trevia Chagas
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), pós-graduado em Direito Tributário e Contabilidade Tributária pela Faculdade Brasileira de Tributação (FBT), advogado de Sacha Calmon Misabel Derzi Advogados e membro da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CEDT/CFOAB).