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No cotidiano forense, é comum nos depararmos com exigências de alguns magistrados que, por cautela ou entendimento equivocado, solicitam a juntada de documentos pessoais, como RG ou CPF, bem como comprovantes de residência, como se essa apresentação fosse condição da ação. Tal prática, entretanto, não encontra respaldo jurídico no CPC, tampouco em outras normativas aplicáveis. Essa exigência, além de desnecessária, pode gerar riscos à segurança do titular dos documentos.
A suficiência da indicação dos documentos no CPC
O art. 319, inciso II, do CPC, estabelece de maneira clara que a petição inicial deverá conter a indicação dos documentos necessários para a identificação da parte. Não há, em nenhum momento, menção à obrigatoriedade da juntada de cópia desses documentos, sendo a mera indicação considerada suficiente para dar prosseguimento ao processo.
Essa previsão legal visa facilitar o acesso ao Judiciário, evitando o formalismo exacerbado que poderia criar obstáculos indevidos ao exercício do direito de ação. A exigência de juntada de documentos, portanto, só é aplicável nos casos em que houver previsão expressa ou necessidade de comprovação de algum fato específico que requeira prova documental.
Dessa forma, a exigência indiscriminada de documentos pessoais ou comprovantes de residência configura um excesso procedimental, que contraria a própria economia processual defendida pelo CPC. Tal prática, além de não ser respaldada pela legislação, afronta o princípio da instrumentalidade das formas, que preconiza que os atos processuais devem ser analisados em função de sua finalidade, e não em razão de formalismos desnecessários.
Riscos à segurança do titular: O perigo da exposição indevida
Outro ponto crítico dessa exigência é o risco à segurança do titular. Documentos pessoais, como RG, CPF e comprovantes de residência, são informações sensíveis que, uma vez inseridas nos autos, podem ser indevidamente acessadas e utilizadas para fins ilícitos, como fraudes e golpes.
O Brasil é um dos países com maior número de fraudes envolvendo identidade. Exigir a juntada desses documentos desnecessariamente em processos judiciais expõe as partes ao risco de terem suas informações usadas de maneira inapropriada. O Poder Judiciário tem a obrigação de garantir a segurança e a privacidade das partes, de modo que a prática de exigência desses documentos em situações onde não há previsão legal ou necessidade específica deve ser repensada e rechaçada.
A falta de amparo jurídico e a prática contrária à CF
A exigência da juntada de documentos pessoais e/ou comprovante de residência como condição para o prosseguimento da ação judicial pode ser vista como uma violação ao princípio da legalidade, consagrado no art. 5º, inciso II, da CF/88:
“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
O art. 319, II, do CPC é claro ao tratar da indicação dos documentos como suficiente para a regularidade formal da petição inicial.
Qualquer exigência adicional não prevista em lei infringe o princípio da legalidade e pode, inclusive, configurar uma barreira indevida ao acesso à justiça.
Precedentes jurisprudenciais
Diversos tribunais já se manifestaram contrariamente à exigência da juntada de documentos pessoais quando a legislação processual não a prevê. Vejamos alguns precedentes:
Ilustrando:
REVISIONAL DE CONTRATO BANCÁRIO – CRÉDITO PESSOAL – EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO – PRETENSÃO DE ANULAÇÃO – CABIMENTO – Petição inicial que preenche os requisitos formais dos arts. 319 e 320 do CPC – Contrato digitalizado, comprovante de endereço e documento pessoal, que não se constituem em elementos essenciais para propositura da ação, tampouco pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo – Sentença anulada – Recurso provido. (TJ-SP – Apelação Cível: 1002948-71.2022.8.26.0471 Porto Feliz, Relator: Walter Fonseca, Data de Julgamento: 07/06/2024, 11ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/06/2024)
AÇÃO DECLARATÓRIA E INDENIZATÓRIA – DETERMINAÇÃO DE EMENDA À INICIAL – COMPROVANTE DE ENDEREÇO – INDICAÇÃO – INDEFRIMENTO DA INICIAL – EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO – I – Sentença de extinção, sem resolução do mérito – Apelo da autora – II- Determinação de emenda à inicial, para juntada de comprovante de endereço em nome da autora – Art. 319 do NCPC que apenas exige a indicação do endereço – Inexistência de previsão legal no sentido da obrigatoriedade de juntada do comprovante de residência – Comprovante de endereço que não constitui documento indispensável à propositura da ação – Suficiência da indicação do local da residência, tal qual efetuado pela autora na exordial – Preenchidos os requisitos dos arts. 319 e 320 do NCPC – Extinção afastada – Sentença anulada, determinando-se o retorno dos autos à origem, para regular prosseguimento do feito – Apelo provido. (TJ-SP – AC: 10096073520218260438 SP 1009607-35.2021.8.26.0438, Relator: Salles Vieira, Data de Julgamento: 09/02/2023, 24ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/02/2023)
Esses precedentes reforçam a posição de que a exigência de documentos pessoais e comprovantes de residência sem previsão legal constitui uma prática que extrapola os limites estabelecidos pelo CPC.
Considerações finais
A exigência de juntada de documentos pessoais e comprovantes de residência como condição para o prosseguimento de ações judiciais é uma prática que carece de fundamento jurídico, além de expor os titulares a riscos desnecessários.
O art. 319, II, do CPC é claro ao exigir apenas a indicação desses documentos, e o Judiciário deve se pautar por garantir o acesso à Justiça de forma célere e segura, sem excessos procedimentais ou exigências desproporcionais.
O princípio da legalidade e o direito à segurança devem ser observados com rigor no processo judicial, sob pena de se criar uma barreira indevida ao acesso à justiça.
Diante desse cenário, é essencial que advogados e partes estejam atentos a essas exigências indevidas, e que os magistrados, por sua vez, promovam uma interpretação mais adequada e alinhada com os princípios do processo civil moderno, especialmente o da economia processual e da proteção dos direitos fundamentais dos jurisdicionados.
Esse tema não apenas destaca um ponto de fragilidade no processo judicial moderno, mas também alerta para a importância da proteção de dados sensíveis no ambiente jurídico.
A prática da exigência de documentos pessoais sem respaldo legal precisa ser questionada, sob pena de comprometer a segurança e a integridade dos litigantes.
Marcelo Alves Neves
Advogado focado em conhecimento, eficiência e resultado. Visite: https://www.man.adv.br